Henry Marsh: “Tenho um armário cheio dos meus piores casos”

É muito raro um médico admitir os seus erros. Quanto mais um neurocirurgião reputado, que passou a vida a operar o cérebro, o órgão que nos confere humanidade. É disso que fala o livro do britânico Henry Marsh, agora lançado em Portugal.

Foto
O neurocirurgião britânico Henry Marsh DR

Os seus pais – um britânico advogado dos direitos humanos e uma alemã que teve de abandonar o seu país para fugir à Gestapo – participaram de perto na criação da Amnistia Internacional. E incutiram ao filho, Henry, a vontade de tornar o mundo melhor.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Os seus pais – um britânico advogado dos direitos humanos e uma alemã que teve de abandonar o seu país para fugir à Gestapo – participaram de perto na criação da Amnistia Internacional. E incutiram ao filho, Henry, a vontade de tornar o mundo melhor.

Ele decidiu fazê-lo através da neurocirurgia. Mas, apesar dos sucessos clínicos que obteve, cedo se deparou também com os graves dilemas e tragédias que surgem, na vida de um médico, devido aos erros que comete quando tenta extirpar tumores do mais complexo e delicado órgão humano.

Henry Marsh não tem medo de chamar as coisas pelo nome e de contar estas histórias terríveis – não para pedir desculpa, mas para evitar que outros cometam os mesmos erros do que ele. Num livro publicado no ano passado no Reino Unido, pôs a nu os mais dolorosos momentos da sua longa carreira – e a culpa, até a vergonha, que por vezes sentiu perante os doentes e as suas famílias (uma vez, até lhes pediu para o processarem por isso).

O livro tornou-se um best-seller e já foi traduzido numa dezena de línguas (há mais para vir). E chega a Portugal pela Lua de Papel, sob o título Não Faças Mal – Reflexões de um Neurocirurgião sobre os Erros, a Culpa e o Lado Humano da Medicina. Há alguns dias, de passagem por Lisboa para o lançamento, Henry Marsh falou com o PÚBLICO. Por detrás de uma subtil ironia muito britânica – e de uma mistura algo paradoxal de falta de modéstia e de humildade –, ainda hoje, aos 66 anos, a emoção vem ao de cima quando relembra alguns dos seus casos mais trágicos.

Sempre quis ser médico?

Não. Mas criei-me num ambiente muito virado para a ideia de tornar o mundo melhor. Recebi uma típica educação de classe média alta britânica – andei anos a estudar latim e grego antigo. Estudei política, filosofia e economia em Oxford, mas a dada altura rebelei-me e larguei tudo, deixando toda a gente em choque.

Passado um ano, decidi que queria ser médico. Gosto muito de usar as minhas mãos, sou uma pessoa muito prática (sou um fetichista das ferramentas e tenho uma oficina em casa onde construo móveis).

Regressei a Oxford, acabei o curso e tive muito boas notas. Graças a isso – e também a uma pequena bolsa do governo e ao apoio financeiro do meu pai e da minha primeira mulher –, pude ir logo para medicina.

Quando é que soube que queria ser neurocirurgião? A doença do seu filho em bebé teve alguma influência?

Suspeito que essa minha experiência pessoal, quando ainda era um jovem médico e o meu filho de três anos teve um tumor cerebral – ao qual, felizmente, sobreviveu –, me tenha mudado para melhor em certos aspectos. Mas não foi nessa altura que decidi fazer neurocirurgia.

Foi no dia em que, quase por acaso, assisti à minha primeira operação ao cérebro. Foi realmente uma epifania, soube logo que era o queria fazer e nunca me arrependi dessa decisão.

Acha que a neurocirurgia é uma das piores profissões do mundo?
É um trabalho horrível em muitos aspectos. É como sofrer de uma espécie de doença bipolar [ri-se]. Passa-se do desalento total dos fracassos à tremenda excitação dos sucessos. De facto, as coisas podem correr muito mal. Mas é tão interessante.

Operar é fácil, divertido, entusiasmante. Mas os problemas humanos com que nos defrontamos durante o processo da tomada de decisão (de operar ou não), a excitação produzida pela operação em si – e os desafios imensos que surgem nas nossas tentativas de ajudar o doente e a sua família (que muitas vezes fracassam) – são extraordinários. Ainda estou completamente apaixonado pela neurocirurgia.

Qual foi o seu pior caso?
Houve muitos. Não há um caso pior do que todos os outros. Tenho um armário cheio dos meus piores casos. Alguns deles, apesar de não serem devidos a erros meus, são insuportavelmente tristes. Por exemplo, há uns 15 a 20 anos, operei uma criança que tinha um tumor maligno do cérebro e que ia morrer fosse como fosse. E a criança esvaiu-se em sangue na mesa de operação.

É muito invulgar que um doente morra durante a cirurgia – e é uma experiência abominável. Temos de acabar mais ou menos a operação, coser o couro cabeludo. Desliga-se o ventilador. As enfermeiras estão à beira das lágrimas. Normalmente, a atmosfera no fim de uma operação é animada, toda a gente fala, mas aqui temos o cadáver de uma criança na sala.

Não me senti particularmente culpado nessa altura, porque sabia que era um caso muito difícil e que a criança ia morrer. Mas tive de ir falar com a mãe. Ora, como uma morte durante a operação é uma coisa tão rara, quando preparo as famílias para uma cirurgia muito invasiva não lhes digo que isso poderia acontecer. Mas neste caso, tive de anunciar logo à mãe que a criança tinha morrido – e mesmo hoje sinto dificuldade em falar disso. 

Eu estava tão alterado que a mãe da criança me abraçou e disse que me perdoava. Foi provavelmente uma das mais comoventes e dolorosas experiências de toda a minha vida [está à beira das lágrimas]. Porque ser perdoado é algo de extraordinário, de especial, de muito raro. Foi ao mesmo tempo terrível e maravilhoso.

No seu livro, fala sobretudo dos seus erros.
Há de facto erros terríveis pelos quais nos sentimos culpados. Mas que, de alguma maneira, temos de nos perdoar para poder seguir em frente. Mas isso não significa que não sentimos nada pelos nossos doentes. Pelo contrário, é a minha convicção que, para se ser um bom médico, é preciso enfrentar esses erros. Só conseguimos aprender através dos nossos erros; os êxitos são maus para nós.

É um pouco paradoxal, mas o mais importante é sermos honestos com nós próprios e distinguirmos entre a má sorte e o erro, porque no segundo caso podemos corrigi-lo na vez seguinte.

Alguns dos meus doentes ficaram terrivelmente lesados devido a erros que, de certa maneira, foram erros de descuido ou de excesso de confiança da minha parte. Acho que, em parte, escrevi o livro para tentar fazer as pazes com essas más experiências.

Há uns tempos, tentei lembrar-me de todos os piores erros que cometi. Foi muito doloroso – e cheguei à conclusão de que esses erros foram todos ao nível da tomada de decisão. Não têm nada a ver com a firmeza das mãos do cirurgião, é a decisão de operar ou não que conta. E isso tem tudo a ver com valores humanos, valores psicológicos, o quão honesto somos com nós mesmos. É um grande problema.

Também houve êxitos.
Sim, no livro também falo de algumas histórias de sucesso. Mas talvez devido à minha personalidade, acho que os fracassos são mais interessantes [ri-se]. É como nos jornais: são as más notícias que vendem jornais, não as boas. Claro que houve sucessos – e quando as coisas correm mal, preciso de me lembrar que, na maioria dos casos, as operações correm bem. Mas aterroriza-me a ideia de me tornar complacente, auto-satisfeito.

O seu livro é uma confissão? Fala de culpa e de vergonha. Foi por isso que o escreveu?
Não. Já me perdoei os meus erros e problemas. Sinto-me intensamente orgulhoso do meu trabalho, por fazer o que faço arriscando falhar; não tenho vergonha. Também não estou a pedir às pessoas para me perdoarem; estou simplesmente a tentar fazer com que percebam que a medicina é bastante diferente do que pensam.

Também quero tentar restabelecer a relação médico-doente, que acho estar a ser destruída por aqueles que cada vez mais vêem a medicina como um negócio. Não é um negócio e a relação médico-doente ainda é muito real – tem a ver com confiança, com o sentido da vida. Mas grande parte dessa relação foi-se perdendo, em detrimento da profissão médica e dos doentes.

Num artigo muito interessante sobre o meu livro na revista New Yorker, o autor diz uma coisa que eu não tinha percebido sobre mim próprio: que o meu livro é uma expressão do meu profundo medo de me tornar indiferente ao sofrimento dos meus doentes. É muito fácil desviar o olhar – mas em certa medida, temos de ser capazes de o fazer. Mas é um equilíbrio muito difícil de atingir e que tem de doer. Odeio esses grandes cirurgiões internacionais pomposos que dizem que obtêm sempre resultados perfeitos. Talvez por inveja e talvez porque não acredito que estejam a dizer verdade.

Mas é possível operar no cérebro humano sem se tornar insensível ao sofrimento dos outros?
Acho que existe um risco real de se tornar insensível. Mas, repito, é preciso encontrar o equilíbrio entre a compaixão e o desapego. Se sentíssemos pelos nossos doentes o que sentimos pela nossa família, não conseguiríamos fazer o nosso trabalho.

Temos de ser capazes de desapego do ponto de vista profissional sem perder a nossa humanidade no processo. Mas estas são questões que os médicos nunca discutem entre si. Há muitos bons médicos, mas não falamos destas coisas entre nós.

Como gere esse equilíbrio? Diz sempre a verdade aos seus doentes?
Não! Um dos meus professores dizia: “Nunca devemos mentir aos doentes, mas nunca devemos privá-los de esperança.” É isso que é muito difícil acertar. Não podemos dizer ao doente que tem uma probabilidade de 5% de morrer ou de ter uma lesão cerebral e pedir-lhe para decidir o que quer fazer. Temos de o ajudar a decidir – e sobretudo, temos de ter muito claro, na nossa cabeça, aquilo que pensamos ser a decisão certa. E depois, apresentamos as coisas ao doente de uma maneira positiva.

Diz que decidir se vai operar ou não é a parte mais difícil do seu trabalho.
É. Uma vez começada a operação, não podemos voltar atrás, temos de operar e pronto. Mas quando recomendo uma operação a um doente, a apreciação dos riscos está nas minhas mãos – e deriva de uma avaliação e não de um simples facto. Por isso, essa decisão está sujeita a todo o tipo de enviesamentos cognitivos e erros da minha parte (o mesmo vale para os riscos de não operar).

A tomada de decisão é inacreditavelmente difícil – e particularmente na cirurgia do cérebro. Os leigos pensam que é simples e directa: ou uma pessoa precisa de ser operada ou não precisa. Mas é muito, muito mais complicado.

Há também outro problema: os cirurgiões querem sempre operar. “Para um homem com um martelo, tudo são pregos”, como dizia alguém. Os cirurgiões ingleses costumam dizer que são precisos três meses para aprender a fazer uma operação, três anos para aprender quando a fazer – e 30 anos para aprender quando não a fazer. O tratamento e a cirurgia excessivos são um problema corrente – em especial nos sistemas comerciais, capitalistas, de cuidados de saúde, como os dos EUA.

A sorte também é importante em neurocirurgia?
Na cirurgia do cérebro sim, porque conforme o tumor estiver ou não colado ao cérebro ou às grandes artérias cerebrais, o desfecho pode ser totalmente diferente. Mais uma vez, é preciso avaliar cada nova situação – e, por vezes, optar por deixar ficar um pedacinho do tumor para não arriscar ir demasiado longe. O óptimo é o inimigo do bom.

Mas o mais crucial é saber se uma operação correu mal devido à má sorte ou a um erro grave. E quando uma operação corre bem, temos de admitir que tivemos sorte. É algo que sinto cada vez mais.

Quando adquiri experiência e comecei a ter alguns desastres horrorosos, tornei-me um pouco mais modesto. Na cirurgia do cérebro – ao contrário da neurocirurgia da espinal medula –, há sempre um desastre à espera de acontecer.

Alguma vez foi “demasiado longe”?
Sim. Deixei um doente em estado vegetativo permanente porque quis extrair o tumor todo e rasguei uma artéria. A seguir, recusei-me a operar esse tipo de casos durante vários anos. Mas gradualmente, tornei a fazê-lo. Voltaria hoje a operar aquele doente? Provavelmente sim. Mas saberia quando parar.

Adaptou à cirurgia do cérebro uma técnica em que o doente permanece acordado durante a operação.
Sim. Tecnicamente, é muito simples operar os doentes sob anestesia local. O cérebro não sente dor. Não há receptores da dor no cérebro. Se não tivesse sido eu, teria sido outra pessoa a fazê-lo, mas fui de facto o primeiro.

Operar os doentes sob anestesia local já era habitual nos casos de epilepsia. E eu adaptei-o à cirurgia de certo tipo de tumores cerebrais. É que, se o doente estiver acordado, em princípio podemos reduzir o risco de ir longe demais porque podemos pedir ao doente, em qualquer altura, para falar quando operamos em áreas da fala, ou para se mexer quando operamos em áreas motoras. Quando comecei a aplicar o método, em 1989, foi controverso. Hoje, é a norma em todo o mundo.

Parte da minha atracção por este método é filosófica. Para operar, utilizo sempre um microscópio binocular – são 200 mil dólares de maquinaria óptica que tornam o mundo mais real do que a própria realidade. E também tenho uma câmara de vídeo montada no microscópio que transmite as imagens para um grande ecrã de televisão. Assim, as enfermeiras e os outros médicos podem ver o que estou a fazer. Mas também costumo perguntar aos doentes se querem ver o seu cérebro. E aos que aceitam, digo-lhes que vão ser das pouquíssimas pessoas na história do planeta Terra a terem visto o seu próprio cérebro [ri-se].

Uma vez, estava a operar um doente na área visual, do lado esquerdo do cérebro, que vê coisas situadas do lado direito da pessoa – o que significa que o córtex visual esquerdo do doente estava a olhar para si próprio no televisor [situado à sua direita]. Acho que isto é uma espécie de equivalente metafísico do chamado feedback acústico [ou “efeito Larsen”, que provoca uma amplificação sonora explosiva quando o som fica em circuito fechado entre um microfone e um altifalante, por exemplo]. E eu achei que ia haver uma explosão visual! De facto, quanto mais pensamos no cérebro, mais estranhas as coisas se tornam. É de loucos.

Como é que os seus colegas neurocirurgiões têm reagido à honestidade que mostra no seu livro?
Acho que os meus colegas mais próximos sentem bastante orgulho porque sou muito conhecido e porque o livro dá uma boa imagem do nosso serviço. Mas muito poucos têm falado do livro comigo.

Mas recebi milhares de emails e de cartas – alguns vindos dos mais conceituados neurocirurgiões norte-americanos – que tinham gostado muito do livro. Nos EUA, é quase impossível um cirurgião falar honestamente dos problemas que enfrenta.

John Jay [Wellons], um dos mais famosos, disse-me mesmo que o meu livro era o único, dos muitos que tinha lido sobre neurocirurgia, que conseguia realmente descrever o que é. Sei que me estou a gabar e que não se faz, mas foi muito gratificante.

Tem trabalhado em muitos países, levando para lá a sua técnica.
Sim. Trabalho há 24 anos na Ucrânia no meu tempo livre. Sou um bocado maluco: a minha ideia de férias é ir para países disfuncionais fazer neurocirurgia. E tenho uma espécie de atracção fatal por países bastante problemáticos: Ucrânia, Nepal, Sudão. Gosto de me sentir útil – e fiz lá grandes amigos. Hoje em dia, o meu papel consiste sobretudo em ensinar os jovens médicos, principalmente para evitar que cometam os mesmos erros que eu.

Estava à espera de se tornar o autor de um best-seller?
Não. Sabia que o estava a escrever era invulgar, mas estava, como já disse, simplesmente a escrever para mim próprio. Na realidade, o livro é uma espécie de monólogo interior.