No princípio era a pedra (e o mármore)…
As virtudes do mármore de Estremoz e de outros géneros da pedra portuguesa de diferentes regiões estão a ser testadas, e mostradas, através do projecto Primeira Pedra. Uma iniciativa conjunta da ExperimentaDesign com a Assimagra, que teve em Veneza a sua primeira exposição.
Quando, há duas semanas, Álvaro Siza disse em Veneza que “o mármore de Estremoz é o melhor do mundo” não estava apenas a emitir a sua opinião. Estava a referir-se a um estudo científico feito há vários anos sobre o assunto. E o arquitecto cuja obra no domínio da habitação social representa, este ano, Portugal na Bienal de Veneza explicou isso mesmo ao PÚBLICO.
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Quando, há duas semanas, Álvaro Siza disse em Veneza que “o mármore de Estremoz é o melhor do mundo” não estava apenas a emitir a sua opinião. Estava a referir-se a um estudo científico feito há vários anos sobre o assunto. E o arquitecto cuja obra no domínio da habitação social representa, este ano, Portugal na Bienal de Veneza explicou isso mesmo ao PÚBLICO.
“Foi um estudo realizado a propósito de um edifício de Alvar Aalto, em Helsínquia, que tinha sido feito com mármore de Carrara [Itália], mas, com o tempo, empenou, ficou às ondas”, recorda Siza. Foi aventada a hipótese de substituir o mármore por granito, o que não foi aceite, “e houve mesmo um abaixo-assinado contra essa solução”. Os responsáveis decidiram nomear uma comissão científica para estudar as hipóteses alternativas. “Foram analisados mármores de todo o mundo, e o mármore português de Estremoz foi considerado o melhor”, acabando por ser utilizado no edifício de Aalto.
O conhecimento que Siza tem das características do mármore português – que, de resto, utilizou já em projectos seus – levou Guta Moura Guedes, presidente da ExperimentaDesign, a convidá-lo a integrar o grupo de arquitectos e designers para o programa de pesquisa experimental Primeira Pedra, uma iniciativa conjunta com a Assimagra – Associação Portuguesa dos Industriais de Mármores, Granitos e Ramos Afins, destinada a relançar internacionalmente a utilização da pedra portuguesa.
A primeira fase deste programa tem por título Resistance e reúne, ao lado de Siza, a britânica Amanda Levete (autora do projecto do MAAT – Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, da Fundação EDP, em construção em Lisboa), a sueca Mia Hägg, o indiano Bijoy Jain (fundador do Studio Mumbai) e o atelier chileno Elemental, de Alejandro Aravena, comissário-geral da Bienal de Arquitectura de Veneza – e foi nesta cidade, nos jardins e no interior da Villa Hériot, perto do Pavilhão de Portugal na ilha da Giudecca, que a ExperimentaDesign expôs também os estudos e os primeiros resultados de Resistance.
Até à conclusão do programa – que incluirá ainda os projectos Still Motion e Common Sense, e passará por outros grandes eventos internacionais, como as feiras de design de Milão e de arte de Basileia, em 2017 –, o Primeira Pedra vai reunir cerca de três dezenas de arquitectos e designers. Sobre as escolhas dos primeiros, Guta Moura Guedes explica ao PÚBLICO que teve como intenção “definir um grupo de arquitectos que, para além da inegável qualidade do seu trabalho, tenham um genuíno interesse pelos materiais e pela sua relação com o acto de projectar, que venham de culturas e geografias diferentes, com distintas tradições de produção, e que pensem na arquitectura como forma de melhorar a vida das pessoas, das nossas cidades, dos nossos espaços públicos”.
A curadora da ExperimentaDesign avançou que foram já também convidados para o segundo momento do programa, e numa lista que não está ainda fechada, os arquitectos portugueses João Luís Carrilho da Graça, Paulo David e Eduardo Souto de Moura, o brasileiro Marcio Kogan, o libanês Vladimir Djurovic e o japonês Junya Ishigami. Os seus trabalhos – incluindo uma criação nova de Álvaro Siza – vão ser apresentados na ArtBasel, em Junho do próximo ano.
Esta iniciativa da ExperimentaDesign sucede a um projecto idêntico, lançado há dois anos, com a Corticeira Amorim, e que contou também com fundos comunitários. “Este novo desafio, que é um programa para um ciclo de 18 meses, vem sublinhar a nossa posição na área do design estratégico, da comunicação e da curadoria”, diz Guta Moura Guedes. E acrescenta tratar-se de “um projecto que reforça o papel do design e da arquitectura na área da inovação e da sustentabilidade sócio-económica, algo que faz parte da matriz da ExperimentaDesign”.
Sobre a primeira exposição do projecto Resistance em Veneza, onde estiveram arquitectos, curadores, directores de museus mas também empresários de todo o mundo, Guta Moura Guedes diz que “as peças despertaram um grande interesse”, além de que “têm também um potencial de uso comercial futuro, que é imediatamente identificado”.
Banco de jardim, Álvaro Siza
Álvaro Siza desenhou este banco de jardim, tipo espreguiçadeira, em 1990, para o Banco Borges & Irmão, em Vila do Conde. “Como o tempo era pouco, propus [à Guta Moura Guedes] esta peça que desenvolvi para o banco”, recorda o arquitecto, que só voltou a fazer uma peça idêntica para um cliente particular, em Matosinhos.
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É uma composição muito depurada de duas peças – mas feita a partir de um mesmo bloco de mármore branco de Estremoz –, especialmente pensada para o ar livre. “É um banco duro mas muito acolhedor, porque se adapta ao corpo humano”, diz o arquitecto, salientando ter tido, desde o início, essa preocupação ergonómica. Componente também indispensável para o sucesso de uma peça como esta é o marmorista que a faz. Neste caso, o Sr. Sousa, de Valongo. “A mão-de-obra é muito importante, porque nem toda a gente consegue perceber o que é que está dentro de um grande bloco de mármore; o Sr. Sousa consegue seleccionar um branco quase puro, mas sabe também tirar o melhor partido dos veios da pedra”, diz.
Também na sua arquitectura Siza tem recorrido ao mármore de Estremoz. Fê-lo, inclusivamente, no edifício de habitação social que nos anos 1980 projectou para a cidade holandesa de Haia – e que está agora documentado na exposição Neighbourhood, que representa Portugal na Bienal de Veneza –, mas também no projecto da fábrica que fez para cidade de Jiangsu, na China, e propô-lo ainda para o edifício de habitação que desenhou para Nova Iorque.
X, Mia Hägg
Nos jardins da Villa Hériot, a arquitecta sueca Mia Hägg começa por explicar ao PÚBLICO que o “X” é “uma forma básica da arquitectura”. Seja nos edifícios como nas pontes, é o primeiro gesto, porque “é uma forma geométrica e tectónica muito estável”. E recorda que nas cidades romanas o “X” marcava o cruzamento das vias, o lugar do fórum, como actualmente significa stop – poder e resistência. Ao utilizar agora esta forma geométrica e gráfica para responder ao repto do projecto Resistance, Hägg quis também tirar partido “do contraste, e da liberdade” possibilitados pela utilização do mármore, que considera “um material muito nobre”.
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“Desde o início, decidi que não queria fazer mais uma mesa de café”, diz a arquitecta. Na procura de um sentido e de uma utilidade para esta sua primeira experiência com o mármore português, Hägg pensou em algo que pudesse “ser usado diariamente nas nossas cidades, nas nossas vidas”. O seu “X” tornou-se então um objecto utilitário: um suporte para bicicletas – uma das peças expostas no jardim da Giudecca –, ao qual não falta, sequer, o pormenor do orifício para prender o cadeado. Nesse sentido, pode ser usado e disseminado pelo espaço público, seja nas ruas e jardins das cidades, seja nos lugares mais domésticos.
“Também gostei da ideia de que este ‘X’ pudesse ser algo que possa intrigar as pessoas: ‘O que é isto?’”. E “isto” pode ser também uma peça de decoração, que a passagem do tempo fará "envelhecer de forma mais bonita, com contornos mais redondos”, acredita Hägg.
Metamórfica, Amanda Levete
Com o “X”, de Mia Hägg, a criação de Amanda Levete foi a mais espalhada pelos jardins da Villa Hériot. A arquitecta inglesa chama-lhe Metamórfica em referência às mudanças profundas que esta pedra vai sofrendo na estrutura dos seus cristais com o passar dos milénios. “Esta noção de mudança e metamorfose é reflectida na peça, uma celebração das suas propriedades materiais”, diz Levete ao PÚBLICO, via email.
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Os protótipos de Metamórfica expostos em Veneza estavam declinados em três versões. O módulo mais simples, minimal, é uma espécie de redução de um cubo em faces triangulares, que pode ser acoplado em diferentes formatos e dimensões. Duas outras composições ao lado mostram as outras formas que a peça pode assumir. “Quando totalmente montada, Metamórfica é um cubóide perfeito; é uma forma simples, monolítica e estável”, explica Levete. Pode ser um banco, individual ou corrido, uma mesa, ou então também uma peça de decoração para exteriores.
Os convidados e visitantes na sessão de lançamento do projecto Resistance puderam experimentar in loco o banco Metamórfica. Mas quem explorou mais abertamente todas as possibilidades desta criação da arquitecta inglesa foram as crianças, que se sentaram, deitaram, serpentearam, enfim, brincaram entre as suas formas lisas e de cristal.
Lore, Bijoy Jain
O arquitecto indiano Bijoy Jain, fundador do Studio Mumbai (Bombaím), não sabe ainda muito bem o que é que vai sair do seu projecto Lore. “Este está a ser mais um 'working process' do que um work-in-progress, mas o mais importante é o facto de me permitir criar espaço a partir de algo que não tem espaço”, explica Jain ao PÚBLICO, na Giudecca.
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O conceito lore, que pode ser traduzido por “conhecimento” – mas que em inglês significa também o espaço entre o olho e o bico ou a narina, nos pássaros e nas cobras –, significa para o arquitecto “a passagem do tempo e o conhecimento que essa passagem sempre transporta, entre passado, presente e futuro”. E Jain vê materializada no mármore português – mas podia ser uma pedra de outra origem qualquer – essa ideia da passagem do tempo. “Para mim, esta matéria contém uma ideia de tempo como elemento fundador, como a água ou o ar”, diz, acrescentando que aquilo que lhe interessa é “ir à fonte, às possibilidades que isso abre de tornar-se qualquer coisa”.
Parecendo, na forma como está apresentado, o projecto mais enigmático de quantos integram Resistance, Lore abre todo um campo de possibilidades a partir de imagens de pedreiras e de mármores no seu leito natural.
“Estou muito curioso por ver o que é que isto vai dar, ou o que pode dar; não sei ainda quais vão ser os seus limites”, confessa Bijoy Jain.
A thing not an object, Elemental
Na visita-relâmpago que fez à ilha da Giudecca para visitar o Pavilhão de Portugal e a exposição da ExperimentaDesign, Alejandro Aravena explicou também muito a correr – estávamos nas vésperas da abertura oficial da Bienal de Veneza – o conceito de A thing not an object, com que o seu atelier, Elemental, participa no projecto Resistance. Em desenhos em folhas A4 coladas na parede e em fotografias expostas numa vitrina dentro da Villa Hériot, o atelier do arquitecto chileno começa por explicar a diferença entre coisas e objectos. “A natureza produz ‘coisas’ e não ‘objectos’. A diferença está em que uma coisa não precisa de um projecto. Por exemplo, uma pedra, se tiver um determinado tamanho e uma determinada forma, pode funcionar como uma cadeira (um objecto) no momento em que alguém se senta nela. Mas quando nos levantamos e vamos embora, ela volta a ser uma coisa."
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Sobre estes pressupostos – e também porque no Elemental, dado que a arquitectura é muito cara, se procura sempre projectar edifícios capazes de durar –, a equipa de Aravena está a desenvolver um projecto virado para as crianças e para o jogo lúdico.
A thing not an object será um bloco de mármore que na sua face exterior deverá manter todas as características e a aspereza da pedra (uma coisa), mas quando utilizado pelas crianças se transforma num escorrega (um objecto). Nele, poderão jogar o berlinde, brincar com a água, experimentar a gravidade…
Enfim, uma coisa-objecto que poderá ser colocada em escolas, jardins, espaços públicos. Tanto para brincar como para pontuar a paisagem.
O PÚBLICO viajou a convite da ExperimentaDesign e da Assimagra