Gertrude da Arábia
Um filme atípico, menor, convencional de Werner Herzog, mas onde se reconhece a personalidade “do contra” do seu autor: Rainha do Deserto.
Onde está, nesta malfadada Rainha do Deserto que mereceu algumas das piores críticas da sua carreira, a “verdade extática” que Werner Herzog tanto exalta? Parecendo que não, ela está lá, mesmo que o filme tenha mais aspecto de melodrama romântico exótico para balzaquianas frustradas, cruzando as viagens e as paixões de Gertrude Lowthian Bell (1868-1926). Personagem verídica dos últimos anos do Império Britânico, aventureira e exploradora britânica que desempenhou um papel importante nas lutas pelo destino dos países árabes no início do século XX, Gertrude é também aqui uma espécie de proto-mulher moderna que recusou o destino subserviente de esposa aristocrata a que parecia estar fadada.
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Onde está, nesta malfadada Rainha do Deserto que mereceu algumas das piores críticas da sua carreira, a “verdade extática” que Werner Herzog tanto exalta? Parecendo que não, ela está lá, mesmo que o filme tenha mais aspecto de melodrama romântico exótico para balzaquianas frustradas, cruzando as viagens e as paixões de Gertrude Lowthian Bell (1868-1926). Personagem verídica dos últimos anos do Império Britânico, aventureira e exploradora britânica que desempenhou um papel importante nas lutas pelo destino dos países árabes no início do século XX, Gertrude é também aqui uma espécie de proto-mulher moderna que recusou o destino subserviente de esposa aristocrata a que parecia estar fadada.
Ora, sabendo como Herzog pode ser perversamente do contra, não é possível pôr de parte que este filme atípico e menor seja uma “bofetada” àqueles que o querem conter numa gavetinha muito bem arrumadinha – à sua imagem, a verdadeira Gertrude Bell seguiu sempre a sua própria estrela contra ventos e marés. É compreensível que o realizador se interessasse pela personagem, e até que se reveja de algum modo nela – é nas viagens de Gertrude pelo deserto, no modo como elas abrem pistas de compreensão e leitura da personagem, que o filme revela a tal “verdade extática”. Afinal, se formos a ver, a câmara de Herzog nunca está tranquila, nunca pára; os seus planos são sempre longos, raramente fixos, sugerindo uma mulher em constante movimento ou as areias do deserto sempre sopradas pelo vento, mas permanentemente atentos aos actores e aos olhares. (Isso permite, aliás, a espaços alguns planos lindíssimos, como é o do baile no Cairo já perto do fim do filme.)
No entanto, essa proximidade entre Herzog e Gertrude (uma Nicole Kidman solidíssima) não resolve os muitos problemas de Rainha do Deserto: uma narrativa reduzida ao episódico do “compacto” de série televisiva; uma banda-sonora que parece estar a querer sistematicamente tornar o filme num qualquer encontro entre um sub-Lawrence da Arábia e um Paciente Inglês; o miscast inexplicável de James Franco. Sobretudo, a sensação de que o próprio Herzog, mesmo apesar de estar a trabalhar com a sua equipa de sempre (Peter Zeitlinger na fotografia, Joe Bini na montagem), perdeu o norte do filme que queria fazer ou se deixou levar pelo êxtase das paisagens de Marrocos e da Jordânia onde foi rodar. Não é caso para darmos o homem como acabado – Espírito Indomável (2006) esteve longe de ser um clássico e logo a seguir Herzog arrancou títulos brilhantes como Polícia sem Lei – Porto de Escala Nova Orleães (2009) ou Into the Abyss (2011) – mas é caso para recomendarmos Rainha do Deserto só aos incondicionais, ou àqueles que procuram um novo Paciente Inglês.