Aurélia de Sousa: a consagração de uma pintora, a descoberta de uma fotógrafa

Uma dupla exposição co-organizada pelas autarquias do Porto e de Matosinhos assinala os 150 anos do nascimento de Aurélia de Sousa, a que só nas últimas décadas vem sendo reconhecido o lugar que sempre foi o seu, ao lado de Columbano Bordalo Pinheiro, Henrique Pousão ou António Carneiro.

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Dividida entre a Casa Museu Marta Ortigão Sampaio, no Porto, e o Museu da Quinta de Santiago, em Leça da Palmeira, Matosinhos, a exposição Aurélia, mulher artista, inaugurada esta segunda-feira, celebra os 150 anos de um grande nome da arte portuguesa, Aurélia de Sousa (1866-1922), autora de centenas de pinturas, muitas delas inacessíveis ao público, e de um enorme acervo de fotografias, quase todo ainda por estudar.

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Dividida entre a Casa Museu Marta Ortigão Sampaio, no Porto, e o Museu da Quinta de Santiago, em Leça da Palmeira, Matosinhos, a exposição Aurélia, mulher artista, inaugurada esta segunda-feira, celebra os 150 anos de um grande nome da arte portuguesa, Aurélia de Sousa (1866-1922), autora de centenas de pinturas, muitas delas inacessíveis ao público, e de um enorme acervo de fotografias, quase todo ainda por estudar.

Que esta exposição, comissariada pela historiadora de arte Filipa Lowndes Vicente, mais do que prestar tributo a um artista do passado, possa ainda servir para revelar a um público não especializado uma pintora que morreu há quase cem anos é a confirmação de que na cena artística de 1900 ser mulher era uma considerável desvantagem competitiva. É verdade que no Porto, onde a artista viveu quase toda a sua não muito longa existência – morreu aos 55 anos –, o nome de Aurélia de Sousa é hoje familiar a muita gente, mas talvez mais graças à escola secundária baptizada em sua homenagem do que ao efectivo conhecimento da sua obra.

E se nas últimas décadas o reconhecimento da sua importância tem vindo gradualmente a aumentar, e são já várias as teses académicas dedicadas à sua pintura, Aurélia de Sousa também começava a correr o risco de se tornar um desses artistas associados a uma só obra-prima, no caso o extraordinário Auto-retrato dito do casaco vermelho, pintado por volta de 1900, e que Raquel Henriques da Silva, na monografia que dedicou à pintora em 1992, não hesita em considerar “o mais belo auto-retrato da pintura portuguesa”.

A inclusão deste quadro na exposição Soleil et Ombres, l’Art Portugais du XIXème, que José-Augusto França organizou em Paris, em 1987, “é o início de um novo reconhecimento de Aurélia de Sousa, que a partir daí nunca mais parou”, diz ao PÚBLICO a historiadora de arte, acrescentando que a pintora do Porto “é hoje considerada um dos mais importantes artistas portugueses de 1900, não por ser uma mulher, mas por ser tão boa como [Henrique] Pousão, António Carneiro ou Columbano [Bordalo Pinheiro]”.

O Auto-retrato do casaco vermelho está hoje conservado e exposto no Museu Nacional Soares dos Reis (MNSR), que se associou a estas comemorações com a apresentação pública, na segunda-feira à noite, de uma outra obra da pintora recentemente adquirida: O Vestido Verde.

Filipa Lowndes Vicente não tem dúvidas de que o Auto-retrato do casaco vermelho “é fabuloso”, mas quase agradece não o ter na exposição que comissariou. Por um lado, porque quem o quiser ver não tem de andar muito para o ir admirar ao MNSR, que fica relativamente perto da Casa Museu Marta Ortigão Sampaio. Por outro, porque a sua ausência é uma oportunidade para “mostrar que a Aurélia de Sousa tem outras obras fabulosas, incluindo outros auto-retratos”.

Entre eles, conta-se o auto-retrato arlequinesco no qual aparece representada com um enorme laço preto de cetim, obra que integra a imagem que Filipa Lowndes Vicente escolheu para promover a exposição: uma fotografia da autoria de Aurélio da Paz dos Reis, amigo e vizinho da pintora, em que esta posa, com uma camélia a adornar o vestido, junto a este seu quadro, exposto sobre um cavalete.

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A pintora fotografada junto ao seu auto-retrato arlequinesco AURÉLIO DA PAZ DOS REIS

Um quarto só para si

Outro notável auto-retrato é aquele em que se faz representar enquanto Santo António, cuja festa se celebra a 13 de Junho, dia em que a artista nasceu. O quadro ocupa lugar de destaque no pólo portuense de Aurélia, mulher artista, e junto a ele pode ver-se uma fotografia, nunca antes exposta, que Aurélia tirou a si própria vestida de Santo António, e que depois utilizou na pintura desta obra.

Raquel Henriques da Silva lembra ainda “uma Santa Madalena de que se conhece a fotografia, mas não o quadro”, que estará numa colecção particular. “É extraordinário que se tenha auto-representado como Santa Madalena, que não é uma santa qualquer”, diz a historiadora de arte e museóloga. “Aurélia de Sousa foi uma figura muito rica, e a sua relação com a arte, a actualidade da sua pintura, era extraordinária”, acrescenta.

Filipa Lowndes Vicente interessou-se justamente por mostrar este percurso de uma artista que é mulher num tempo em que as pintoras são ainda genericamente encaradas como amadoras. E se são suficientemente boas, o mais a que podem aspirar é, como sucedeu com Aurélia de Sousa, que algum homem lhes elogie o “talento varonil”, como o fez, em 1909, Joaquim Costa, futuro autor da primeira monografia dedicada à pintora, em 1937. 

Nos textos que escreveu para os painéis da exposição, a comissária lembra que Aurélia só chegou à Academia de Belas Artes do Porto aos 27 anos, e que já ia nos 30 e tal quando foi para Paris estudar na prestigiada Academia Julian, poucos anos depois de ali ter andado Henri Matisse. Ou seja, fez o percurso dos bons pintores portugueses da sua geração, mas fê-lo com um significativo atraso, porque para uma mulher era tudo mais difícil: basta pensar que em 1899, quando chega a França, a aceitação de estudantes do sexo feminino na Escola de Belas Artes de Paris era ainda uma novidade, introduzida há apenas dois anos.

E Aurélia foi, em boa medida, uma privilegiada, porque teve a possibilidade de estudar com bons mestres, e dispôs de condições para se dedicar inteiramente à sua arte. “Teve um quarto só para si”, resume Filipa Vicente, citando um célebre texto de Virginia Woolf em que a romancista inglesa observa que “uma mulher tem de ter dinheiro e um quarto só para si se quiser escrever ficção”. 

Duas irmãs em Paris

Nascida em Valparaíso, no Chile, onde o pai fazia então fortuna na construção do caminho-de-ferro, Aurélia vem para o Porto com a família em 1869, aos três anos. O dinheiro amealhado na emigração permitiu ao pai adquirir uma boa casa nas margens do Douro, a Quinta da China, cujos interiores e jardins, e também as belas vistas sobre o rio, servirão de tema a muita da pintura de Aurélia – hoje propriedade de António Mota, da construtora Mota-Engil, é aqui que será lançado o catálogo da exposição, adianta a comissária.

O pai de Aurélia morre quando esta tinha oito anos, e a Quinta da China passa a ser um espaço essencialmente feminino, já que a pintora tinha cinco irmãs e apenas um irmão, ao qual se juntará depois mais um  rapaz, fruto de um segundo casamento da mãe. Um dos mais notáveis quadros expostos na Casa Museu Marta Ortigão Sampaio é um óleo mostrando a mãe da artista, manifestamente inspirado no célebre quadro em que o pintor americano James Whistler pintou a sua própria mãe, Arrangement in Grey and Black No.1, de 1871, que estava exposto em Paris, diz Filipa Vicente, no período em que a pintora portuguesa ali estudou.

Depois de ter tido, desde os 16 anos, aulas particulares de desenho e pintura com Costa Lima, inscreve-se em 1893, juntamente com a sua irmã Sofia, na Academia de Belas-Artes do Porto, onde foi aluna de Marques de Oliveira. Segue para Paris em 1899, para estudar na já referida Académie Julian, e Sofia junta-se-lhe logo no ano seguinte.

Sem direito a bolsas, que não eram atribuídas depois dos 25 anos, as duas irmãs só conseguem viver e estudar em Paris graças ao apoio financeiro dos seus cunhados, José Augusto Dias, casado com Helena, a irmã mais velha, e Vasco Ortigão Sampaio, casado com Estela, cuja importante colecção de arte foi herdada e prosseguida pela filha Marta, também ela pintora; a casa-museu com o seu nome acolhe agora a exposição dedicada à tia.

Aurélia regressa ao Porto em 1902, não sem antes ter viajado com a irmã por vários países europeus, e nos 20 anos seguintes, até à sua morte, vive com a família na Quinta da China, onde dispõe de um atelier, e decerto também de um laboratório de revelação de fotografias, e participa activamente nos meios artísticos do seu tempo. Colabora em várias exposições colectivas, vai vendendo algumas obras – “pintou muitas flores, porque vendiam bem, era o gosto da época”, diz Filipa Vicente –, dá aulas particulares, desenvolve um significativo trabalho como ilustradora e experimenta outras técnicas, também documentadas nesta exposição, como a pintura de azulejo. E fotografa. Quer para preencher os álbuns de família, quer para a auxiliar na sua pintura, quer como “prática artística”, num estilo “pictorialista”, que repercute na nova arte preocupações próprias da pintura.

A primeira retrospectiva da obra de Aurélia de Sousa foi realizada 14 anos após a sua morte, em 1936, no Salão de Belas Artes do antigo Palácio de Cristal. Estiveram expostas 266 obras, quase todas vindas de colecções particulares. Uma exposição com ambição semelhante só voltaria a ocorrer em 1973, no Soares dos Reis, onde se mostraram 161 peças. É sobretudo aí que arranca o movimento mais contemporâneo de consagração de Aurélia de Sousa, que passa também pelos trabalhos de Raquel Henriques da Silva ou, entre outros, de Maria João Lello Ortigão de Oliveira, cuja tese de doutoramento, Aurélia de Souza em Contexto: a Cultura Artística no Fim de Século, veio revelar em 2002 várias obras da pintora até então desconhecidas. 

Um museu secreto

Aurélia, mulher artista não pretende de todo ser uma exposição exaustiva, nem tinha condições para o ser, embora Filipa Lowndes Vicente espere que a homenageada venha a ter um dia a grande exposição retrospectiva que a sua obra justifica.

Seguindo aqueles que já eram, respectivamente, os pontos fortes das duas colecções que constituem a base desta exposição, o acervo da Casa Museu Marta Ortigão Sampaio e a colecção que uma irmã de Marta Ortigão doou à Câmara de Matosinhos, a comissária optou por concentrar na Quinta de Santiago as paisagens e naturezas mortas de Aurélia de Sousa, reservando para o núcleo do Porto os retratos e auto-retratos, os interiores intimistas, com as mulheres da família nas suas ocupações quotidianas, e algumas cenas de rua, como as que a artista pintou em Paris ou na Bretanha, onde passou férias com colegas da Academia Julian.

No Porto está também o notável biombo que Aurélia pintou para as suas sobrinhas, com cenas de uma história de coelhos muito provavelmente inspiradas no Peter Rabbit da sua contemporânea Beatrix Potter. No dia 18, sábado, a sessão do ciclo Um Objecto e seus Discursos por Semana, promovido pela CMP, será dedicada a este biombo.

Nos limites impostos pelo espaço e pela muito reduzida percentagem do acervo fotográfico de Aurélia que está disponível ao público, ou mesmo aos investigadores, a exposição tenta ainda assim dar também destaque a esta dimensão da artista, mostrando algumas das suas fotografias, bem como as máquinas que usou. Com a colaboração do Centro Português de Fotografia, o Museu da Quinta de Santiago expõe ainda uma selecção de máquinas fotográficas do período que vai de 1880 a 1920.

Outro núcleo importante da exposição, e que corresponde ao interesse da comissária em questionar a condição da mulher artista no tempo de Aurélia, e a fronteira difusa entre amadorismo e profissionalismo, é o dedicado a outras pintoras, a começar por Sofia de Sousa (1870-1960), que Raquel Henriques da Silva acha “sem dúvida muito interessante”, embora, na sua opinião não tenha “a excepcionalidade da irmã”. Os apetrechos de pintura que se vêem na exposição tanto podem ter pertencido a Aurélia como a Sofia. Em Matosinhos, a comissária seleccionou algumas pintoras representadas nas colecções municipais, como Margarida Ramalho, Branca Ferraz Monteiro, Eduarda Lapa ou Alda Machado dos Santos, todas elas nascidas ainda no século XIX, e no Porto recorreu à colecção da Casa Museu, escolhendo sobretudo obras da própria Marta Ortigão Sampaio (1897-1978), mas também da sua irmã Estela Ortigão Sampaio (1910-1935), de Margarida Costa (1881-1937) e da sua filha Fernanda Costa (1912-1968), ou ainda de Helena Roque Gameiro (1895-1986), uma das três filhas artistas do pintor Roque Gameiro.

Foi já no início deste ano que o pelouro de Cultura da Câmara do Porto desafiou Filipa Lowndes Vicente a comissariar esta exposição, mas o projecto começou a ser pensado ainda no tempo de Paulo Cunha e Silva e, desde o início, teve o duplo objectivo de celebrar os 150 anos de Aurélia de Sousa e de dar a conhecer essa instituição fascinante, mas quase secreta, que é a Casa Museu Marta Ortigão Sampaio.

Com um acervo que, para lá dos espólios de Aurélia e Sofia de Sousa e da restante colecção de pintura, inclui as valiosas jóias de Marta Ortigão Sampaio, e ainda louças das Caldas da Rainha, móveis e reconstituições dos ambientes da grande burguesia portuense de meados do século XX, o museu está instalado num edifício modernista da Rua de N. Sra. Fátima, encomendado ao arquitecto José Carlos Loureiro, que o construiu nos anos 50 em diálogo com a sua obra-prima de arquitectura de habitação, o vizinho e contemporâneo Edifício Parnaso.

Para acomodar Aurélia, mulher artista, foi preciso construir paredes falsas e alterar bastante a fisionomia habitual da casa, de modo que se agora há uma excelente razão para visitar este museu, também vale a pena voltar depois de Outubro, quando encerra esta exposição, para o apreciar no seu estado normal.