O dia de agradecer a Brian Wilson e de ouvir o gospel negro de PJ Harvey

Num festival como o Nos Primavera Sound é habitual, por vezes obrigatório, que cada espectador construa o seu roteiro pessoal de concertos. No de Mário Lopes, paragem obrigatória na visita a Pet Sounds e numa PJ Harvey tão perturbadora quanto inspiradora.

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Um momento. River anascotia, a última canção do concerto de PJ Harvey, a desaguar noutro rio. A banda que a acompanhou a largar os instrumentos para juntar vozes em Wade in the water, o superlativo espiritual negro americano, assim encerrando de forma magistral um concerto feito poderoso manifesto. Música como matéria transformadora e actuante, como som arrancado às sombras do tempo como alerta para outro tempo, este que vivemos. Era meia-noite de sábado e precisaríamos de algum tempo de recolhimento, caso ele fosse possível num festival de música, para digerir tudo o que víramos e prosseguir com o roteiro de concertos como se nada se tivesse passado.

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Um momento. River anascotia, a última canção do concerto de PJ Harvey, a desaguar noutro rio. A banda que a acompanhou a largar os instrumentos para juntar vozes em Wade in the water, o superlativo espiritual negro americano, assim encerrando de forma magistral um concerto feito poderoso manifesto. Música como matéria transformadora e actuante, como som arrancado às sombras do tempo como alerta para outro tempo, este que vivemos. Era meia-noite de sábado e precisaríamos de algum tempo de recolhimento, caso ele fosse possível num festival de música, para digerir tudo o que víramos e prosseguir com o roteiro de concertos como se nada se tivesse passado.

Outro momento. Ao final da tarde Brian Wilson, o inventor do genial Pet Sounds, interpretado na íntegra no Parque da Cidade, demora-se um pouco mais na apresentação de uma das suas canções. “Ouçam com atenção a letra. Vão adorá-la”. A canção tem por título I just wasn't made for these times e é, provavelmente, a que melhor representa Brian Wilson e aquela em que o compositor dos Beach Boys melhor se sente representado. Verso chave: “sometimes I feel very sad”.

Foi um concerto para lágrimas (e vimo-las correr em mais que um rosto) e para alegria (e até houve crowd-surfing durante Surfin' USA, procedimento muito adequado a uma banda que tanto cantou o respectivo desporto marítimo). Foi um concerto muito feliz erguido sobre um pano de fundo de tristeza (sentimentos que convivem em tantas das melhores criações de Wilson). Comovente e arrebatador.

No roteiro que escolhemos para o esgotado segundo dia do Nos Primavera Sound, PJ Harvey e Brian Wilson foram destacadíssimos co-protagonistas. Claro que Cass McCombs, cantautor de excepção na América dos cantautores, além de guitarrista admirável, nos deixou a memória povoada pela estrada em aberto de Big wheel, pela beleza desolada de County line ou pela doçura de Dreams come true girl, todas ouvidas ao início da tarde de festival num dos palcos principais. E a descarga eléctrica dos insaciáveis Mudhoney, sobreviventes muito vivos do dito grunge da década de 1990 e liderados por um Mark Arm que entrou em modo Iggy Pop e se tornou um agitador rock'n'roll irresistível, continua a zumbir nos nossos ouvidos agradecidos – quando se ouviu Touch me I'm sick no palco Ponto já nada havia a fazer, estávamos todos contaminados. Sexta-feira também foi o dia dos muito respeitados Tortoise, a banda de Chicago que é ícone do pós-rock mais aventureiro (o que faz jus ao nome do género, portanto) e que, depois do furacão Mudhoney, divagou nos espaços em aberto entre o jazz, o rock, o kraut e a electrónica com a elegância e saber instrumental que fazem a sua assinatura. Nessa altura já avançámos madrugada dentro, já os Beach House davam o concerto que encerraria, no palco principal, o segundo dia de Nos Primavera Sound. Recuemos algumas horas.

O sol brilhava ainda mas já muito público se reunira e todos já tinham arrumado as mantas, lenços ou toalhas que protegiam o descanso dos corpos na relva, o cenário habitual (o indicado, de resto) nas tardes de festival, quando o vimos chegar, frágil e guiado por alguns companheiros de banda. Sentou-se ao piano, lançou um cumprimento à multidão, pediu às raparigas que se fizessem ouvir, pediu de seguida o mesmo aos rapazes, e partiu música fora. O olhar pode parecer por vezes ausente e a voz já não chega aos agudos como outrora – para isso está lá o filho do guitarrista Al Jardine, cantando atrás do pai -, mas é ali, naquelas canções, na música que partilha, que Brian Wilson parece sentir a felicidade roubada numa vida demasiado sofrida.

Não chegámos imediatamente a Pet Sounds. Antes houve I get around ou Surfer girl, houve espaço para dar protagonismo, em modo “herói da guitarra”, a Blondie Chaplin, músico sul-africano que integrou os Beach Boys no início dos anos 1970. Até que Wilson anunciou sem qualquer aparato: “Vamos começar o nosso álbum chamado Pet Sounds”. E ele chegou. Wouldn't it be nice, You still believe in me, That's not me, Don't talk (put your head on my shoulder). Ouvimo-la uma a uma, seguindo à risca o alinhamento original, interpretada sem mácula por uma big band de veteranos empenhados em fazer bem à obra-prima dos Beach Boys. Que a música é tocada pelo génio, obra de uma humanidade desarmante, não era novidade. Mas ouvi-la ali, tocada e cantada pelo homem que a criou, tem um efeito comovente. Perante ele, estava este mosaico de nações de que se faz o Nos Primavera Sound, todo ele junto e cantando as letras, gritando as letras, tentando reproduzir, com mais, e principalmente menos, afinação: portugueses, espanhóis, americanos, alemães ou franceses, todos juntos a cantar na língua de Brian Wilson.

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Cabelo branco despenteado pelo vento, Brian Wilson anunciará inevitavelmente God only knows. Se há canções perfeitas na história da pop, esta é uma delas - e se o amor alguma vez soou tão completo e sincero em música, pedimos encarecidamente que nos mostrem onde. Para Wilson, porém, esta é simplesmente “uma canção de que Paul McCartney gostou muito” - o apreço do ídolo, percebe-se, é o maior elogio que lhe poderiam fazer.

Ouvem-se os vibrafones e os tímpanos, chegam a ouvir-se quatro guitarras, dois teclados, uma harmónica e saxofone para recriar em palco as canções. Ouve-se Pet Sounds e vê-se Brian Wilson em Pet Sounds. Vemos como se revela na introdução de I just wasn't made for these times e como aquele sometimes I feel very sad é uma terrível tristeza que a melodia conforta. Vemos o álbum histórico de 1966 despedir-se para se iniciar outro tipo de celebração. Primeiro Good vibrations e Barbara Ann. Depois Surfin' USA dançada desde a primeira fila à última que se vê lá no topo do relvado que é plateia, e Fun fun fun, com o seu ritmo à Chuck Berry e aquele título, tão curioso para o encerramento do concerto, deste concerto em particular. Brian Wilson esteve connosco e sorriu. A sua música sobrevive incólume no palco. Devemos-lhe muito. Esperamos que ele o saiba.

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Concerto de PJ Harvey Paulo Pimenta

Mais alto, mais rápido, mais Savages no regresso emocional ao Porto

Enquanto a tarde se tornava noite, a azáfama no recinto aumentava. É a edição mais concorrida do Nos  Primavera Sound, mas, felizmente, a enchente não prejudicou a fruição do festival. A espera nas zonas de restauração, por exemplo, não era superior ao normal, a circulação das mais de duas dezenas de milhares fazia-se sem apertos nos corredores, sem desesperar para pedir uma bebida. Furando até às zonas mais próximas do palco, estávamos entre os fiéis de cada banda, maioritariamente concentrados na acção em palco. Observando a maior distância, como se tem tornado habitual, o espaço auditivo era dividido entre o som vindo do palco e as discussões sobre outros concertos, sobre os passeios pelo Porto durante a tarde, sobre tudo e sobre nada.

Duas horas e meia depois de Brian Wilson o cenário no palco que o recebera transformara-se por completo. Não era apenas o negro noite. Era também o negro vestido pelos músicos e pela cantora. Era a contraluz que envolvia aquelas pessoas em palco numa penumbra misteriosa. Era a música de PJ Harvey, a que a cantora inglesa gravou em The Hope Six Demolition Project, majestosa e actuante, e que no Primavera Sound se mostrou sombria como gospel demoníaco, como blues assombrado, como jazz fantasmagórico.

Polly Jean, que conhecemos há muito, muito tempo, de guitarra a tiracolo, surgiu entre a banda como saxofonista – o instrumento que tocou durante o concerto. PJ Harvey, que em Let England Shake, em 2011, mergulhou em terríveis memórias de guerras de outros tempos para as oferecer como espelho deste presente conturbado, não se afastou desse território imaginário em The Hope Six Demolition Project. Foram-se as recordações da I Grande Guerra. O inferno é aqui e agora. E esta música, sombria e altiva, de uma terrível beleza, mostra-o de forma arrebatadora. Acompanham-na Mick Harvey e John Parish, velhos colaboradores, acompanham-na bombos e tarolas rufadas, saxofones soprando em tom grave ou zumbindo libertários. Ouvimos Ministry of defense e ouvimos Orange monkey, ouvimos The wheel e ouvimos a ironia da canção devocional intitulada Dollar dollar - e serenamos sem descansar perante a luz que irrompe, em modo soul Motown, em The community of hope.

Passamos por outros álbuns e o ambiente não se altera. As sombras em palco tocam e cantam The words that maketh murder, de Let England Shake. PJ Harvey recua ao seu passado mais distante mas 50ft Queenie, Down by the water e To bring you my love não são, aqui, meros clássicos recuperados para um alinhamento de 2016, são blues cru e visceral, canto arrancado às entranhas, encantamento negro como negro, magnificamente negro, perturbador e inspirador, foi este concerto feito drama, e drama feito acção.

Então, por fim, os músicos largaram os seus instrumentos. Um a um juntaram a sua voz à de PJ Harvey. Wade in the water, cantaram. O gospel de condenados ansiando libertação. É impossível sair incólume de um concerto assim. Quando se fizer a história do Primavera Sound, a da edição deste ano e a de todos os anos do festival, PJ Harvey figurará nela em lugar de destaque. Obrigatoriamente.