A sebastiânica reforma do Estado e o Yes Minister
Os ministros já mudam com frequência. Para que querem eles directores gerais também acabados de chegar, que não conhecem os cantos, nem à casa, nem a área onde se vão mover?
Acho que desde o Alexandre Herculano que em Portugal se espera por uma, ou várias, milagrosas reformas salvíficas, perfeitas e definitivas que nos levarão directos à vanguarda da civilização, à abundância e à felicidade. Esse messiânico sonho vai evoluindo e mudando de forma na ideia dos seus entusiastas, enquanto o seu inalcançável desígnio vai, com poucas e honrosas excepções, adiando medidas concretas e individuais que podem resolver problemas e abrir novas perspectivas.
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Acho que desde o Alexandre Herculano que em Portugal se espera por uma, ou várias, milagrosas reformas salvíficas, perfeitas e definitivas que nos levarão directos à vanguarda da civilização, à abundância e à felicidade. Esse messiânico sonho vai evoluindo e mudando de forma na ideia dos seus entusiastas, enquanto o seu inalcançável desígnio vai, com poucas e honrosas excepções, adiando medidas concretas e individuais que podem resolver problemas e abrir novas perspectivas.
Há uns anos só se falava das reformas estruturais, que ninguém sabia bem o que era e nos iam redimir para a eternidade. Agora está mais na moda a reforma do Estado, que dá mais ou menos para tudo, umas vezes entendida como alteração da superestrutura política, outras como a da administração.
Curiosamente ninguém fala da incessante reforma (ou reformas) do Estado que nos últimos anos foi acontecendo e mudou gradual e radicalmente quer o estatuto dos servidores do Estado, quer a relação do serviço público com os cidadãos. Desde logo, a lei de 2009, que alterou o vínculo dos funcionários públicos, com excepção dos que exercem funções de soberania, de nomeação para contrato. É, concorde-se ou não, e eu não sei se concordo, seguramente uma das mais profundas e radicais reformas desde Mouzinho da Silveira. Mas outras reformas se foram fazendo. Só para falar de duas, em que, por imperativo das funções que desempenhava, estive envolvido: a introdução da avaliação dos funcionários e da progressão na carreira por mérito e o PRACE com, entre outras coisas, a redução de chefias, serviços e institutos.
Na relação com os cidadãos, além da informatização do serviço público — que na segunda metade da década passada nos elevou da posição quarenta e tal para sétima no ranking mundial de e-governance —, recorde-se o peregrino processo que se iniciou com a Loja dos mesmos e prosseguiu com o bendito Simplex, que agora se tenciona ressuscitar.
Simultaneamente procedeu-se a uma desmedida redução de funcionários públicos que, ao que parece, prosseguirá até 2020 e que já se faz notar — negativamente, concordo, mas não deixa de ser uma reforma e uma das mais requestadas pelas sibilas que todos os dias na televisão anunciam a nossa desgraça em troca de chorudas remunerações. Segundo a única estatística do Eurostat sobre a percentagem de funcionários na população activa que consegui encontrar, que é de 2004, Portugal era o terceiro país da União com menos servidores do Estado. Os países com maior ratio eram os escandinavos, seguidos do liberal Reino Unido e da intervencionista França — ou seja, como é evidente, os países com melhores serviços públicos.
A isto acrescente-se a introdução da selecção das chefias do Estado por concurso, cedendo à ditadura do politicamente correcto e à ilusão beatífica da transparência, que, a meu ver, ameaça afectar aquilo que constitui a principal mais-valia de uma administração independente do poder político: a experiência, o conhecimento e a continuidade.
“A” reforma do Estado nunca se fará. Ir-se-á fazendo. Já agora com a minha experiência de mais de quarenta anos na função pública deixo aqui duas modestas sugestões. A primeira acabar com a fantasia de que o Estado deve ser gerido como uma empresa privada, pela razão muito simples de que uma empresa é uma empresa e o Estado é o Estado. Uma empresa cria produtos para vender e o seu financiamento base deve provir do produto dessas vendas. Já o Estado presta serviços e o seu financiamento base deve ser os impostos. Em ambos os casos, a boa gerência tem de assentar no equilíbrio entre despesas e receitas. Essa é a semelhança. É, no entanto, evidente que, no caso do Estado, a lógica da rentabilidade, que é o cerne da sustentabilidade das empresas, não é aplicável, quando não é incompatível, com muitos dos serviços que presta.
E ouso também propor uma pequena “reforma”, sem custos, eventualmente até com uma marginal redução da despesa: que os ministros governem com as estruturas dos seus ministérios e não com os seus gabinetes.
Julgo ser uma medida susceptível de melhorar o funcionamento da administração e de evitar avanços e recuos resultantes das alterações de estratégia e de política que se verificam cada vez que muda um ministro — mesmo sem mudar o governo — que só servem para criar instabilidade e jovial burburinho mediático com as nomeações de boys. Os ministros devem assentar a sua acção no conhecimento e na experiência da administração pública, que constitui o garante da continuidade, e não no pessoal, quase por definição inexperiente e efémero, que traz consigo. Aos gabinetes dos ministros cabe ocuparem-se do expediente pessoal dos seus titulares, ou seja, do que não tem que ver com o ministério que tutelam, o que hoje, reconheça-se, implica áreas como a preparação do Conselho de Ministros, a relação com o Parlamento, com a comunicação social, etc. Mas os sobrelotados gabinetes não devem, como hoje sucede, imiscuir-se nas funções da administração e muito menos exercer qualquer espécie de autoridade na hierarquia dos ministérios. Digo isto com o à-vontade de quem foi chefe de gabinete.
A necessária continuidade implica, a meu ver, que os lugares de directores- gerais sejam ocupados por funcionários com uma larga experiência da função pública e ao menos uma dezena de anos do respectivo ministério e que tenham capacidade de seleccionar os directores de serviço, a sua equipa, preferencialmente entre funcionários vindos do interior dos respectivos departamentos. É o sistema dos países onde se costuma dizer que as coisas vão melhor quando não há governo. Os concursos politicamente correctos e as comissões de recrutamento advêm de uma ilusória transparência que só cria ineficiência.
Os ministros já mudam com frequência. Mais do que os governos. Para que querem eles directores-gerais também acabados de chegar, que não conhecem os cantos, nem à casa, nem a área onde se vão mover? E por que razão há-de ser mais útil ao serviço público que a nomeação de um director de serviços recaia num candidato seleccionado do exterior num concurso assente em critérios abstractos e curriculares sem relação com a área respectiva, que nada dizem do mérito, e não entre os técnicos com anos de experiência nessa direcção? Sei que a nossa sanha regulatória dificulta que, em casos especiais, em que se requeiram competências específicas, se possa sair das leis que regem a normalidade. Mas isso é contornável por legislação adequada.
Sei também que esta ideia pode parecer um retrocesso em relação às transviadas teses da moda. Reconheço que existe aqui o risco da prevalência da inércia da rotina sobre a actualização e a inovação. Mas é aí justamente que se avalia a capacidade do ministro, que deve saber traçar as políticas e definir as estratégias, enquanto aos funcionários que o assessoram cabe saber enquadrar com realismo as novas orientações e o modo de as pôr em prática com a menor resistência possível. Creiam que debaixo do hilariante mas subtil humor da série televisiva Yes Minister se encontra um fiável e sensato tratado sobre a administração do Estado.
Embaixador reformado