Imigração e domésticas: cenário ideal para pôr direitos debaixo do tapete

Uma convenção da Organização Internacional do Trabalho exige trabalho digno para as domésticas. Portugal assinou e dia 17 de Julho entra em vigor. Europa quer regras comuns para regular um mercado que continua desvalorizado. Histórias de trabalhadoras domésticas e da limpeza e cuidadoras

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Antónia, natural de São Tomé e Príncipe, trabalha como empregada doméstica nos arredores de Lisboa há seis meses. E há seis meses que pede aos patrões para lhe assinarem um contrato, a única forma de obter um visto de residência. Há seis meses que ouve: “Para a semana”.

A ex-patroa da brasileira Maria Aparecida, uma embaixatriz, não a deixava tomar banho mais do que uma vez por semana. A filha da patroa da são-tomense Domingas estava sempre a insistir para que lavasse as mãos a toda a hora. “É a minha cor que é assim escura, se vir a mão não está suja”, respondia-lhe.

Armanda é guineense e chegou há sete anos a Portugal – imigrou por razões de saúde. Trabalha para uma empresa de prestação de cuidados há mais de dois anos e nunca teve férias pagas: se tirar férias não ganha, se faltar para ir ao médico descontam-lhe o dia.  

A brasileira Fernanda percebeu que a empresa de limpezas onde trabalhava usava estratagemas para evitar o contrato de trabalho, “passaporte” para a sua legalização – por exemplo, evitava dar-lhe 40 horas de trabalho semanais que, ao final do mês, lhe garantiriam o ordenado mínimo nacional.

O trabalho doméstico “é uma das profissões mais antigas e das mais importantes para milhões de mulheres em todo o mundo”, diz a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Mas ser doméstica (como ser prestadora de cuidados ou empregada de limpeza) é uma profissão altamente desvalorizada. Pertence às chamadas profissões invisíveis. O sector doméstico está constantemente a aumentar, segundo a OIT, mas “continua a ser o mais precário, o mais mal pago, o menos protegido, um dos mais arriscados, e certamente, um dos menos prestigiados, mantendo um estatuto de não-trabalho”.

Esta é uma área ocupada sobretudo por mulheres: dos 2,5 milhões de trabalhadores domésticos na União Europeia, 88% são mulheres, estima a Organização Internacional do Trabalho. Em 2012, Portugal (5,1%), com a Espanha (25%), Itália (27,5%), França (23%) e Alemanha (8,5%) tinha o maior número de trabalhadores domésticos identificados, estimou a Comissão Europeia.

Quando a imigração se junta ao trabalho doméstico ou aos serviços de limpeza nasce a situação perfeita para se varrer os direitos para debaixo do tapete. De forma mais ou menos explícita cria-se, muitas vezes, uma relação de poder e de manipulação que deixa quem está na posição de empregado à mercê dos humores de quem contrata. As histórias de Antónia, Armanda e Fernanda, nomes fictícios, Maria Aparecida e Domingas, nomes reais, são apenas algumas de entre milhões. 

Por ocorrer sobretudo na economia paralela, o trabalho doméstico é um dos sectores com o maior risco de exploração laboral grave na União Europeia (UE), alerta a Agência dos Direitos Fundamentais da UE. Conjugada com a imigração irregular potencia ainda mais o risco de abusos, pois é um mercado menos regulamentado e com menos mecanismos de controlo da aplicação das normas, continua.

Por isso, a convenção 189 da OIT de 2011 que exige trabalho digno para as domésticas e condições de trabalho iguais aos outros trabalhadores foi assinada por vários países, inclusivamente por Portugal. Entra em vigor em Portugal a 17 de Julho e implica que se implementem as obrigações – prevê-se que estabeleça uma idade mínima para a prestação de trabalho doméstico, previna situações de abuso e violência, assegure condições de trabalho dignas e justas, igualdade de tratamento, indemnizações e subsídios e que informe os trabalhadores dos seus direitos (entre outras).

Apesar de ser difícil obter dados sobre um sector que opera na economia informal, e fica por isso escondido, as pesquisas da OIT mostram que só 10% dos 52,6 milhões de trabalhadores domésticos estimados no mundo em 2010 estavam abrangidos pela legislação do trabalho.

Já o Parlamento Europeu quer regras comuns na UE para o trabalho doméstico e prestação de cuidados de modo a existirem remuneração e normas mínimas de protecção social. A eurodeputada pelo PS Liliana Rodrigues, da comissão parlamentar dos Direitos da Mulher e da Igualdade dos Géneros, diz ao PÚBLICO que é preciso os estados membros não penalizarem os trabalhadores domésticos ou os prestadores de serviços quando eles decidem sair do círculo - “porque isto acaba por ser um trabalho clandestino”.

O que “implica coragem e vontade política”. O relatório pretende introduzir o quadro geral de personalização do trabalho doméstico, e da prestação de cuidados, fazendo a normalização da profissão.

A Autoridade para as Condições de Trabalho não pode entrar em casa das pessoas, só com um mandato judicial.

“Fechada” no Minho

Maria Aparecida, 65 anos, começou a trabalhar em casa de uma embaixatriz em Lisboa no dia 1 de Julho. No final do mês pediu as contas para ir embora. “Ela não deixava tomar banho, só uma vez por semana. Não deixava sentar no sofá, só podia ficar no meu quarto. Sentava-me num banco e numa mesa à parte na cozinha”, conta numa rua movimentada de Lisboa, perto do novo trabalho.

Era o filho da embaixatriz quem pagava o ordenado de mil euros à brasileira Maria Aparecida. Ela não aguentava. “Controlava a minha luz, ficava no meu pé. Andava a perseguir-me para sacudir os tapetes. Dizia que eu não sabia cozinhar. Que não sabia escolher a fruta – que escolhia a fruta verde. Dizia que mentia. Às vezes tinha que jurar as coisas.”

Quando anunciou que estava de partida, os filhos da embaixatriz insistiram para ela ficar, prometeram que a mãe ia mudar de comportamento. E Maria Aparecida deu “uma chance”. Tudo ficou igual. Quando já tinha decidido que iria mesmo despedir-se, mas tendo que trabalhar por mais um mês, a embaixatriz levou-a para uma quinta sua no Minho. Tinha-lhe dito que ia uns dias, mas nunca mais voltava a Lisboa. 

As semanas seguiram-se. Maria Aparecida pensou: “não vou passar o Natal aqui”. Queixou-se ao filho: “estou-me a sentir escrava e a sua mãe não vai embora”. Ligou a outra pessoa que a iria substituir para ir para o Minho. Quando ela chegou, entrou no táxi que tinha levado a outra e pôs-se a caminho de Lisboa.

Nunca fez queixa. Porque gostava muito dos filhos da embaixatriz. “Ainda hoje me telefonam.”

Fernanda marca encontro à saída do metro. Tem uma hora para a entrevista, entre a ida aos escritórios que vai limpar. Há mais de um ano que trabalha para uma empresa de limpezas e conseguiu o que poucas ali conseguem: um contrato.

Quando começou, a estratégia era trabalhar o máximo de horas possível para chegar às 40 semanais e forçar o patrão a fazer um contrato (estava a passar recibos verdes através de um amigo). Anda entre 14 empresas a fazer limpezas: há dias em que muda de sítio cinco vezes. “Na segunda-feira estava com um cansaço que parecia 6.ª feira”, desabafa. Descansa um dia por semana.

O número de horas que trabalha por mês varia. Percebeu, porém, que a tinham tentado “enganar” com as contas do mês passado, pagar-lhe menos horas do que aquelas que trabalhou, e ver “se passava”. “Às vezes as pessoas começam a julgar, porque trabalho nas limpezas e acham que não tenho estudos.” E sabe, pelo patrão, que há clientes que não querem negros a trabalhar para eles e há outros que não querem brasileiros – “falam que [os brasileiros] somos trapaceiros, que só pensamos em festa e é difícil trabalhar connosco”.

Fernanda ainda não tem a sua situação regularizada, mas anda a descontar para a Segurança Social, até porque isso era até agora um requisito para obter o visto de residência. Em Janeiro foi marcar a entrevista com o SEF, ficou para Outubro.

A reclamação principal que ouve das colegas é sobre salários baixos. E sobre o contrato que é prometido e nunca chega.

O Sindicato dos Trabalhadores de Serviços de Portaria, Vigilância, Limpeza, Domésticas e Actividades Diversas (STAD) fica em pleno Cais do Sodré, num prédio já antigo – esta era uma zona até há pouco tempo esquecida de Lisboa e que tem sido gentrificada. Com cerca de oito mil sócios, entre os 35 mil trabalhadores de limpezas industrias, esclarece que o salário das domésticas e das trabalhadoras da limpeza está indexado ao salário mínimo nacional, o que dá cerca de 3 euros à hora. Mas as domésticas normalmente ganham entre 5 e 6 euros à hora, “até porque não fazem o horário semanal completo”, segundo Vivalda Silva, a coordenadora nacional.

Trabalho doméstico e de limpeza são dois sectores muito diferentes, sublinha. O grande problema das empresas de limpeza, dizem as queixas, é muitas vezes não quererem pagar feriados ou horas nocturnas, por exemplo. Quanto às trabalhadoras domésticas o sindicato tem dificuldade em chegar a elas porque o local de emprego é propriedade privada.

“Sabemos das dificuldades quando se dirigem a nós. Em geral vemos os direitos a serem bem aplicados no caso das trabalhadoras domésticas nacionais mas depois vemos os direitos a não serem tão bem aplicados no caso das imigrantes. Temos frequentemente imigrantes a dizerem que não receberam o subsídio de férias, que para irem de férias não lhes pagaram o período em que estavam em casa, que foram despedidas sem compensações… E depois a trabalhadora também não sabe que tem direitos mesmo sem contrato escrito - e não tem que ser escrito, a lei diz isso.” 

A lei diz que o contrato “pode ser celebrado a tempo completo ou a tempo parcial sem redução a escrito, salvo tratando-se de contrato a termo (certo ou incerto)”. À falta de um contrato escrito, o contrato fica sem termo.  

O trabalho doméstico está regulado por decreto-lei (n.º 235/92) e “em tudo o que não for incompatível”, aplicam-se as regras previstas no Código do Trabalho, diz o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social em email. “A grande maioria dos direitos e garantias que se prevêem na Convenção 189 [da OIT] já se encontram plenamente em vigor no regime jurídico português”, explica o gabinete ministerial.

Numa das salas do sindicato onde se vêem imagens que evocam lutas de trabalhadores, Vivalda Silva continua: “É [com as imigrantes] que há mais abusos, até porque as pessoas que não estão legalizadas são mais ameaçadas. Temos ligações a associações de imigrantes e são essencialmente domésticas que aparecem, principalmente internas.”

Sem papéis para ir ao SEF

O encontro é de manhã, rápido, porque a qualquer momento um dos filhos da patroa pode ligar e perceber que Antónia saiu. O tempo de conversa é o que duraria uma ida rápida ao supermercado. Sentada no jardim de um subúrbio lisboeta, Antónia conta que tem quatro filhos em São Tomé e Príncipe. Ainda não chegou aos 40 anos e já é avó.

Conseguiu, através de uma tia, vir para Portugal e tentar o trabalho doméstico, a saída profissional mais comum para as mulheres que chegam sem emprego. “Não foi fácil arranjar trabalho. Não tinha visto de residência e por isso não podia trabalhar em nenhuma empresa.” Foi para casa do primo e passava o tempo a chorar porque tem filhos, o pai das crianças está noutro país e não consegue mandar dinheiro para a família. Quem tem que “assumir os filhos e enviar dinheiro para casa” é ela. Ao fim de um tempo conseguiu finalmente trabalho como empregada interna, a trabalhar de segunda a sexta-feira, por 500 euros. “Aceitei porque não tinha como mandar dinheiro para as crianças.”

Faz o trabalho doméstico de limpeza, come à mesa com a família para quem trabalha, vê televisão na sala com eles, até gosta dos patrões. Mas pediu várias vezes para lhe fazerem um contrato. Nunca lho deram - já tem marcação no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras por causa da autorização de residência mas sem o contrato na mão será difícil obtê-la. Queria também ter os papéis em ordem para poder ir à Segurança Social e ser seguida por um médico de família pois tem um problema de saúde. “Já me ofereceram outro emprego mas não fui porque diziam que faziam contrato depois de dois meses a testar. Só não vou porque quero uma resposta deles – se não fizessem, então ia amanhã. Mas não posso levantar e sair. E se me tiram este trabalho? Que será de mim?”

Timóteo Macedo é fundador da associação Solidariedade Imigrante, que tem 26.600 associados de mais de 97 nacionalidades. As instalações na baixa de Lisboa estão sempre cheias. Explica-nos que a situação de pessoas como Fernanda e Antónia será complicada de resolver. Elaborou recentemente, com outras associações, um protesto contra um despacho da nova directora do SEF, Luísa Maia Gonçalves, que restringe a possibilidade de legalização de imigrantes como Fernanda e Antónia.

De acordo com o despacho, os imigrantes não se podem inscrever na Segurança Social se não tiverem autorização de residência. Mas diz a lei (n.º 27/2007, de 4 de Julho, artigo 88.º, que regula a concessão de autorização de residência para o exercício de actividade profissional subordinada) que é possível pedido de autorização de residência a todos os que tenham contrato de trabalho (ou uma relação laboral comprovada por sindicato) e que estejam inscritos na Segurança Social.

Agora com o despacho, o SEF definiu que a entrada regular em território nacional passou a ser “condição impreterível” para a obtenção de autorização de residência, invertendo as regras do jogo. Ou seja, mesmo estando a trabalhar e descontando para a Segurança Social, um imigrante fica impedido de pedir visto se não tiver entrado de forma regular no país e dentro do prazo de validade do visto Schengen (entre 15 a 30 dias). “Os cidadãos que entram directamente em Portugal não chegam aos 5%”, denunciou Timóteo Macedo, para quem “mesmo de Cabo Verde é difícil obter um visto de turismo para Portugal”. Está organizada uma concentração no Martim Moniz, dia 3 de Julho, em protesto contra este despacho.

Segundo o SEF, a medida serve para travar a utilização abusiva da “entrada legal” por estrangeiros que nem estavam em território nacional. O objectivo é “evitar o efeito de chamada de cidadãos estrangeiros em situação irregular no restante espaço Schengen”, e salvaguardar “o interesse nacional”. 

“Os imigrantes são tratados como objectos descartáveis neste país”, afirma Timóteo Macedo, visivelmente indignado, no gabinete da associação. Sublinha que “estão a encontrar todos os subterfúgios para fechar a regularização dos imigrantes que estão a trabalhar e a contribuir para o sistema”. Comenta-nos: “Os imigrantes não podem viver ao sabor da interpretação da lei de um e de outro”.

A associação tem um grupo de mulheres imigrantes, que Jessica Lopes coordena. Apesar de não terem dados sobre o número de imigrantes que escolhem o trabalho doméstico, Jessica Lopes sabe que são principalmente africanas. É sem dúvida o principal sector escolhido por quem chega a Portugal à procura de trabalho. “Para um imigrante é muito importante um contrato de trabalho. Muitas mulheres aceitam condições que talvez não sejam bem legais e ferem os seus direitos. E calam-se”.

Calam-se também em relação aos abusos: “Muitas não têm as folgas que deviam ter, trabalham sem horários, estão disponíveis para tudo. No trabalho de limpeza o que acontece é que muitas vezes as empresas mudam - uma senhora trabalha na cadeia de supermercados X para tal firma e pode estar há anos no mesmo sítio mas já passaram por cinco ou seis empresas. Cada empresa vai com as suas novas regras e contratos. Muitas dessas mulheres não têm a mínima ideia se a empresa está a fazer alguma coisa legal ou não”.

Domingas, 52 anos, são-tomense, em Portugal há sete anos, sabe que o que lhe fizeram é ilegal e por isso recorreu à ajuda dos serviços de apoio à imigração estatais. A filha da patroa disse que ela tinha que assinar uma declaração a despedir-se. E ameaçou-a: “se não assinar, não venha trabalhar”. Conseguiu ir a Tribunal com o caso. Porém, só recebeu uma pequena parte da indemnização a que acha que teria direito. Acusa a filha de ser racista. Passava o tempo a dizer-lhe: “Quando está a fazer comer e a tratar a minha mãe, lave as mãos”. E Domingas respondia que estava sempre de mãos lavadas. “Quando lavo passo álcool. É a minha cor que é assim, se vir a mão não está suja”.

Queixa-se de racismo até nos serviços de saúde. Foi operada. Numa consulta pós-operatório estava à espera da sua vez em pé, não havia cadeiras, sentou-se no chão. A médica não queria. Domingas reclamou. A médica pediu-lhe os papéis das consultas, rasgou-os e disse: “‘Já não há mais consulta’.”  

A forma como é tratada pela patroa faz Armanda, 56 anos, há sete a viver em Portugal, queixar-se. Era professora de Ciências num liceu em Bissau, e hoje está ao serviço de uma empresa de prestação de cuidados médicos, a trabalhar de domingo a sexta-feira numa casa particular a cuidar de um idoso. Além dos cuidados faz outras tarefas domésticas, algo que não está no contrato. A esposa do idoso está bem de saúde mas fala “comigo como se fosse uma criança que está lá para aprender”. “Até me ensina como estender a roupa. Coisas mínimas como se eu fosse burra.”

Ganha cerca de 700 euros se trabalhar o mês completo, o que dá três euros e tal por hora. "Não me tratam como humano, mas como animal.” Armanda, que se sente também explorada pela empresa, está à procura de novo emprego. “Se eu fosse uma pessoa ignorante ela fazia o que queria", desabafa. "Mas não fico calada.”