Bloco Central: já não se fazem acordos como antigamente

Há 33 anos nascia o bloco central, a única experiência de coligação governamental entre PS e PSD. Foi um ponto de viragem. Marcelo era contra. Soares e Mota Pinto até trocavam, sem querer, de sapatos no Conselho de Ministros. O Governo dizia-se de "centro-esquerda e viveu "tempos difíceis".

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Mário Soares e Mota Pinto CARLOS LOPES

As conversas já vinham de trás, mas no dia 11 de Maio de 1983, uma quarta-feira, Mário Soares e Carlos Mota Pinto iniciaram as negociações entre PS e PSD, que viriam a ser seladas, com um brinde — e sorrisos tímidos dos dois líderes — no dia 4 de Junho seguinte.

Ao lado dos dois dirigentes estiveram os seus lugares-tenentes. E a agenda foi extensa. Dezoito pontos, que iam do “problema da opção nuclear” à posição a adoptar pelos dois partidos nas Presidenciais de 1986 — a três longos anos de distância. Dessa reunião não há qualquer registo público. Apenas um relato que chegou ao presente, em caligrafia, feito por Vítor Crespo, na reunião seguinte, da “comissão negociadora” que os dois partidos indicaram para desbravar o fértil terreno das divergências.

Crespo era minucioso nas suas notas. Doutorado em Química por Berkeley, este ex-ministro da Educação dos Governo da AD, que presidiu à Assembleia da República entre 1987 e 1991, era um dos negociadores do PSD. E as suas notas fazem agora parte de um valioso espólio que a sua filha Raquel doou ao historiador José Pacheco Pereira, no ano passado, e que pode ser consultado no site Ephemera.

O 25 de Abril cumpriu nove anos no dia das eleições legislativas, antecipadas pelo Presidente Ramalho Eanes, após o colapso da Aliança Democrática (PSD/CDS/PPM). O PS teve 36,1%, o PSD 27,2%, a APU (actual CDU) 18,1% e o CDS 12,6%. Nessa eleição até houve uma espécie de Bloco de Esquerda antecipado (coligação UDP/PSR) mas não chegou a ter 0,5% dos votos.

Três dias depois das eleições, Mário Soares enviou uma carta aos militantes do PS perguntando-lhes o que fazer. A resposta foi esmagadora: quatro em cada cinco dos militantes que responderam a este “referendo” defenderam uma coligação ao centro, com o PSD. Os tempos não estavam para outras “geringonças”...

Talvez tenha acontecido nesse mesmo dia 28, uma quinta-feira, o primeiro encontro entre os dois líderes do PS e do PSD. Mota Pinto informou um colaborador próximo que iria almoçar com Soares, em território neutro, a casa do advogado Proença de Carvalho.

As negociações “técnicas” só se iniciariam quase duas semanas depois. Nessa primeira reunião estavam presentes sete negociadores. Quatro do PSD (Eurico de Melo, Ângelo Correia, Amândio de Azevedo e Vítor Crespo) e três do PS (Almeida Santos, Eduardo Pereira e Jaime Gama). Sentaram-se à volta de uma mesa na Av. António Augusto de Aguiar, em Lisboa, como relata a “acta” de Crespo, escrita à mão em folhas de papel timbrado do PSD. Ângelo Correia não se recorda do local. Mas recorda-se, bem, da “boa concordância” que existia entre os dois partidos quanto à necessidade de se fazer uma grande coligação, inédita, e nunca mais repetida, em Portugal. “Não foi nada difícil fazer um programa de governo, porque se sabia que era necessário um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI)”, adianta, hoje, o ex-dirigente do PSD.

Estabilidade política, instabilidade social

A pressão externa era enorme, com a economia do país em recessão, hiperinflacção e a desvalorização galopante do escudo. A situação social não era melhor, com o flagelo dos salários em atraso a arrasar grandes centros urbanos, sobretudo no distrito de Setúbal. “Os problemas económicos em Portugal são fáceis de explicar e a única coisa a fazer é apertar o cinto”, dizia, numa frase que ficou guardada na memória de muitos portugueses, o primeiro-ministro Mário Soares. Mas o bloco central nasce de uma conjuntura em que quase todos os partidos (com excepção do PCP) vivem graves conflitos internos.

O historiador António José Telo resume este clima político na sua História Contemporânea de Portugal (pág. 232, ed. Presença): “A imagem que temos da Primavera de 1983 é a de uma crise profunda, com os principais partidos do sistema divididos e sem uma liderança forte.”

Mota Pinto conseguira superar o resultado de Sá Carneiro em 1976 e queria recentrar o partido, depois da experiência AD. Ângelo Correia, que foi várias vezes a Coimbra convencer o professor a regressar à política activa, recorda: “A campanha foi preparada toda numa linha de separação não hostilizante face ao CDS.” O PS era, assim, o parceiro natural para formar uma coligação de Governo.

Mário Soares é o líder de um PS dividido, que ganha as eleições mesmo deixando de fora das listas de candidatos boa parte dos mais conhecidos dirigentes do partido (como Salgado Zenha, Jorge Sampaio e António Guterres).

Os dois tinham uma relação pessoal que desafiava a fronteira partidária. Mota Pinto tinha até integrado, como independente, um Governo do PS, liderado por Soares, com a pasta do Comércio. Um dos pontos-chave das negociações para o bloco central, e que consta desde a primeira reunião, era o da sua imprenscindível participação no Governo: “Mota Pinto não poderá ficar fora do Governo”, resumem as notas de Vítor Crespo.

Mas se isso não dividia os dois partidos, a questão económica e social levantava vários problemas. O PSD queria ir mais longe do que o PS nas privatizações e na desregulação das leis laborais. Soares chegou mesmo a classificar como “ultimato” as exigências de Mota Pinto.

No entanto, a figura desde cedo escolhida para a pasta (central) das Finanças, Ernâni Lopes, um independente, dava conforto ao partido. António Capucho, que era o secretário-geral do PSD e participou em várias reuniões de negociação, considera que a escolha do ministro das Finanças foi uma “pedra fulcral” do acordo.

No dia 12 de Maio, a acta de Vítor Crespo dava por “assente”: “Não ao CDS no Governo”. Os ex-parceiros do PSD na AD vinham de uma mudança profunda, com a eleição de Lucas Pires, um jovem “liberal” para o lugar de Freitas do Amaral, um “centrista”. Teriam de se contentar, neste novo ciclo, com uma oferta do bloco central: o novo provedor de Justiça iria “para o CDS”. “Assente” ficou, desde o início, que os dois partidos não iriam lançar nenhuma revisão constitucional.

António José Telo considera “curiosa” esta moderação dos dois partidos. “Era uma situação curiosa em que os defensores do sistema político (ligados ao bloco central) se uniam, aceitando adiar de momento a reforma de fundo do sistema económico e social, para barrar o caminho aos defensores do sistema económico tal como existia, que queriam mudar o sistema político (os eanistas).”

Marcelo “contra o bloco central”

Porque essa era, na realidade, a grande fractura na política portuguesa. Uma parte importante dos críticos de Soares no PS (Zenha e o ex-secretariado) convergiam com as posições dos sectores próximos do Presidente Eanes, incluindo os ainda influentes sectores militares, e até com a linha “defensiva” de Álvaro Cunhal do PCP. Queriam manter inalteradas as “conquistas” da revolução. Para isso, unia-os uma tese que o bloco central tentou, com êxito, contrariar: a da “presidencialização” do regime.

Soares tinha uma estratégia para as Presidenciais de 86: queria ser o candidato do bloco central. O PSD não tinha estratégia, nem candidato (Firmino Miguel recusou). Estava entre dois fogos: a anunciada candidatura de Freitas do Amaral, do CDS, e a do próprio Soares.

O assunto era tratado com pinças nas negociações. Mas era o palco preferido para as oposições internas, no PS e no PSD. Contra o bloco central é o nome de um livro, lançado no final de 1983 (e do qual não resta uma cópia nas bibliotecas de Lisboa, aparecendo apenas uma referência no erudito catálogo da Biblioteca do Congresso dos EUA), editado e escrito por Marcelo Rebelo de Sousa, através da sua editora universitária Cognitio, em colaboração com os seus parceiros — Pedro Santana Lopes, José Miguel Júdice e Conceição Monteiro — de uma facção do PSD, que se iria chamar, mais tarde, Nova Esperança. Estes costumavam reunir-se numa cave da Rua de São Félix à Lapa. Os opositores de Soares reuniam-se num sótão em Algés.

“Toma lá a economia”

Foi só no dia 17 que as reuniões negociais discutiram, abertamente, as “hipóteses de pastas”. A partir daí, as notas de Vítor Crespo passam a ter listas, números, contas de dividir à antiga. No dia 31 de Maio, naquela que terá sido a última destas reuniões, em que participaram Mário Soares e Mota Pinto, só restava um “ponto da situação” sobre “política agrícola”. Mas as notas do negociador do PSD têm, no verso, algumas contas: “1 chefe de gabinete, 1+4 adjuntos =5”. Total: 17 funcionários por gabinete, com seis dactilógrafas. O PSD conseguia uma representação no Governo quase igual à do PS, apesar de ter ficado a nove pontos de distância nas eleições. O IX Governo Constitucional tinha nove ministros do PS, oito do PSD e um independente.

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“As coisas correram muito bem”, resume António Capucho, não se referindo apenas à aritmética negocial do “dá cá as Finanças, toma lá a Economia”.

Mas quase no final, Mota Pinto teve dúvidas e tentou recuar. “Chegámos a demitir-nos da direcção, era a nossa palavra que estava em causa”, recorda o então secretário-geral do partido. Não chegou a haver demissões. O acordo foi assinado no dia 4 de Junho de 1983. O Governo tomou posse no dia 9.

Os dois partidos assinaram um “Acordo político”, que garantia, entre outras coisas, a formação de um “Governo de centro-esquerda”. O PSD ainda propôs uma alteração: “um Governo de coligação”, em vez de “centro-esquerda”. Mas ficou a versão original. António Capucho nem se recorda de grande burburinho a este propósito. “Isso não afligiria ninguém no PSD, na altura. O PSD, na altura, não tinha complexos em assumir-se de centro-esquerda. Hoje já aflige...”

A troca de sapatos 

“Mota Pinto teve a humildade de aceitar ser vice-primeiro-ministro quando já tinha sido primeiro-ministro”, sublinha João Pedro George, autor da biografia política do antigo líder do PSD, que será publicada em breve.

Rui Machete chega ao bloco central convidado por Menéres Pimentel para ocupar a pasta da Justiça. Recorda a liberdade que tinha: “Cada ministro fazia mais ou menos o que queria.”

Essa autonomia permitiu a Machete, do PSD, sondar um jovem próximo do PS para um cargo que não chegou a existir na orgânica do Governo: secretário de Estado da Justiça. O jovem era António Vitorino. E estava a ser disputado pelo influente ministro de Estado e dos Assuntos Parlamentares. “Da primeira vez disse que não, mas em Janeiro [de 1984] Almeida Santos disse-me que já não podia recusar”, recorda Vitorino, que foi secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, a sua estreia em governos.

“Costumo dizer, a brincar, que houve tempos em que não se podia dizer que tinha sido membro do Governo do bloco central”, ironiza Vitorino. Machete diz quase o mesmo: “Foi um Governo bastante coeso. Foi um êxito, nem sempre reconhecido...”

João Pedro George tem, no seu livro, uma citação de Mário Soares que serve de boa metáfora do bloco central. Soares fala da sua relação com Mota Pinto: “Durante esse tempo nunca tivemos uma discussão. A única questão que nós tínhamos é que ele tinha o hábito de descalçar os sapatos nos conselhos de ministros e eu também. E às vezes trocávamos de sapatos. Ele calçava os meus e eu os dele.”

Talvez não tenha sido bem assim. Houve, pelo menos, uma polémica aguda, quando o grupo parlamentar do PS apresentou, e fez aprovar, uma legislação muito moderada sobre o aborto, que o PSD recusava com veemência.

É evidente que essa relação entre os dois líderes, “que se davam como Deus e os anjos”, enfatiza António Capucho, não chegava para resolver, por si só, os graves problemas que o país vivia. “Foram anos muito difíceis”, reconhece Vitorino. “Havia manifestações à porta do Conselho de Ministros”, lembra Capucho. “Era uma situação muito similar à que se viveu agora com a troika”, resume Machete.

Mas o programa do FMI lá se cumpriu, e as negociações para a adesão à CEE avançavam a bom ritmo. Soares gostava de dizer que se via “luz ao fundo do túnel”. Mas o bloco central não chegou a sair do túnel...

Flores para Cavaco Siva 

Em Fevereiro de 1985, nasce o PRD, inspirado na figura de Ramalho Eanes, com vários socialistas de relevo, como Medeiros Ferreira (que tinha sido o impulsionador das negociações com Bruxelas). E no dia 5 de Fevereiro desse ano, depois de um conselho nacional em que é acusado, por um membro da Nova Esperança, de não prestar contas sobre a situação financeira do partido, Mota Pinto bate com a porta. Demite-se da liderança do partido e do Governo.

É Rui Machete que o substitui, em ambos os cargos. Foi uma experiência curta, e que não deixou boas memórias: “Não teve aspectos gratificantes...”

O partido estava de congresso marcado, para 18 de Maio, na Figueira da Foz. Quase toda a gente pensava que Mota Pinto iria regressar. Mas, no dia 7 de Maio, Mota Pinto morre, em Coimbra.

“Cavaco Silva dificilmente ganharia o congresso se ele se candidatasse”, avalia João Pedro George, depois de reconstituir, com minúcia, os apoios internos com que contavam os vários candidatos à liderança do PSD. Foram as distritais mota-pintistas que levaram Cavaco à vitória sobre João Salgueiro.

Cavaco elege como tema agregador a recusa em apoiar Soares nas presidenciais. Tem ao seu lado a Nova Esperança. O bloco central morre ali.

Soares, que não percebia bem o “fenómeno” Cavaco, ainda recebeu o novo líder do PSD na sede do PS. António Vitorino recorda o episódio: “Cavaco Silva foi à sede do PS apresentar cumprimentos, depois de ganhar o congresso. Dizia-se que ele não gostava de flores, ou era alérgico... Encheu-se a sede de flores.”

O Governo ainda se arrasta até ao dia 12 de Junho, quando Soares assina nos Jerónimos o Tratado de Adesão à CEE. No dia seguinte, os ministros do PSD, por decisão da nova liderança, saem do Governo.

Rui Machete presidiu ao último Conselho de Ministros. Ele, que chegou a dizer do Governo, no tom crítico adequado ao momento, que era “uma confederação de ministros”.

Tempos de “polarização”

Soares lançou-se na corrida a Belém, que ganharia, numa segunda volta também inédita, em 1986. E a experiência ficou por ali. Nunca mais se repetiu. “Os blocos centrais só se justificam em certos momentos históricos”, justifica Machete. António Capucho continua a defender essa solução, no presente. “Ainda recentemente defendi que a única forma de fazer as reformas necessárias era uma grande coligação ao centro. Gostava de averiguar o porquê do fracasso. A convicção que tenho é que o PSD não estava interessado, pensando que a ‘geringonça’ era inviável. Mas continuo a pensar que o Presidente da República só tem uma solução se isto falhar.” Apesar de Marcelo ser o único português que tem na biografia uma oposição em letra de forma ao bloco central...

António Vitorino considera que a possibilidade de entendimento ao centro foi afastada pelo “efeito polarizador das maiorias absolutas”. A actual evolução das “circunstâncias”, prossegue Vitorino, com a “direitização do PSD” e a “alteração da posição do PCP”, também contribuiu para que, em Portugal, a lógica passasse a ser a de oposição entre dois blocos, à esquerda e à direita. Por muito que a geração actualmente nos dois maiores partidos (António Costa e Passos Coelho incluídos) se tenha formado nos idos em que Soares e Mota Pinto brindavam ao bloco central.