Para o meio convergiu a virtude
Portugal é candidato ao título europeu? Sim. E é favorito? Não necessariamente.
Na natureza, há uma regra de ouro que se resume em três simples palavras: adaptar ou morrer. Nada de muito diferente, aliás, do que acontece na luta pela sobrevivência desportiva, que premeia os predadores mais aptos e capazes de se moldarem às circunstâncias do jogo. É a esse território que Portugal chega hoje com um ADN retocado, mais adequado às exigências de um habitat que não se compadece com o romantismo de outras eras.
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Na natureza, há uma regra de ouro que se resume em três simples palavras: adaptar ou morrer. Nada de muito diferente, aliás, do que acontece na luta pela sobrevivência desportiva, que premeia os predadores mais aptos e capazes de se moldarem às circunstâncias do jogo. É a esse território que Portugal chega hoje com um ADN retocado, mais adequado às exigências de um habitat que não se compadece com o romantismo de outras eras.
Ao discurso o que é do discurso, ao plano táctico o que é do plano táctico. Portugal tem legitimidade para ser encarado como um candidato ao título europeu? Tem. E deve ser integrado no restrito leque de favoritos? Não necessariamente. É verdade que a selecção tem hoje uma maturidade que lhe faltou em alguns momentos decisivos da história recente, mas falta-lhe a autoridade que resulta da conquista de troféus. A boa notícia é que essa condição não a diminui dentro do terreno de jogo, que é onde se escreve o futuro.
Desde o primeiro dia de trabalho, Fernando Santos nunca se assumiu como um agente da mudança. Fiel ao seu estilo, ponderado e apaziguador, fugiu à mensagem de ruptura com o passado e empenhou-se em procurar, nos laboratórios do treino, a solução que melhor servisse os interesses da equipa. Se isso implicasse romper com a estratégia adoptada pelo antecessor, pois bem, mas seria sempre um caminho pensado em função de uma causa maior. Rasgou o “cadastro” de alguns proscritos, recuperou dissidentes e mesclou-os com parte da nouvelle vague do futebol português.
Da Grécia, o seleccionador trazia a expertise de lidar com um conjunto de jogadores de alma imensa e talento limitado. Em Portugal, a equação invertia-se. Era preciso injectar uma aura diferente, uma cultura de vitória que não estivesse dependente de tiques individuais ou de malabarismos circenses, mesmo que isso implicasse um triunfo pela margem mínima (a estrondosa excepção aconteceu justamente na quarta-feira, frente à Estónia). E, passo a passo, na fase de qualificação, a selecção foi-se aproximando de França, num percurso sem sobressaltos.
Nesse trajecto, Fernando Santos foi, ele próprio, limando arestas. No desenho táctico, foi do tradicional 4-3-3 recorrentemente utilizado por Paulo Bento ao 4-4-2 losango, que já experimentara na selecção grega. E embora mantenha em aberto estes dois cenários — porque as dinâmicas são mais relevantes que os sistemas —, parece ter estabilizado, a avaliar pelos jogos mais recentes, num 4-4-2 clássico. E o que tem esta fórmula de substancialmente diferente daquilo a que temos assistido nos últimos anos? Uma aposta continuada numa dupla atacante interpretada por dois jogadores que fizeram parte da carreira a brilhar nos corredores.
Portugal, um dos principais exportadores de extremos de qualidade extra em todo o mundo do futebol, encontrou na derivação dos maiores talentos para o eixo do ataque a solução para a ausência crónica de um número 9 de raiz. Nesta campanha, ao contrário de outras, pouco ou nada se tem discutido quem deve ser a referência na área. Até porque Quaresma, especialmente ele, se tem dado particularmente bem na parceria com Ronaldo.
É certo que, com o avançado do Real Madrid e o extremo do Besiktas mais longe das faixas, se perde alguma capacidade para investir em diagonais interiores, mas é precisamente aí que entra em cena a importância de peças como João Mário e André Gomes. A capacidade de estes dois médios fazerem movimentos das alas para o centro e surgirem, amiúde, em zonas de finalização, ditará muito do que será a panóplia de soluções ofensivas que a selecção nacional irá apresentar.
Neste particular, do rico manancial de escolhas que Fernando Santos tem para o miolo do terreno, João Mário é o elemento diferenciador, porque é ele que permite distintos tipos de variações durante o jogo, ora com a costumeira troca de corredores, ora a surgir em zonas centrais à procura do último passe. Em boa verdade, o médio do Sporting é hoje o joker de uma equipa que, do lado oposto, não apresenta uma alternativa tão completa, já que nem André Gomes nem Adrien Silva são tão fluentes e decisivos nas manobras pelas faixas laterais.
Determinante, também, será a forma como Portugal conseguir fazer o primeiro momento de pressão, ainda no meio-campo contrário. Uma manobra que, na primeira parte frente à Estónia, deixou a desejar e que tem ampla margem para melhorar à medida que João Moutinho se for reencontrando com a condição física que o notabilizou. A subida de rendimento do médio do Mónaco tem afastado as dúvidas levantadas por uma época menos conseguida e a forma como se tem entendido com William ou Danilo, recuando no terreno para assumir a primeira fase de construção, tem roubado espaço de afirmação a Adrien.
Unidas as pontas, esta é uma selecção mais equipa, uma selecção que tem a serenidade e a argúcia de circular a bola durante o tempo necessário para encontrar fendas no bloco rival. Uma selecção mais paciente e, por isso, mais adulta. Que não se deslumbra com a ideia de uma goleada a voar quando pode ter uma vitória, ainda que modesta, na mão. E numa prova deste calibre, esse é um ás de trunfo.