Para a família “há alguém que nasce e alguém que tem de levar a enterrar”

Centro Hospitalar de Lisboa Central chegou a accionar processo de protecção de “vida fetal” junto do Ministério Público, no caso de haver “conflito de interesses”. Mas a família sempre esteve de acordo com o prolongamento de vida artificial da grávida até ao nascimento.

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Logo a seguir ao nascimento do bebé, as máquinas que mantinham as funções vitais da mãe de forma artificial foram desligadas. “A família está perante emoções contraditórias: há alguém que nasce e alguém que tem de levar a enterrar”, resumiu a presidente do Centro Hospitalar de Lisboa Central (CHLC), Ana Escoval. Tratava-se do primeiro filho deste casal, um segundo relacionamento, e o segundo filho desta mulher de 37 anos.

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Logo a seguir ao nascimento do bebé, as máquinas que mantinham as funções vitais da mãe de forma artificial foram desligadas. “A família está perante emoções contraditórias: há alguém que nasce e alguém que tem de levar a enterrar”, resumiu a presidente do Centro Hospitalar de Lisboa Central (CHLC), Ana Escoval. Tratava-se do primeiro filho deste casal, um segundo relacionamento, e o segundo filho desta mulher de 37 anos.

A vida desta mulher grávida foi mantida de forma artificial - quer em termos hormonais, nutricionais, respiratórios e cardíacos - para que a gravidez pudesse permitir o nascimento do bebé que acabou por nascer esta terça-feira no Hospital de São José, em Lisboa. O limite da viabilidade de um feto situa-se nas 24 semanas e quando a morte cerebral da mãe aconteceu, a 20 de Fevereiro deste ano (é dessa data a certidão de óbito), após uma hemorragia intracerebral, a gravidez levava apenas 17 semanas.

Uma equipa médica multidisciplinar empenhou-se então em manter o corpo da mãe a funcionar como “uma incubadora viva”, disse o presidente do conselho de ética deste centro hospitalar, Gonçalo Cordeiro Ferreira, que nota que esta foi uma gestação fora do normal, em que o feto não teve da mãe “nem sono nem vigília, emoções, flutuações cardíacas”, desconhecendo-se que consequências terá para o feto esta “estabilidade” dentro do útero.

O responsável presta “uma grande homenagem a esta família que não podia enterrar quem estava morto”, que tinha “um morto à sua vista, mas não podia fazer o luto”, “uma situação trágica” associada a “uma situação de grande esperança.”

“O bebé está de perfeita saúde”, disse Ana Escoval, numa conferência de imprensa organizada esta quarta-feira para dar informações sobre o caso. Teresa Tomé, directora da unidade de neonatologia da Maternidade Alfredo da Costa (MAC), onde a criança, um rapaz, está internada, refere que o bebé está em bom estado de saúde mas salienta que não deixa de ser um prematuro (de 32 semanas), que está ainda a ser ventilado. Se tudo correr bem, deverá ter alta daqui a cerca de quatro semanas, disse. Nasceu com 2,350 quilos.

O processo de prolongamento do corpo, e da gravidez, mantém-se há quase quatro meses (15 semanas), um período longo que torna este caso “inédito” em Portugal e muito raro no mundo. Ana Campos, a obstetra da MAC que acompanhou este caso, referiu que o tempo máximo de uma grávida em morte cerebral mantida artificialmente, descrito na literatura científica, é de 107 dias, como aconteceu neste caso.

Um artigo científico do British Medical Journal refere que em 30 grávidas em morte cerebral, cujas funções vitais foram mantidas para assegurar a sobrevivência dos seus fetos, apenas nasceram 12 bebés. Os casos reportados no artigo Uma vida termina, outra começa: gestão de uma mulher grávida em morte cerebral - Uma revisão sistemática aconteceram entre 1982 e 2010, ano da sua publicação. A idade média da gestação quando ocorreu a morte cerebral foi de 22 semanas (o caso português aconteceu às 17 semanas) e o período médio de gestação até ao nascimento foi de 29,5 semanas (o bebé português nasceu às 32 semanas).

O que pesou na decisão dos médicos em prolongar a gravidez foi o facto dos muitos exames feitos ao bebé não revelarem ter sofrido sequelas, devido ao problema que levou à morte da mãe, e não ter malformações aparentes.

Proteger “vida fetal” em risco

O que também tornou este caso singular, explicou Gonçalo Cordeiro Ferreira, foi o facto de o conselho científico nomeado pelo conselho de administração do centro hospitalar ter decidido accionar um processo de protecção desta “vida fetal” junto do Ministério Público (MP), no caso de haver “conflito de interesses”. “Felizmente todos remámos para o mesmo lado. A família esteve sempre motivada para o nascimento deste bebé.”

“Foi feita uma exposição ao MP que se mostrou disponível”, acrescentou. Jurista da comissão de ética, Pedro Brito, explicou que o CHLC fez uma analogia entre a vida daquele feto e os menores em risco, como se se tratasse de um processo tutelar, e o Ministério Público, “como representante do Estado”, aceitou proteger o feto. Se houvesse desacordo, o caso teria que ser decidido por um juiz.

Num dos últimos casos deste tipo conhecidos no mundo, que ocorreu na Irlanda em 2014, o pai e o marido de uma grávida que estava em morte cerebral foram para tribunal pedir para que as máquinas fossem desligadas. O tribunal acabou por aceitar. O caso era diferente do português porque o feto de 18 semanas tinha poucas possibilidades de sobrevivência e a razão porque os médicos quiseram manter as funções vitais tinha a ver com a legislação anti-aborto do país. Na Irlanda, a lei dá os mesmos direitos constituticionais a um feto e à mulher, referia o jornal britânico Guardian.

No estado norte-americano do Texas, Marlise Munoz, que estava grávida de 14 semanas, foi mantida artificialmente viva durante dois meses contra a vontade do marido. Erick Munoz foi para tribunal pedir a interrupção dos suportes artificiais de vida, argumentando que era vontade expressa da mulher, que era paramédica, não ser mantida viva artificialmente e que o feto sofria de malformações graves e não iria sobreviver. Em Janeiro de 2014 o tribunal deu-lhe razão.