Memorável PJ Harvey e lição de história com Brian Wilson: o Primavera Sound acabou

O Primavera Sound chegou ao fim na noite de sábado, com o novo e impactante espectáculo de PJ Harvey e com a revisitação a Pet Sounds, o histórico álbum de Brian Wilson, lançado há cinquenta anos. Ambos vão estar no próximo fim-de-semana no Porto.

Fotogaleria

Já tinha havido pequenos concertos de preparação, mas a estreia mundial em grandes espaços do novo espectáculo de PJ Harvey, baseado no álbum The Hope Six Demolition Project, quatro anos depois da última digressão, aconteceu este sábado, em Barcelona.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Já tinha havido pequenos concertos de preparação, mas a estreia mundial em grandes espaços do novo espectáculo de PJ Harvey, baseado no álbum The Hope Six Demolition Project, quatro anos depois da última digressão, aconteceu este sábado, em Barcelona.

É um espectáculo vibrante, elaborado, denso e exigente. Entraram em palco, ela e os seus nove magníficos músicos (com destaque para John Parish, Mick Harvey e Jean-Marc Butty), ao som marcial de Chain of keys, com tambores militarizados e ela, de vaporoso vestido negro, com transparências e cortes, tocando saxofone. O design de palco – do artista multimédia Jeremy Herbert – é ao mesmo tempo imponente e sóbrio, em tons amarelados e negros.

A música, quando são abordados os novos temas, é singular para um concerto rock, com muitas percussões, sons de saxofone, guitarras cerradas e vozes colectivas servindo de suporte à voz dela, num todo cortante, milimétrico, pulsante. É evidentemente um concerto político, com qualquer coisa de sombrio e de teatralização do absurdo da guerra, que poderia resultar impenetrável num contexto daqueles. Mas não foi isso que aconteceu.

Ao contrário do que havia sucedido na véspera com os Radiohead, onde se sentiu que as canções mais introspectivas se perderam no meio da multidão, com a britânica a experiência foi diferente, apesar de a sua proposta ser até mais complexa. Ao longo da interpretação das novas canções (Ministry of social affairs, Community of hope, A line in the sand, The ministry of defence, Medicinals ou River anacostia) há um ambiente quase solene, mas a interpretação vocal e a fisicalidade felina, ladeadas pela seriedade dos músicos, gera fascínio.

Há na sua atitude, nas canções e no espectáculo em geral, qualquer coisa de classicismo rock, mas ao mesmo tempo de reinvenção a partir do interior. Com os anos dir-se-ia que se apropriou dos cânones do género para melhor os recriar à sua maneira. Claro que nem tudo andou à volta do novo álbum, mas mesmo a revisitação de canções mais rodadas (Let england shake, The words that maketh morder, The glorious land, The wheel, To bring you my love) pareceu contaminada pela intensidade do novo projecto, que tem tanto de imponente como de exposição da maior das fragilidades. Em When under ether cria um momento de sentido intimismo que parece impossível naquele ambiente, enquanto em 50ft queenie o colectivo parte desvairadamente à procura da electricidade mais primitiva e em Down by the water é exposto o lado mais sensual da cantora com toda a gente em delírio.

Para o fim ficou River anacostia, com os dez intervenientes como tinham começado, entoando em conjunto à boca do palco, num registo gospel "Wade in the water, God’s gonna trouble the water", contaminando o público que com eles se deixou ir, transformando o espaço numa imensa congregação de resistência aos males do mundo, num concerto monumental de alguém que não se rende ao facilitismo reinante dos espectáculos para grandes multidões.

A história ao vivo

O outro concerto mais esperado do último dia do festival Primavera Sound – que recebeu 200 mil espectadores ao longo de três dias, segundo a organização – era o do mítico Brian Wilson, cérebro dos Beach Boys, compositor que influenciou quase toda a música popular, dos Beatles aos Air, Tame Impala, Animal Collective ou Beach House, para nomearmos grupos que passaram pelo evento. Todos eles devem algo a Pet Sounds, um dos álbuns que mais marcou sucessivas gerações, lançado há 50 anos, e agora transposto para o palco em Barcelona.

Em palco esteve também o guitarrista Al Jardine, outro dos fundadores dos Beach Boys, o filho deste, Matt Jardine, dono de um falsete impressionante, e mais uma dezena de músicos. Com um público transgeracional à sua frente, Wilson, 73 anos, sentado ao piano, fez toda a gente feliz. Revelou sentido de humor – “Boas notícias! Uma surpresa para vocês, esta não tem voz, só instrumentos”, ironizou na apresentação de um dos dois temas instrumentais do álbum – mas quem vai à espera de um concerto imaculado não o encontrará. Há alturas em que desafina e em que parece ausente, com o colectivo suprindo pequenas falhas. Mas nada disso é fundamental ali. É celebração. É história ao vivo. E a assistência, rendida, percebeu-o.

O álbum foi apresentado segundo o seu alinhamento original, com as melodias, as harmonias vocais, o rendilhado orquestral e o sentido lúdico do dinamismo rítmico seguindo um figurino o mais fiel possível aos temas originais, com toda a gente a responder efusivamente a Sloop John B ou God only knows, canções maiores que fazem parte da memória colectiva da cultura Ocidental. Mas o melhor estaria até guardado para depois, com os veteranos músicos em palco a divertirem-se à séria e a contagiarem toda a gente com canções de outros tempos que serão sempre o nosso tempo como Good vibrations, California girls, I get around, Surfin’ USA ou Fun, fun, fun. No final ouviu-se uma enorme ovação num forte momento emocional. 

Quem está de regresso são os islandeses Sigur Rós. Do que vimos fica a ideia que o grupo está numa fase em que procura reinventar-se, apresentado novas roupagens para as canções, mas ainda existe alguma indefinição: entre manterem-se fiéis à singular sonoridade rock etérea que lhes granjeou culto, ou soltarem amarras em direcção ao desconhecido. Novos temas como Óveòur ou Kveikur ainda não deixam perceber as intenções. Para já o que o público do Porto poderá esperar do concerto de quinta-feira será um espectáculo imponente em termos visuais e o habitual jogo de tensão e distensão sonora da maior parte das canções.

Quem passa por um momento de estado de graça são os nova-iorquinos Parquet Courts, perceptível pela forma entusiasta como as canções furiosas e o rock retorcido que praticam foi recebido pela assistência. São a enésima versão do grupo rock indie de guitarras mas a verdade é que o milagre opera-se e a forma carismática como estão em palco, e as canções escondidas por debaixo da electricidade, garante-lhes um inesperado sopro de vitalidade.

Num espectro totalmente diferente é o que apetece dizer da americana Julia Holter. A sua pop orquestral, recheada de referências artísticas e literárias, poder-se-ia perder no emaranhado ruidoso de um festival com estas características, mas o público manteve-se com ela, e com os três músicos que a acompanharam, numa relação de grande cumplicidade. O seu último álbum – Have You In My Wilderness (2015) – parece uma viagem emocional ao coração da pop e foi isso que se viveu com um conjunto de canções tão íntimas quanto universais.

A viagem de Julia Holter, e do Primavera Sound, tem agora como destino o Porto, entre quinta-feira e sábado. Quanto ao Primavera de Barcelona despede-se até ao próximo ano. Continua um festival imparável. Um cartaz com 349 concertos, agora também com extensões pela cidade, com 104 deles gratuitos, e o público continua numeroso (52% de fora de Espanha), circulando à vontade por um espaço gigante, que não sendo vistoso, é funcional.

O PÚBLICO viajou a convite do Primavera Sound