Mãe, morreste-me
Pedi para te ver, mas os médicos e enfermeiros não quiseram esperar pelos meus olhos abertos, abertos de espanto como estes braços à tua espera
Mãe, hoje nasci e não te vi, hoje nasci para te ver morrer. Não te vi, não te senti, não te beijei nem te chorei, não te toquei nem fui tocado, não me deitei sobre ti, a minha pele contra a tua, o meu calor dentro de ti agora fora de ti, não te disse olá e não pude dizer adeus.
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Mãe, hoje nasci e não te vi, hoje nasci para te ver morrer. Não te vi, não te senti, não te beijei nem te chorei, não te toquei nem fui tocado, não me deitei sobre ti, a minha pele contra a tua, o meu calor dentro de ti agora fora de ti, não te disse olá e não pude dizer adeus.
Mãe, hoje nasci e desligaram as máquinas. Não esperaram, já tinhas feito tanto, a tua carne à espera da minha carne, 107 dias inteiros, o teu amor infindo a prender-te à terra, tão longe da alma, tão perto de mim, só à espera deste dia para poderes partir, sem mim, para o que resta de ti ao lado de um Deus qualquer, desses que povoam os céus e o universo de crenças e histórias de uma vida para além da terra, mas onde, estou certo, um dia nos teremos outra vez.
Mãe, hoje partiste por mim, mas também por causa de mim, e nunca te vou ouvir dizer ou chamar o meu nome, nunca te vou ouvir a voz ou conhecer o meu nome na tua boca, nas tuas palavras, nem o teu sorriso e muito menos as tuas lágrimas.
E, se calhar, gostava de te ter visto nem que fosse uma vez só. Talvez, quem sabe, me lembrasse de ti sem ser por estas fotografias ou notícias de jornal onde o que importa é a medicina, onde o que interessa é a tecnologia mais toda a dedicação de médicos e enfermeiros, sem que por isso se pergunte à mãe que está morta ou à criança ainda por viver o que cada um quer, talvez por medo da resposta, não fossemos os dois querer morrer dentro um do outro e para sempre.
Mãe, não pedi para nascer. Acho que ninguém pede. Pedi para te ver, mas os médicos e enfermeiros não quiseram esperar pelos meus olhos abertos, abertos de espanto como estes braços à tua espera.
E por isso desligaram as máquinas. Uma a uma. O ventilador por onde te sentia o peito, o sono, as alegrias e preocupações; o electrocardiograma onde te ouvia o coração bater em compassos agudos, 90 vezes por minuto, 1400 vezes por hora, a única maneira de te saber viver; as sondas e os cateteres por onde tudo te saía e tudo te entrava, sem licença ou perdão, mais a sonda nasogástrica, as seringas e a algália. Deixaram-te como vieste ao mundo para poderes, lentamente, órgão após órgão, fôlego após fôlego, palpitação após palpitação, deixar o mundo, até que um dia te veja outra vez.
Bebé milagre? Nem por isso. Milagre foi não morrer, 107 dias por inteiro. Milagre foi ter tido uma mãe como a minha. E no fim poder dizer-lhe: Mãe, hoje nasci, mãe, hoje morreste-me.