Fascismo é quando um homem quiser
O texto de José Rodrigues dos Santos representa um lamentável exemplo de como uma amálgama confusa de referências e factos históricos pode conduzir a conclusões erradas.
Em 2016, o panorama editorial português fica marcado pela publicação de dois best-sellers altamente tóxicos: O Pavilhão Púrpura, de José Rodrigues dos Santos, e A Minha Luta, de Adolf Hitler.
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Em 2016, o panorama editorial português fica marcado pela publicação de dois best-sellers altamente tóxicos: O Pavilhão Púrpura, de José Rodrigues dos Santos, e A Minha Luta, de Adolf Hitler.
Em O Pavilhão Púrpura, Rodrigues dos Santos sustenta que o "fascismo alemão" se chamava "nacional-socialismo" por uma razão muito simples: o sufixo "socialismo" significa que o nazismo é um movimento de origem marxista.
Em A Minha Luta, logo no segundo capítulo, Adolf Hitler descreve os seus tempos em Viena, e diz: "Foi nessa altura que os meus olhos se abriram para dois perigos que eu mal conhecia e cuja assustadora importância para a existência do povo alemão eu estava longe de suspeitar: o marxismo e o judaísmo".
Um pouco mais à frente, Hitler confessa: "Fiz um esforço sobre mim próprio e tentei ler as produções da imprensa marxista, mas a repulsa que elas me inspiraram acabou por tornar-se tão forte que procurei conhecer melhor os que urdiam estas canalhices". Eram os judeus, obviamente.
"Contudo, dos milhões de palavras proferidas por Hitler de que há registo, nenhuma indicia que se debruçou sobre os escritos teóricos do marxismo, que tenha estudado Marx ou Engels, ou Lenine (que esteve em Munique não muito antes dele), ou Trotsky (seu contemporâneo em Viena). Fosse em Munique ou em Viena, Hitler não lia para se cultivar ou aprender, mas para confirmar os seus preconceitos", escreve Kershaw na sua monumental biografia do líder nazi (cf. Ian Kershaw, Hitler, Vol. 1 – 1889-1936: Hubris, Londres, 1998, pág. 84).
Adolf Hitler, portanto, nem sequer leu Karl Marx antes de se proclamar anti-marxista. E José Rodrigues dos Santos, pelos vistos, nem sequer leu Adolf Hitler antes de proclamar que o nacional-socialismo tem origem no marxismo.
Quanto ao fascismo em termos mais genéricos, recomenda-se-lhe a leitura de um livro saído entre nós em 2011. Logo nas primeiras páginas de Fascistas, Michael Mann tem um capítulo chamado Para uma definição de fascismo (pp. 34ss). Aí, passa-se em revista a abundante literatura académica que tem sido produzida pelos maiores especialistas mundiais sobre o tema. Certamente por lapso ou lamentável distracção, não se menciona o nome do doutor Rodrigues dos Santos, nem os seus recentes trabalhos de filosofia política, como As Flores de Lótus e O Pavilhão Púrpura, ambos demonstrativos da tese de que o fascismo tem origem no marxismo. Mas Michael Mann cita, por exemplo, o insuspeito Ernst Nolte, que, num clássico de 1963 (Der Fascismus in seiner Epoche), identificou um "mínimo fascista", o qual combina três "antis" ideológicos: o antiliberalismo, o anticonservadorismo e… o antimarxismo. No esmagador History of Fascism (1995), Stanley Payne considera a definição de Nolte insuficiente, mas adere à sua ideia de que o antimarxismo constitui uma das características essenciais do fascismo.
O texto de Rodrigues dos Santos publicado neste jornal representa um lamentável exemplo de como uma amálgama confusa de referências e factos históricos pode conduzir a conclusões erradas, sobretudo quando se pretende, com pontinha de imodéstia, apresentar um sound bite provocatório, estratagema promocional que, de resto, já fora usado pelo autor no lançamento de outros títulos da sua pavorosa bibliografia. Concedendo-lhe um piedoso benefício da dúvida, podemos até pensar que o autor acredita mesmo naquilo que diz, julgando ter feito descobertas revolucionárias, assombrosas, como os heróis dos seus romances. Nesse caso, o problema será de outro foro, mais grave, surgindo geralmente diagnosticado com o epíteto de mitomania. Metendo-se por caminhos sinuosos e veredas que não conhece, o autor de O Pavilhão Púrpura julga que descobriu uma "verdade" onde afinal só existia uma ignorância – a sua. Como se estivesse perante um júri académico ou numa sala de audiências, convoca as "provas que apresento nos meus romances". Infelizmente, nada apresenta de novo. O socialismo juvenil de Mussolini, por exemplo, foi minuciosamente descrito por Renzo de Felice em Mussolini il revoluzionario, 1883-1920 (Turim, 1965, pp. 1-200), por Luciano Dalla Tana em Mussolini massimalista (1964), por Emilio Gentile em Mussolini e "La Voce" (1976) ou por Gerhardo Bozetti em Mussolini direttore dell’Avanti (1979). A esta excelsa bibliografia deveremos juntar, a partir de agora, dois romances de José Rodrigues dos Santos, que, ao contrário da presunção do autor, nada acrescentam ao que já consta de publicações respeitáveis como a Wikipedia, quer sobre a influência de Sorel e de Michels, quer sobre as metamorfoses do sindicalismo revolucionário em Itália. A complexa e turbulenta evolução dos movimentos políticos italianos, aliás, passa completamente ao lado do nosso romancista de sucesso. Não se tem presente, por exemplo, que na fundação, em 1919, na Piazza Santo Sepolcro de Milão, dos Fasci Italiani di Combatimento, é já bem notório o predomínio do sindicalismo nacionalista sobre o sindicalismo revolucionário.
Dizer que "o fascismo tem origem no marxismo" estará correcto, num certo sentido, mas é o mesmo que dizer nada, absolutamente nada, do ponto de vista historiográfico e politológico. Como observa Ernst Nolte, é óbvio que sem o marxismo não existiriam o fascismo e o nazismo, justamente porque estes se afirmaram como anti-marxistas (e, para ser coerente, entre as "provas" que revela nos seus romances Rodrigues dos Santos deveria ter apresentado declarações a favor do ideário marxista feitas por Mussolini na sua fase fascista pós-1920 ou por Adolf Hitler nas páginas de Mein Kampf).
Em suma, para o ponto que interessa – a classificação tipológica dos regimes políticos – qualificar o fascismo como um movimento de origem marxista é um erro, pois as supostas "raízes marxistas" do fascio não caracterizam a essência do seu perfil. Pegando no texto de Rodrigues dos Santos, também poderemos dizer, se quisermos, que o fascismo tem origem no evolucionismo de Darwin ou que o nazismo se inspirou nas leis de Newton. Entra-se no vale-tudo, pois, de facto, isto anda mesmo tudo ligado. Com jeito e audácia, poderemos até sustentar que o Benfica foi campeão de futebol este ano porque o Beira-Mar falhou aquele penálti decisivo contra o Leixões nas semifinais da Taça de 1967. Já agora, e porque nestes últimos livros se aventurou por terras do Oriente, Rodrigues dos Santos deveria ter referido o "fascismo japonês", de que os soviéticos começaram a falar em 1934. A esse propósito, poderia até ter citado o nome do jornalista nipónico Motoyuki Takabatake (1886-1928), antigo anarquista que traduzira O Capital em 1924 e, pouco depois, abraçava a causa nazi – mais uma prova irrefutável de que "o fascismo tem origem no marxismo".
À defesa, Rodrigues dos Santos vem agora dizer que o pensamento dos fascistas "continuou a evoluir", o que é próprio dos seres humanos e doutros animais. Todavia, não esclarece os leitores que, na sua etapa plenamente fascista, Mussolini já havia rompido com o socialismo de juventude. Rodrigues dos Santos afirma, por último, que os fascistas se declararam como antimarxistas, "o que, a partir de certo ponto, realmente aconteceu". É nesse ponto que bate o ponto. Foi precisamente a partir daí que o fascismo se afirmou, cresceu e alcançou o poder, florescendo como um movimento que não só não era marxista como se manifestava, na teoria e na prática, como militante e combativamente antimarxista. Como nota Stanley Payne, só no Outono de 1920 o termo "fascismo" se tornou uma expressão corrente, servindo para designar os cada vez mais violentos Fasci di Combatimento, que se afirmavam nas ruas como vanguarda agressiva e nacionalista de uma "guerra contra o bolchevismo". O número de filiados passou de 20.000, em finais de 1920, para 100.000, em Abril de 1921, quase duplicando esta cifra no mês seguinte. Em Novembro, os Fasci tinham já 320.000 aderentes. Eram agora um movimento de massas, com muitos membros que, sobretudo nas zonas rurais do Norte de Itália, passaram directamente da CGL socialista para o fascismo. As eleições de 1921 foram um triunfo pessoal de Mussolini, tendo os socialistas descido de 32% para 24% e o novo partido comunista obtido uns ínfimos 2,8%. A campanha eleitoral foi de enorme violência: de acordo com um relatório policial, nos primeiros quatros meses de 1921 houve, no mínimo, 206 assassinatos políticos. A violência era tanta que Mussolini foi instado a controlar as suas hostes, expulsando do movimento criminosos de delito comum e outros militantes particularmente agressivos. No dia a seguir às eleições, foram mortos 10 socialistas. Estes reagiram com igual violência, matando 18 "camisas negras" em Génova, em Julho de 1921. De vendetta em vendetta, foi impossível alcançar a paz; e Mussolini percebeu que era melhor organizar a violência a seu favor do que tentar controlá-la. Transformados os Fasci no Partito Nazionale Fascista, este configura-se como uma organização paramilitar e, em Outubro de 1922, marcha sobre Roma, sendo dispensável contar o resto da história. De há muito que os socialistas eram os alvos principais da violência dos fascistas (e vice-versa, note-se), pelo que dizer que o "fascismo tem origem no marxismo" é não perceber nada da sequência temporal dos factos. Numa síntese arriscada, quando o fascismo verdadeiramente surge, quando emerge como autêntico fascismo, de há muito tinha abandonado as suas origens sindicalistas-revolucionárias; e, mais ainda, agora perseguia a tiro e a golpes de navalha os socialistas e os membros de outros grupos de esquerda.
De permeio, é certo, muitos dirigentes fascistas das zonas rurais gritaram "a terra a quem a trabalha". Talvez num próximo romance José Rodrigues dos Santos nos traga a revelação sensacional de que as ocupações no Alentejo em 1975 tiveram origem em Mussolini e nos seus adeptos. Que Deus lhe perdoe.
Jurista e historiador