Sangue novo para a Vampiro

Lançada em 1947, a Vampiro acabou em 2008, 60 anos e mais de 700 números depois. Agora a Livros do Brasil ressuscitou a mais importante colecção policial portuguesa, inaugurando a sua nova série com reedições de S. S. Van Dine e Ellery Queen.

Fotogaleria

Há quase 70 anos, em 1947, a Vampiro introduzia o policial de bolso em Portugal, divulgava os grandes autores do género, sobretudo ingleses e americanos, como Agatha Christie ou Erle Stanley Gardner, e deslumbrava os leitores da época com as inovadoras e sedutoras capas do pintor surrealista Cândido Costa Pinto. O último número da colecção, o 703, saiu em 2008. Agora a Livros do Brasil veio dar uma segunda vida à colecção, inaugurando a nova série com reedições de S. S. Van Dine e Ellery Queen.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Há quase 70 anos, em 1947, a Vampiro introduzia o policial de bolso em Portugal, divulgava os grandes autores do género, sobretudo ingleses e americanos, como Agatha Christie ou Erle Stanley Gardner, e deslumbrava os leitores da época com as inovadoras e sedutoras capas do pintor surrealista Cândido Costa Pinto. O último número da colecção, o 703, saiu em 2008. Agora a Livros do Brasil veio dar uma segunda vida à colecção, inaugurando a nova série com reedições de S. S. Van Dine e Ellery Queen.

Quando o grupo Porto Editora comprou a Livros do Brasil, começou por reanimar a clássica colecção Dois Mundos, mas avisou logo que a Vampiro não estava esquecida e que os fãs do policial podiam esperar novidades para breve. Elas aí estão. Com a reedição de Os Crimes do Bispo, de S. S. Van Dine, e de Vivenda Calamidade, de Ellery Queen, inaugura-se uma nova série da colecção, que começará por repescar o melhor do extenso património da Vampiro original, que foi, de longe, a mais importante e duradoura colecção policial portuguesa.

“Se a coisa pegar”, diz o editor Manuel Alberto Valente, “admitimos vir também a publicar livros novos”. O que resultaria num modelo bastante semelhante ao que os actuais editores da prestigiada colecção francesa Masque lançaram em 2012 com a Masque Poche, que justamente cruza reedições de clássicos do seu catálogo com a publicação de novos títulos.   

A hipótese de reeditar toda a colecção, admitindo que pudesse fazer sentido, seria virtualmente impossível, dado que muitos autores não estão ainda no domínio público e os seus direitos de publicação em Portugal pertencem hoje a outras editoras, como acontece com Agatha Christie, que vem sendo editada em novas traduções pela Asa, do grupo Leya.

De resto, a anterior tentativa da Livros do Brasil de reeditar parcialmente a colecção não deixou boa memória. Reproduziu os livros com as mesmas capas e miolo, sem nenhuma indicação de que se tratava de uma segunda edição, e os acabamentos eram tão maus que os volumes, à primeira leitura, acabavam desfeitos num monte de folhas soltas, e as cores das capas e lombadas rapidamente começavam a desvanecer-se. É essa, de resto, a maneira mais segura de distinguir hoje estas réplicas das edições originais, que depois de atravessarem décadas e andarem em muitas mãos ainda hoje se encontram geralmente em estado bastante satisfatório.

Claro que para os coleccionadores da Vampiro será um bocado irritante terem agora duas colecções com o mesmo nome, e nas quais livros idênticos têm números diferentes. Mas esta nova Vampiro, assume Manuel Alberto Valente, é pensada para quem já não conheceu a colecção anterior quando esta ainda se publicava, e também para os leitores futuros. E os fãs mais veteranos da literatura policial terão pelo menos o prazer de a ver regressar no saudoso formato de bolso, e ao aceitável preço de 7,7 euros por volume.

E se a segunda Vampiro aproveita as traduções da primeira, estas são “totalmente revistas”, diz Valente, assegurando que tem mesmo sido feito “um confronto com os originais”, não tanto para verificar a fiabilidade das traduções, mas para assegurar que são integrais. É que se a Vampiro, neste capítulo, estaria uns furos acima da maior parte das colecções da época, não era ainda assim invulgar o tradutor resumir ou ignorar passagens, quer por serem de tradução mais difícil, quer por eventualmente as achar irrelevantes para a economia do enredo. “Um dos livros que vamos publicar é Picada Mortal, de Rex Sout [o primeiro livro protagonizado por Nero Wolfe], e chegámos à conclusão de que a versão da Livros do Brasil é altamente amputada”, conta o editor.

O facto de o grupo Porto Editora ter adoptado o acordo ortográfico obrigaria, em qualquer caso, à revisão das traduções originais. Mas basta comparar a primeira página de Os Crimes do Bispo nas duas edições para se constatar que esta revisão, não pretendendo ser uma reescrita, também não se resume a uma mera actualização ortográfica, e corrige erros que um revisor menos atento poderia deixar passar. Por exemplo: logo nas primeiras linhas da edição original de Os Crimes do Bispo há uma referência aos “famosos assassínios dos Green”, que o revisor corrige acertadamente para “Greene”, percebendo que o narrador alude a The Greene Murder Case, que a Vampiro publicou como A Série Sangrenta (n.º 30).  

A tradução de Os Crimes do Bispo é assinada por Peri Pinto Diniz. Já a de Vivenda Calamidade, n.º 2 da nova colecção, é da autoria de Lino Vallandro, tradutor de Aldous Huxley e autor de dicionários de inglês-português. Ambos são brasileiros, como a generalidade dos tradutores da fase inicial da Vampiro, que incluem, por exemplo, o humorista Millôr Fernandes, que traduziu O Santo e os Anjos da Vingança (n.º19), ou o romancista Erico Veríssimo, creditado como tradutor de O Mistério da Escada de Caracol, de Mary Roberts Rinehart (n.º 12). Para se perceber esta insólita hegemonia de traduções brasileiras numa colecção portuguesa, é preciso evocar a ainda mal estudada ligação inicial da Vampiro à colecção policial Amarela, da editora brasileira Globo, de Porto Alegre, de que falaremos adiante.

Outro aspecto que poderá seduzir alguns leitores nesta nova Vampiro são as capas, desenhadas por Luís Alegre, que apostou num simpático estilo retro, a piscar o olho às capas originais, ideia reforçada pela manutenção, em versão ligeiramente simplificada, do célebre logótipo da colecção, com o seu vampiro de asas abertas. Em termos comerciais, a aposta pode bem funcionar, mas a homenagem não deixa de ser equívoca, já que as capas de Cândido Costa Pinto, nesses anos 40 e 50, eram absolutamente inovadoras e vanguardistas. De retro não tinham mesmo nada. 

Nessa idade de ouro das colecções policiais de bolso portuguesas, os limitados centímetros quadrados das capas transformaram-se mesmo num fascinante território de experimentação, onde artistas como Cândido Costa Pinto e Lima de Freitas, na Vampiro, Eduardo Muge, na Xis, e Roberto Araújo Pereira ou Marcelino Vespeira, na Escaravelho d’Ouro, criaram pequenas obras-primas que integram de pleno direito o património artístico português do pós-guerra. As capas da Vampiro eram tão boas, que até a própria Agatha Christie as coleccionava.

Costa Pinto foi o capista de serviço, nem sempre creditado, até ao n.º 112, seguindo-se Lima de Freitas, o grande responsável pelo período seguinte, que só terminaria em 1976, ano em que a Vampiro mudou o grafismo para as monótonas capas de fundo negro. Estas mantiveram-se até 2004, quando a Livros do Brasil teve a infeliz ideia de mudar também o formato da colecção, aumentando 2,5cm à altura dos livros. 

Quando a Vampiro surge, em 1947, essas capas de Cândido Costa Pinto são provavelmente um dos factores decisivos para o sucesso da nova colecção, que vinha também marcar a diferença pela prioridade dada aos autores de língua inglesa, pela aposta no policial clássico em detrimento de visões mais abrangentes do género, por traduções que eram apesar de tudo melhores do que as versões muitas vezes libérrimas oferecidas por colecções anteriores, e ainda por uma concentração inteligente em meia dúzia de autores de obra vasta e com detectives carismáticos – Perry Mason, Poirot, Philo Vance, Ellery Queen, Nero Wolfe –, um elemento fundamental para fidelizar o leitor de policiais.

Se olharmos para o variado panorama das colecções policiais portuguesas que antecederam a Vampiro, a mais interessante foi provavelmente a colecção Os Melhores Romances Policiais, da Livraria Clássica Editora, lançada em 1931, e que publicou uma boa escolha de autores francófonos, incluindo Simenon. E dois anos antes da Vampiro, apareceu ainda a colecção policial da Empresa Nacional de Publicidade, já mais voltada para o policial anglo-saxónico, que publicou vários títulos de John Dickson Carr e alguns de Agatha Christie. Mas ambas são relativas excepções num cenário dominado por colecções que apostavam muitas vezes num pobre arremedo de policial português servido sob pseudónimos ingleses, ou em traduções mais ou menos duvidosas de escritores populares, como Edgar Wallace ou E. Phillips Oppenheim.

As verdadeiras rivais da Vampiro serão duas colecções criadas em 1950, e que claramente tentarão replicar a fórmula da Livros do Brasil, apostando também no formato de bolso, em capas atraentes e em autores anglo-saxónicos: a excelente Escaravelho de Ouro, que durou apenas 40 números, e a Xis, que ainda chegou, com alguns hiatos, aos anos 90, tendo publicado 210 números.

Os autores da casa

Bastante longe, ainda assim, dos 703 números da Vampiro, que na realidade correspondem a 705 volumes, já que a colecção repetiu os números 100 e 477. Para comemorar a chegada ao centésimo número, em 1955, a Vampiro lançou, num só volume duplo, O Homem de Fato Castanho, de Agatha Christie, e A Aldeia de Vidro, de Ellery Queen. Mas em 1962 acabou por publicar o primeiro isoladamente, atribuindo-lhe também o n.º 100. Já a existência de dois 477 deve-se a um lapso. Em 1987, saiu com esse número A Arma Fez-se para Matar (Gun Before Butter), de Nicolas Freeling, que já fora publicado na colecção em 1966 (n.º 229) com o título Crime em Amsterdão. Quando deu pelo lapso, a Vampiro decidiu repetir o n.º 477, atribuindo-o também ao volume seguinte, O Castor Assassinado, de Ngaio Marsh. 

Ao longo de seis décadas, a Vampiro publicou para cima de uma centena de autores, mas esta diversidade é algo enganadora, já que os dez nomes mais representados asseguram 60 e tal por cento da colecção. Encabeça a lista o americano Erle Stanley Gardner, criador do célebre advogado-detective Perry Mason, responsável por nada menos do que 95 volumes, já que aos 66 títulos assinados com o seu próprio nome, soma 29 escritos sob o pseudónimo A. A. Fair, que usava para as histórias protagonizadas por Bertha Cool, a avantajada e avarenta sócia maioritária da agência de detectives Cool & Lam. 

O segundo lugar vai para Georges Simenon (73 títulos), com as pachorrentas investigações do inspector Maigret pelos bairros de Paris ou pelas vilas de província, que trouxeram ao género policial um sedutor naturalismo poético que ainda hoje assegura ao escritor belga uma legião de leitores fiéis. Quem anda a tentar completar a Vampiro sabe que é especialmente difícil encontrar “os Maigret”, porque Simenon, como Agatha Christie, tem coleccionadores próprios. O mais raro dos Simenon da Vampiro é, dizem os alfarrabistas, A Sombra Chinesa (n.º 71), que tem a particularidade de ter sido traduzido por Alexandre O’Neill.    

No terceiro degrau do pódio, com 66 livros, temos a rainha britânica do policial de dedução, Agatha Christie, com o seu detective Hercule Poirot, um belga dotado de abundantes celulazinhas cinzentas, um bigode empertigado e imaculados sapatos de verniz, que alterna com vários outros protagonistas, entre os quais se destaca Jane Marple, uma velha solteirona que gosta de se intrometer onde não é chamada, e a quem décadas de observação da vida quotidiana de uma aldeia inglesa ensinaram tudo quanto há a saber sobre a natureza humana.

Segue-se, com 43 títulos, o americano Rex Stout, com o seu gigantesco e genial detective Nero Wolfe, gastrónomo e coleccionador de orquídeas. Mais do que os enredos, o melhor destes livros são os hilariantes diálogos entre Wolfe e o seu braço-direito, Archie Goodwin, pelo que se recomenda desde já aos revisores da nova Vampiro que tenham cuidado com alguns dos últimos Stout publicados na colecção original, caso queiram reeditá-los, porque um tradutor menos intuitivo resolveu pôr patrão e empregado a tratarem-se por tu, o que destrói irremediavelmente a tensão cómica dos diálogos.

Se os quatro autores mais publicados são todos da primeira fase da Vampiro, o quinto, Hartley Howard, pseudónimo do autor britânico Leopold Horace Ognall, que também tem livros na colecção com o nome Harry Carmichael, será uma das grandes apostas da Vampiro a partir do início dos anos 60. Somando os dois pseudónimos, Ognall tem 34 títulos, mais dois do que o americano Frank Gruber, autor que tocou várias teclas da chamada pulp fiction. No policial, os seus heróis mais famosos são a divertida dupla de pequenos vigaristas formada pelo desenrascado Johnny Fletcher e pelo musculado e algo obtuso Sam Cragg, mas Gruber era capaz de escrever em registos muito diversos, como o prova o interessante A Ponte de Areia (n.º 226), um mistério de temática arqueológica e bíblica.

Numa das suas raras cedências a esse filão de autores populares que tanto se podem arrumar no policial como no romance de aventuras, a Vampiro publicou ainda 23 livros de Leslie Charteris, criador de Simon Templar, vulgo O Santo, popularizado na televisão por Roger Moore. Charteris está empatado com Mickey Spillane, o principal representante na Vampiro da versão mais dura do chamado hard-boiled americano, com sexo e violência quanto baste. É aliás curioso notar que os livros de Spillane e de outros autores da mesma escola ofereciam aos leitores portugueses, em plena censura salazarista, cenas eróticas de uma explicitude que estes dificilmente encontrariam em romancistas portugueses da época. E permita-se outra sugestão à nova Vampiro: se quiserem recuperar Spillane, e uma vez que não fará muito sentido reeditar para já o mais canónico Eu, o Júri (n.º 680) que saiu no final da colecção, não se esqueçam do arrepiante O Reverso do Espelho (n.º 235).  

Outro autor com um pé no romance de aventuras e espionagem, o britânico Edgar Wallace, surge em 9.º lugar, com 21 livros, o que se deve essencialmente ao responsável pela fase final da Vampiro, que publicou uns excessivos 15 títulos de Wallace entre os últimos cem números da colecção, incluindo, reconheça-se, o estimável A Astúcia de Mr. Reeder.

O top ten encerra-se com Ellery Queen, pseudónimo conjunto de dois primos de Brooklyn, Manfred Bennington Lee e Frederic Dannay, americanos com fair play britânico, que faziam questão de dar ao leitor todas as pistas necessárias e, antes de apresentarem o culpado, desafiavam o leitor a apontá-lo. Foi talvez o autor mais equitativamente repartido entre a Vampiro e a contemporânea colecção Xis, da Minerva, que publicou 22 livros de Ellery Queen, alguns deles já da fase em que o pseudónimo se transformara numa espécie de marca registada que encobria vários autores.

Regras e truques baixos

Menos omnipresentes, mas não menos incontornáveis nos primeiros anos da Vampiro, são Dorothy L. Sayers e Anthony Berkeley, dois autores cruciais do policial de dedução britânico, embora os dois melhores livros de Berkeley, escritos sob o pseudónimo Francis Iles, se afastem do género whodunnit [neologismo criado a partir de ‘who done it?’, quem o fez, quem é o culpado?] para anteciparem o thriller psicológico que Patricia Highsmith e outros iriam depois cultivar. Um desses livros, Suspeita (adaptado por Hitchcock no filme homónimo), saiu apenas na colecção Escaravelho d’Ouro, o outro, Malícia Premeditada, foi tardiamente recuperado pela Vampiro no seu número 535. 

A estes autores ingleses, há que somar dois americanos fiéis ao policial dedutivo: John Dickson Carr, especialista em enigmas de quarto fechado, e o agora reeditado S. S. Van Dine, que chegou mesmo a escrever, em 1928, umas célebres Twenty Rules for Writing Detective Stories, que a Vampiro traduziu como As Vinte Regras do Romance Policial, publicando-as como anexo ao volume Dois Crimes no Inverno (n.º 57). A última regra é na verdade um decálogo de truques a que nenhum autor que se preze deve recorrer, do “cão que não ladra, revelando assim que o intruso é um familiar do local” ao culpado que é “irmão gémeo do suspeito ou parente muito parecido”.

Mas a importância cultural da Vampiro não teria sido exactamente a mesma se, mantendo embora como linha dominante o policial clássico, não tivesse também contribuído para divulgar em Portugal os dois grandes mestres do roman noir americano, Dashiell Hammett  e Raymond Chandler. Não por acaso, a Livros do Brasil já anunciou que os números 3 e 4 da nova série serão, respectivamente, O Falcão de Malta (n.º 34), o primeiro Hammett a ser publicado em Portugal, em 1950, e O Imenso Adeus (n.º 101), de Chandler, possivelmente o melhor romance policial de sempre, originalmente publicado pela Vampiro em 1953, numa tradução do poeta Mário Henrique Leiria. 

Entre outros autores que, em períodos diferentes, ajudaram a definir o perfil da colecção poderiam ainda citar-se os ingleses Peter Cheney e Nicolas Freeling ou os americanos Fredric Brown e Ben Benson. E há depois nomes de reconhecida qualidade que até chegaram cedo à colecção, mas talvez por parecerem um pouco afastados das suas linhas dominantes, aparentemente não “pegaram”, como Patricia Highsmith, de quem saíram apenas três livros, tantos quantos os que a Vampiro publicou de Nicholas Blake, pseudónimo do poeta Cecil Day-Lewis (pai do actor Daniel Day-Lewis), que em A Fera Tem de Morrer (n.º 162) mostra como se pode escrever um policial electrizante a partir de um trivial episódio de atropelamento e fuga. 

Outra presença efémera é a do negríssimo mestre do suspense, William Irish, um autor muito publicado na Xis, de quem a Livros do Brasil editou apenas A Mulher Fantasma (n.º 38). Irish, pseudónimo de Cornell Woolrich, é apenas um exemplo da ecléctica lista de notáveis a quem a Vampiro só deu uma oportunidade. Por ordem de entrada em cena na colecção, lembrem-se apenas Charlotte Armstrong, Sax Rohmer – o outrora muito popular criador do Dr. Fu Manchu –, H. P. Lovecraft, um pioneiro autor de culto na área do terror e do sobrenatural que a Vampiro revelou em Portugal com Os Mortos Podem Voltar (n.º 111), Ruth Rendell, G. K. Chesterton, Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, Maurice Leblanc, inventor do ladrão chic Arsène Lupin, Edgar Allan Poe, o fundador do género, homenageado com a inclusão de Os Crimes da Rua da Morgue no número (comemorativo) 600, o romancista escocês Robert Louis Stevenson, o contista americano O. Henry, e até o dramaturgo e contista russo Anton Tchékov.

A amiga brasileira

O grande mérito pelo lançamento da mais importante e influente colecção policial portuguesa cabe antes de mais ao fundador da Livros do Brasil, António Augusto de Souza-Pinto (que prestou idêntico serviço à divulgação da ficção científica com a colecção Argonauta), e depois aos muitos que contribuíram para o seu sucesso, dos primeiros capistas a, por exemplo, Vítor Palla, que dirigiu a Vampiro Magazine, uma revista que no início dos anos 50 acompanhava a colecção, ajudando a criar uma comunidade de leitores.

Não muito lembrado é o facto de a editora brasileira Globo, de Porto Alegre, então dirigida por Henrique Bertaso, ter sido instrumental nesses anos em que a Vampiro se consolidava. Em 1931, Erico Veríssimo, que já dirigia na Globo uma revista semanal, assumiu funções editoriais mais amplas e tornou-se um dos grandes responsáveis pela criação de várias novas colecções, incluindo a Amarela, lançada nesse ano, e que publicou 156 números até 1956, divulgando autores como Edgar Wallace ou Sax Rohmer, mas também Agatha Christie, Ellery Queen, Erle Stanley Gardner, Simenon ou Dashiell Hammett.

Apostando num conjunto de tradutores que o próprio Veríssimo levara para a editora, e numa equipa de artistas gráficos modernistas muito inspirados pela estética do cinema e dos cartazes de promoção de filmes, com as letras dos títulos desenhadas à mão, o uso do zoom, as grandes manchas de cor, a Amarela foi um sucesso de vendas e tinha já um extenso catálogo em 1947, quando a Vampiro é lançada. Boa parte dos primeiros números da colecção portuguesa irão ser importados dessa congénere brasileira, aproveitando as respectivas traduções, que geralmente eram revistas para Portugal. Todos esses volumes iniciais da Vampiro trazem por isso o aviso: “Edição portuguesa autorizada pela Editora Globo”.

Só dez dos cinquenta números iniciais da Vampiro não vieram da colecção brasileira, cujo catálogo claramente condicionou a sua primeira fase. Veja-se, por exemplo, que os cinco Simenon que a Vampiro incluiu nos primeiros 100 números estão todos entre os seis que a Amarela publicou. Ou que o primeiro Rex Stout da Vampiro, A Caixa Vermelha (n.º 55) corresponde ao único livro que a colecção brasileira publicou deste autor. E é também este link brasileiro que justifica algumas aparentes singularidades iniciais da Vampiro, como a publicação de Knock-Out (n.º 5) de Sapper, ou de O Assassínio da Bruxa (n. º 31), da bastante desconhecida Nancy Barr Mavity.

 Mas esta relação com a congénere brasileira acaba por constituir mais uma prova da deliberação com que a Vampiro foi pensada, já que, no essencial, os seus responsáveis foram claramente aproveitar da Amarela aquilo que se enquadrava na linha que tinham traçado para a colecção portuguesa. Não é por acaso que dispensam quase inteiramente dois dos mais omnipresentes autores da Amarela, Edgar Wallace e Sax Rohmer, e nem sequer pegam em nomes como Sidney Horler, Lois Wilton, Frank L. Packard ou Alessandro Varaldo (depois publicado na Xis), mas repescam, em contrapartida, quase tudo o que a colecção brasileira tinha publicado de  Agatha Christie, S. S. Van Dine, Ellery Queen ou Erle Stanley Gardner.

E agora, leitor, esqueça tudo isto, e vá descobrir como é que Cock Robin apareceu com uma flecha cravada no peito para momentâneo desconcerto de Philo Vance, e por que é que Ellery Queen estava afinal bem enganado quando acreditou que sair de Nova Iorque lhe daria mais sossego para escrever o seu próximo romance policial.