Isto já não é sobre o Brasil

Começou por ser uma manifestação de repúdio da violação de uma jovem de 16 anos por 33 homens no Brasil. Mas esta quarta-feira, centenas de pessoas saíram à rua no Porto contra a "discriminação institucionalizada das mulheres" e a cultura de violação.

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"Podemos sempre ter voz. Aqui, numa conversa do café ou numa loja. Podemos reprovar uma atitude, um comentário machista, seja do nosso pai, seja da nossa mãe, seja de quem for. Em qualquer lado devemos falar." Na mão, Joana Alves, de 27 anos, trazia um cartaz onde se lia "Santa ou vadia não te devo nada". Escreveu-o para levar esta quarta-feira à Avenida dos Aliados, no Porto, à manifestação "Por todas elas de repúdio à cultura de violaçãodas mulheres. O recente caso da jovem de 16 anos violada por 33 homens no passado dia 21 de Maio, no Rio de Janeiro, lançou a chama e fez a manifestação acontecer. Mas isto já não é só sobre o Brasil.

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"Podemos sempre ter voz. Aqui, numa conversa do café ou numa loja. Podemos reprovar uma atitude, um comentário machista, seja do nosso pai, seja da nossa mãe, seja de quem for. Em qualquer lado devemos falar." Na mão, Joana Alves, de 27 anos, trazia um cartaz onde se lia "Santa ou vadia não te devo nada". Escreveu-o para levar esta quarta-feira à Avenida dos Aliados, no Porto, à manifestação "Por todas elas de repúdio à cultura de violaçãodas mulheres. O recente caso da jovem de 16 anos violada por 33 homens no passado dia 21 de Maio, no Rio de Janeiro, lançou a chama e fez a manifestação acontecer. Mas isto já não é só sobre o Brasil.

Com as palmas das mãos vermelhas, deitados no chão, num “silêncio que grita”: começou com esta performance a manifestação no Porto, organizada por iniciativa de um grupo de cidadãos que quis responder ao apelo feito por movimentos sociais brasileiros de luta contra a cultura de "estupro" (violação). Nos Aliados, juntaram-se centenas de pessoas, ao mesmo tempo que o protesto acontecia em Lisboa e em Coimbra. “Aqui usamos o silêncio, porque é a isto que querem reduzir as vítimas. Pondo sempre em questão a palavra e o sofrimento delas, fazendo-as reviver a violação em todos os processos judiciais. Mas, ao mesmo tempo, o nosso é um silêncio que grita”, explicou ao PÚBLICO Aira Suárez, uma das organizadoras.

“Este caso não é um caso isolado no Brasil, nem o é no resto do mundo. Já achar que em Portugal isto não acontece, é ser-se ingénuo. Estamos aqui por esta menina, mas também por todas as outras mulheres que em qualquer parte do mundo sofrem este tipo de violência”, defendeu Aida Suárez. Uma violência que lhes é destinada e que, na opinião destes manifestantes, não é fruto de uma cultura individual. “Há um ódio institucionalizado contra as mulheres, uma autêntica cultura de violação. Quem viola não o faz por doença. É fruto de centenas de anos de misoginia e de ódio às mulheres”, ouve-se num discurso emotivo de Inês, aplaudido pelos manifestantes.

“Devemos aproveitar esta onda para lutarmos por uma causa que está adormecida”, destacou Sandra Moreira. “Ainda vivemos numa sociedade muito patriarcal, no Brasil e em Portugal. Os direitos das mulheres ainda estão em causa no mundo inteiro”, afirmou ao PÚBLICO e destacou o caso de Portugal, onde em 2015 morreram 27 mulheres vítimas de violência doméstica.

“Estamos aqui para dizer que o corpo nos pertence. Que não é da Igreja, nem do Estado, nem dos homens. No meu corpo, mando eu. Meu corpo, minhas regras”, o mote foi dado pelas organizadoras e as palavras de ordem passaram a ouvir-se espontaneamente durante as duas horas de manifestação. “Segundo os números, que são sempre melhores que a realidade, por esta altura já mais de 10 mulheres foram violadas no Brasil”, destacou uma das organizadoras.

Cultura de violação

Apesar de feminista, esta não foi uma manifestação só de mulheres, nem só sobre violação. “Isto é uma questão de dignidade humana”, ouve-se por diversas vezes. “Quantas vezes já pediste a um amigo para te levar até à porta de casa porque tinhas medo? Quantas vezes já mudaste de roupa porque tinhas medo do sítio para onde ias? Quem aqui já foi tocada sem consentimento? Quem aqui já teve vontade de fazer alguma coisa num espaço em que não se podia defender?”, pergunta uma das intervenientes. Quase todas as mulheres ergueram os braços.

“São estas pequenas agressões que nós toleramos todos os dias que formam a cultura de violação e uma cultura de medo”, afirmou Beatriz, de 17 anos. Os estudos estão do seu lado quando contraria a opinião dos pais de que os agressores “são homens doentes”. Os últimos estudos indicam que a maioria dos violadores não apresenta qualquer perturbação psíquica, ou abuso de álcool ou drogas.

Esta quarta-feira, nos Aliados, os manifestantes rejeitaram o Governo de Michael Temer, que dizem tratar-se de um “golpe patriarcal, machista e racista.” A discussão em volta da política brasileira surge numa altura em que o novo Governo é favorável à proposta de Eduardo Cunha que pretende dificultar o acesso ao atendimento nas unidades de saúde das vítimas de violação. Estão também em cima da mesa propostas para limitar o direito ao aborto (legal em casos de violação, de risco para a mãe ou caso o fecto seja acencéfalo), e limitar o acesso à pílula do dia seguinte.

Enquanto uns se interrogam como há quem coloque a culpa da violação nas vítimas, uma mulher mostra um cartaz com indignação: “Não acredito que ainda tenho que fazer uma manifestação feminista.” Mas o feminismo saiu mesmo à rua, para que as palavras não ficassem apenas pelos livros e na Internet, onde muito não têm acesso, destaca Bruna. “Na periferia do Rio de Janeiro, o feminismo branco não chega. Tal como não chega ao Cerco, nem a Campanha, nem ao Lagarteiro. Essas mulheres não têm um grito de guerra”, por isso o Porto quis esta quarta-feira gritar "por todas elas".

Sociedade patriarcal

Sandra foi à manifestação porque se diz cansada “do domínio patriarcal sobre a sociedade": "Já chega das mulheres serem dominadas pelo desequilíbrio da força masculina. Se esta força estivesse equilibrada não haveria os crimes que existem contra as mulheres."

A manifestação, com momentos que incentivavam a que todos falassem, chamou também a atenção para a discriminação das mulheres brasileiras em Portugal. “Eu sou brasileira, mais conhecida como puta em Portugal”. Bruna apresenta-se e os manifestantes aplaudem ao reconhecer o rótulo que muitas brasileiras recebem. É disto que um dos brasileiros que tomam a palavra diz ter vergonha: “Tenho vergonha, quando saio à rua à noite no Porto, de ver como estas mulheres são tratadas.”

Nos últimos quatro anos, cerca de 100 mulheres brasileiras pediram ajuda junto do Consulado-Geral do Brasil no Porto, com queixas de violência doméstica. “A maioria são vítimas de violência psicológica, o que lhes tirou toda a força para sair de uma relação em que são violentadas”, retratou ao PÚBLICO Alana Saladrigas, psicóloga no consulado. Grande parte destas mulheres é vítima de homens portugueses com quem mantêm uma relação próxima. “A maioria não pode ir embora porque tem filhos pequenos. Tudo o que têm cá é o agressor e a família dele”. A psicóloga destaca a necessidade de trabalhar o empoderamento destas mulheres, o que pode levar anos até que se consigam libertar deste tipo de relações.

Segundo as determinações da Convenção de Istambul, para ser provado que houve crime de violação é apenas é necessário a apresentação de prova de que não houve consentimento da vítima. Mas a lei portuguesa obriga também a apresentação de uma prova de que foi praticada violência. Os manifestantes insurgem-se contra a constante dúvida e questionamento a que as mulheres são sujeitas – relembrando o caso específico do procurador brasileiro. No Porto, bastou: “Não é não!”.

Texto editado por Hugo Daniel Sousa