Jazz: um espaço onde cabem todas as músicas
Antes de Kamasi Washington, Miles Davis, Herbie Hancock ou John Zorn entenderam o jazz como um espaço onde cabem todas as músicas.
Nos efervescentes anos 1920, quando a música popular norte-americana começava, aos poucos, a ditar o fim da hegemonia europeia, compositores como Ravel, Debussy, Satie e Prokofiev foram expressando publicamente a sua atracção por esse género tão eivado de espontaneidade e imprevisibilidade que ocupava a criatividade de George Gershwin ou Duke Ellington. Os nomes maiores da música escrita de então viam-se de súbito sob o encantamento de uma música irresistivelmente melódica, mas cuja componente de improvisação a dotava de uma vivacidade e de um risco incomparáveis. O fragor do jazz seria indesmentível na Sonata para Violino e Piano ou no Concerto para Piano de Ravel, e mais tarde nas assumidas Jazz Suites de Chostakovich.
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Nos efervescentes anos 1920, quando a música popular norte-americana começava, aos poucos, a ditar o fim da hegemonia europeia, compositores como Ravel, Debussy, Satie e Prokofiev foram expressando publicamente a sua atracção por esse género tão eivado de espontaneidade e imprevisibilidade que ocupava a criatividade de George Gershwin ou Duke Ellington. Os nomes maiores da música escrita de então viam-se de súbito sob o encantamento de uma música irresistivelmente melódica, mas cuja componente de improvisação a dotava de uma vivacidade e de um risco incomparáveis. O fragor do jazz seria indesmentível na Sonata para Violino e Piano ou no Concerto para Piano de Ravel, e mais tarde nas assumidas Jazz Suites de Chostakovich.
O jazz, à época, era como um pião a rodopiar incansavelmente, rodando sobre si próprio e numa vertigem de expansão constante dos seus limites. Das big bands bem comportadas às crescentes liberdades acrescentadas pelo be bop, pelo hard bop e pelo free jazz, o terreno seria o da implosão de quaisquer regras e a busca pelo abismo. Mas algures pelo meio, nesta sua sanha cega de ir mais longe e conquistar espaço onde parecia só já existir um muro de betão, haveria quem se lembrasse de olhar para o lado e não apenas tentar galgar cada nova barreira. Se Sun Ra começou a sonhar com Saturno ao mesmo tempo que espiolhava na música africana para dotar o seu jazz de uma aura cósmica, curto-circuitando passado e futuro, no final dos anos 1960 Miles Davis viu a luz numa tomada eléctrica.
O derradeiro passo nesse statement de electrificação da música de Miles aconteceria com o seminal Bitches Brew, em 1970, caldeirão de jazz, funk e rock, álbum que denunciava a admiração do trompetista pela música de Jimi Hendrix ou Sly Stone, composto de forma radical a partir da montagem de uma série de sessões de improvisação com jovens músicos da estirpe de Wayne Shorter, Jack DeJohnette, Dave Holland, Chick Corea, John McLaughlin ou Joe Zawinul. Volte a ouvir-se Bitches Brew e não será difícil perceber o quão actual permanece, não restando grandes dúvidas sobre a mais clara e longínqua semente da música aberta e desempedernida que hoje descobrimos em Kamasi Washington. Em recente entrevista à Vice, aliás, Don Cheadle (Miles Davis no grande ecrã de Miles Ahead) afirmaria a sua crença de que se o músico ainda hoje estivesse vivo estaria a trabalhar com Kendrick Lamar e Kamasi Washington.
Bitches Brew foi também um dos álbuns que o produtor Terrace Martin enviou a Lamar quando o rapper lhe pediu discos de jazz para ouvir e nos quais se inspirar para a criação de To Pimp a Butterfly (recuperando uma ideia já lançada por The Last Poets e Gil Scott-Heron e desenvolvida por A Tribe Called Quest ou Digable Planets). De resto, ao chamar para os seus álbuns Martin, Washington, Robert Glasper ou Ambrose Akinmusire, Lamar estava já a rodear-se de uma série de músicos-chave (à maneira de Miles) para o entendimento do que escorregou até hoje da porosidade exemplar de Davis em Bitches Brew, On the Corner ou Get Up with It. Mas Martin abasteceu ainda Lamar de outro nome inevitável nesta história do jazz metido com o funk, a soul e os sons pilhados ao mundo em geral: Herbie Hancok, em particular a fase de Mwandishi (1971) até Headhunters (1973).
O arranque da década de 70 seria especialmente proveitoso no acolhimento destas sonoridades eléctricas num jazz que parecia tudo receber e potenciar (espreitar ainda o obrigatório Ethopian Knights, de Donald Byrd). Da trupe que Miles juntara para In a Silent Way e Bitches Brew nasceu o exemplo acabado deste deslumbramento com a electricidade: o super-grupo Weather Report, por onde passaram Zawinul, Shorter, Pastorius, Vitous e muitos outros, capazes do melhor e do pior. Tanto Hancock como os Weather Report foram acompanhando o resvalar destas sonoridades de fusão para um pântano musical, cheio de sonoridades pastosas que se foram adensando e tornando cada vez mais intragáveis com a chegada da década de 80 – à medida que também o rock se foi enredando nesta armadilha de tornar a música um exercício onanista.
Felizmente, em 1989 (e depois de um primeiro contributo dos Lounge Lizards), os Naked City de John Zorn, Bill Frisell ou Wayne Horvitz devolveriam vitalidade artística à ideia de que todas as músicas podiam caber dentro do jazz, sem terem de ser trituradas até ao ponto de não ser reconhecíveis – conceito que Zorn transportou para a sua editora Tzadik. Nos anos que se seguiram, a Tzadik tornou-se um viveiro fundamental para os músicos que, fazendo parte do universo jazzístico, o compreendiam como um legado de experimentação e não uma reprodução mais ou menos aventureira das sonoridades clássicas.
Um dos mais destacados músicos a afirmar-se na gravitação da Tzadik (ainda que os seus projectos estejam editados, quase por inteiro, na Winter & Winter) seria o pianista norte-americano Uri Caine. Caine levou a cabo a maior das heresias, ao propor a música de Mahler ou de Bach (Variações Goldberg) reimaginadas por gente do free jazz, do rock, da música klezmer, da bossa nova, do canto lírico ou por DJ, todos juntos numa desenfreada orgia musical. Mas talvez nesse gesto, assumidamente provocatório, esteja a chave de tudo isto: vale a pena admirar algo à distância, não se lhe podendo tocar nem mexer? A música também serve para desmontar e voltar a montar deixando peças de fora e acrescendo-lhe outras quantas que não faziam parte da embalagem original.