Um ringue de boxe para esmurrar austeridades e consensos
Estreia no Alkantara da primeira de sete peças com que Cláudia Dias reclama o direito a um futuro. Segunda-Feira: Atenção à Direita é um combate criado com Pablo Fidalgo Lareo.
Toca o sino. Ao sinal, Cláudia Dias e Jaime Neves, boxeurs equipados a rigor, avançam um para o outro e vão trocando socos, alternando o ataque e a defesa, enquanto Pablo Fidalgo Lareo, sentado no lugar de árbitro, vai atirando perguntas que parecem acumular-se como um esbofeteamento contínuo na cara do público. Segunda-Feira: Atenção à Direita, peça que se estreou no Teatro Maria Matos, em Lisboa, no âmbito do Alkantara Festival, e que daí segue para o Teatro Municipal Rivoli, no Porto, em mais um fim-de-semana FITEI — Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (dias 10 e 11) é a primeira de uma série de sete peças criadas por Cláudia Dias, travando uma outra luta enquanto artista: o direito a ter e projectar um futuro.
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Toca o sino. Ao sinal, Cláudia Dias e Jaime Neves, boxeurs equipados a rigor, avançam um para o outro e vão trocando socos, alternando o ataque e a defesa, enquanto Pablo Fidalgo Lareo, sentado no lugar de árbitro, vai atirando perguntas que parecem acumular-se como um esbofeteamento contínuo na cara do público. Segunda-Feira: Atenção à Direita, peça que se estreou no Teatro Maria Matos, em Lisboa, no âmbito do Alkantara Festival, e que daí segue para o Teatro Municipal Rivoli, no Porto, em mais um fim-de-semana FITEI — Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (dias 10 e 11) é a primeira de uma série de sete peças criadas por Cláudia Dias, travando uma outra luta enquanto artista: o direito a ter e projectar um futuro.
O esboço deste plano — que dedicará a cada dia da semana um espectáculo por ano — começou a desenhar-se em 2011, período tomado refém de palavras como “crise” e “austeridade”. “Parecia que só tínhamos direito a construir o futuro ano a ano, com esforço”, recorda. Querendo combater esta “ideia de inevitabilidade”, de uma pesada condenação prévia da sua vida por vir, decidiu comprometer-se com sete anos de trabalho e, assim, “projectar os moldes temporais” em que quer trabalhar e levantar uma ideia de futuro.
Cada uma das peças partirá do mesmo dispositivo: Cláudia colocando-se frente a frente com um artista convidado, sem saber antecipadamente o que dali sairá. “Não saber o que vamos fazer é uma condição sine qua non para o meu trabalho”, diz. “Quero prescindir do controlo.” Foi assim com o dramaturgo galego Pablo Fidalgo Lareo, numa relação também de confronto e de conflito. E foi assim que os rounds de perguntas lançadas acabaram por sugerir o boxe. A reboque do boxe chegaram até ao treinador Jaime Neves, que do treino passou a performer e, agora, partilha o palco com a artista portuguesa, enquanto no decurso de cada round Lareo vai desfiando um longo novelo de perguntas.
Essas perguntas estabelecem, desde início, uma ligação primordial para Cláudia, trazida por Pablo: a coincidência temporal de 1974 ter acolhido tanto a Revolução portuguesa como o mais famoso dos combates de boxe, em Kinshasa, entre George Foreman e Muhammad Ali, tão famoso que teve inclusivamente direito ao nome por que ainda hoje é conhecido — Rumble in the Jungle. “Muitos dos direitos conquistados em 1974”, aponta a Cláudia, “têm sido levados ao tapete — para usar a linguagem do boxe”. A luta desembainhada no palco-ringue de Segunda-Feira faz-se, por isso, contra o imobilismo que associa a outro exemplo do léxico de crise que se ouve a cada cinco minutos desde 2011 e que lhe causa visível urticária: consenso. “Esta ideia de que temos de consensualizar previamente para depois agir é o discurso que vemos de uma Europa que tem um olhar perfeitamente neocolonial relativamente aos países do Sul.”
Em vez de consensos, Cláudia Dias elege as dissensões, “também uma forma de vida e de estarmos juntos, provavelmente mais edificadora”. Até porque há que ler nas entrelinhas dos consensos: muitas vezes, apenas encobrem a velha lei do mais forte, do mais poderoso a espezinhar e a estrafegar o mais fraco.
Em guerra?
Segunda-Feira: Atenção à Direita refere-se tanto a um golpe desferido pelo adversário que possa levar ao knock out como a um golpe desferido pelas “forças de direitas populistas e com laivos de extrema-direita”, como as classifica Cláudia Dias. Daí que uma das perguntas lançadas por Pablo interrogue se a diferença entre singular e plural é uma mera questão semântica.
A artista, que fala no dever de “todos os democratas e humanistas se juntarem e lutarem” contra esses avanços radicais, identifica um movimento de combate a surgir na Europa, embora comum aos Estados Unidos e à América Latina (não por acaso, a entrada no ringue faz-se ao som de Somos Sur, da rapper chilena Ana Tijoux).
Quanto corpos cabem entre Kinshasa e Lisboa?”, pergunta-se, às tantas. E logo em seguida: “Quanto corpos cabem entre Lisboa e Berlim?”. Estarão o Norte e o Sul já em guerra? E pergunta-se ainda se “Fernando Ulrich não deveria integrar a lista dos mais perigosos terroristas do mundo”, se “a crise na Europa começa no facto de os gregos falarem uma língua que ninguém entende” ou “se continuarmos a deixar que nos golpeiem desta maneira isso afectará a nossa cabeça?” Quando as luzes baixam, cabe ao público perceber em que ringue é que se deu verdadeiramente o combate de Segunda-Feira: Atenção à Direita.