Investigação arqueológica em Alqueva revolucionou conhecimento sobre o Alentejo
O volume de informação recolhido por centenas de arqueólogos ao longo de 20 anos sobre a evolução da presença humana em 20 concelhos alentejanos não tem paralelo a nível nacional. Falta agora estudar este imenso caudal de informação e o seu contexto.
Os primeiros sinais da presença humana no território abrangido por Alqueva remonta a mais de 200 mil a.C, comprovam inúmeros vestígios recolhidos por centenas de arqueólogos desde 1997, após a realização de mais de 1700 intervenções, que vieram revolucionar o conhecimento desde a pré-história antiga aos tempos modernos no sul de Portugal.
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Os primeiros sinais da presença humana no território abrangido por Alqueva remonta a mais de 200 mil a.C, comprovam inúmeros vestígios recolhidos por centenas de arqueólogos desde 1997, após a realização de mais de 1700 intervenções, que vieram revolucionar o conhecimento desde a pré-história antiga aos tempos modernos no sul de Portugal.
Os números foram revelados durante a exposição “Sob a Terra e as Águas — 20 anos de arqueologia entre o Guadiana e o Sado”, inaugurada a 18 de Maio e exposta até final do ano no Núcleo Museológico da Rua do Sembrano, em Beja, resultante de uma parceria entre a Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva (EDIA), a Câmara de Beja e a Direcção Regional de Cultura do Alentejo.
Pese embora os “impactos fortíssimos” da barragem no território pesquisado, o resultado do trabalho sem paralelo na história da arqueologia portuguesa “afastam o estigma de que Alqueva iria afectar o património” deixado por várias civilizações ao longo de muitos séculos na região afectada pelo empreendimento hidro-agrícola, sublinhou Augusta Cachopo, do conselho de administração da EDIA. Feitas as contas, a EDIA investiu, até ao momento, quase 20 milhões de euros na recolha de novas informações sobre o passado da região. O encargo é elevado mas facultou aos especialistas a revisão do actual estado de conhecimento científico sobre a ocupação humana nesta zona, sobretudo no período do Calcolítico, Idade do Bronze e Idade do Ferro.
Também em relação ao Paleolítico e Neolítico antigo, os dados recolhidos revelaram-se “muito importantes”. Antes da intervenção no regolfo de Alqueva, apenas se conheciam alguns utensílios de pedra lascada nas margens e terraços do Guadiana, “todos eles arrastados pelas águas do rio, portanto descontextualizados e de datação incerta”. Agora já é possível concluir que o território teve no Paleolítico “uma presença de caçadores/recolectores mais marcada do que se pensava”, realça a informação prestada pela EDIA.
A abertura de condutas e canais para o transporte da água, de barragens e caminhos para instalar o sistema de rega do Alqueva expuseram centenas de sítios até então ignorados e que apontam para um tipo de povoamento humano muito mais denso e variado do que anteriormente se supunha.
Uma janela para o passado
Em termos de conhecimento acumulado, foi o período de há 3500 anos a.C. que “mais novidades trouxe” para a aquisição de novos dados sobre o passado pré-histórico, realçou Samuel Melro, da Direcção Regional de Cultura do Alentejo. As intervenções no terreno revelaram antas, fossas e sepulturas escavadas na rocha e ainda sistemas construtivos compostos por muralhas e bastiões semicirculares.
São deste período temporal os “testemunhos de comunidades em que a força de tracção dos animais é já utilizada em carros e arados para o cultivo da terra. Fibras animais e vegetais são fiadas e tecidas. Do leite se produz o queijo e o minério vai ser transformado através da metalurgia do cobre, em utensílios mais duradouros e eficazes. Comunidades que intensificam contactos a longa distância trazem consigo, para além de objectos em materiais exóticos, como o azeviche e o marfim, novos modelos arquitectónicos e talvez, novas concepções do universo”, destaca a documentação divulgada pela EDIA.
Da passagem para a Idade do Bronze (3500 anos a.C), as obras de Alqueva puseram à vista uma malha de povoamento aberto de planície, sem grandes preocupações defensivas e nas proximidades de cursos de água. Este tipo de povoados “não eram conhecidos até ao início do século XXI”, assinala, por sua vez, o arqueólogo Miguel Serra, realçando que antes dos trabalhos realizados na área sob influência do Alqueva apenas se conheciam “duas povoações em Ourique e Sines - agora conhecem-se cerca de 60 só na região de Beja”, acentua o investigador, para acrescentar que no início da Idade do Ferro, o paradigma da ocupação do território torna a mudar e “assume novamente um forte cunho de ligação à planície”.
Surgem então várias necrópoles “com ricos espólios de carácter orientalizante” que reflectem a “existência de uma elite de cariz rural fundamentada na posse da terra”, prossegue o arqueólogo.
O mundo no período do Bronze Final (1300 a 700 anos a.C) parece caminhar para a criação de um sistema urbano em algumas regiões do território, mas tal não acontece devido ao impacto na estrutura social provocado pelos contactos com o mundo colonial fenício quando este aporta à orla costeira sul e atlântica. Os povoados fortificados são abandonados e o sistema social e político colapsa.
Deste período, os trabalhos arqueológicos revelaram “um desconhecido conjunto de necrópoles em torno de Beja, onde a riqueza dos seus espólios é manifesta. Opulentos adornos para os sepultados, acompanhados de artefactos rituais”, patentes em peças cerâmicas de touros ou de aves, que agora fazem parte do espólio recuperado em centenas de escavações efectuadas e representados na exposição da EDIA.
“Falta comprovar” o provável aparecimento de um novo grande povoado fortificado, que terá centralizado o poder da região durante o Bronze Final, e que “poderá ser validado caso se provem os indícios que atribuem uma ocupação do século VII a.C (Idade do Ferro) à colina da cidade de Beja". Se uma tal hipótese se vier a confirmar, então estaremos "perante a transferência de lugares de poder entre o Bronze Final e a Idade do Ferro”, admite Miguel Serra. O arqueólogo adverte que “qualquer tentativa de elaborar um trabalho de síntese sobre a ocupação da Idade do Bronze na região do Baixo Alentejo corre o risco de rapidamente ficar desactualizada” tal é a rapidez com que se registam novas descobertas resultantes dos inúmeros trabalhos em curso nesta região.
A revolução romana
A chegada dos romanos à região, durante a 2ª metade do século II a.C, é uma das épocas da História que melhor se conhece. A sua presença teve um grande impacto nas populações locais e uma influência cultural e social reforçada com a promoção entre 31-27 a.C. do povoado Pax Júlia (hoje Beja) ao estatuto de “Colonia”, cujo nome indígena ainda se desconhece.
Ter-se-á então iniciado uma renovação urbanística, destinada a dotar a cidade dos edifícios necessários ao funcionamento de um centro político e administrativo, para assumir a função de capital de um extenso território. Com efeito, foi recentemente descoberto nos arredores de Beja um grande centro produtor da cal, cuja data de instalação coincide com as grandes obras de renovação construtiva que então estariam a ocorrer em Pax Julia.
A importância deste aglomerado urbano (Beja) erguido numa colina rodeada pela planície, onde há meia dúzia de anos a arqueóloga Conceição Lopes descobriu um conjunto de edifícios associados ao Fórum romano, centrou à sua volta explorações agrícolas de que restam hoje vários vestígios. Deste período em que a actividade agrícola se intensificou, o acesso à água, também para as residências rurais como é exemplo a “villa” de Pisões, disseminou pelos campos “ruínas de barragens, canais e aquedutos da época romana”, descreve a documentação publicada pela EDIA.
O trabalho dos arqueólogos completa-se com os vestígios associados à Idade Média e Idade Moderna que evidenciam a dispersão das populações pelo espaço rural. Desse tempo sobressaem as necrópoles, “sepulturas de arquitectura simples e despojadas de qualquer espólio.”
Do século XII, do período da nacionalidade, são inúmeras as estruturas e contextos identificados um pouco por todo o território, os quais, com o avançar dos séculos, dão a conhecer práticas e materiais cujas características se prolongariam, em muitos casos, até ao século XX. Destacam-se os “montes, poços, ermidas, atalaias e pontes, testemunho de uma lógica de ocupação do espaço rural ainda visível no Alentejo actual”, conclui o trabalho de investigação elaborado por centenas de arqueólogos ao longo de duas décadas em 20 concelhos alentejanos sob influência do Alqueva.
Equipas de arqueólogos tardam a publicar o resultado das suas investigações
Por detrás do material exposto pela EDIA em Beja, subsiste uma imensidão de dados recolhidos durante os 20 anos de investigação arqueológica mas persiste uma “escassez de informação publicada” sobre as intervenções efectuadas, alerta Miguel Serra, ele próprio sócio de uma empresa que executou trabalhos arqueológicos na região do Alqueva.
Apenas se consegue aceder a informação técnica, “muitas vezes deficitária”, presente na base de dados Endovélico sobre a forma de fichas de síntese ou em relatórios técnicos que “demasiadas vezes primam pela ausência de estudos de materiais aprofundados que permitam uma clara inserção cronológica dos sítios arqueológicos”, esclarece o arqueólogo.
As equipas com trabalhos de pesquisa realizados em Alqueva, logo que terminados os trabalhos de escavação, “devem publicar de forma regular o resultado das suas investigações”, salienta o investigador. No entanto, “há arqueólogos” que terminaram as escavações e “não publicaram uma linha nem irão publicar quaisquer dados sobre os seus trabalhos”. A legislação em vigor determina que o arqueólogo que pesquisa no terreno “é responsável tanto pelo acervo que recolhe como pela publicação do resultado das investigações.”
Outro dado a reter sobre a ausência de análise dos vestígios arqueológicos e respectivo contexto, pode estar associado “à destruição provocada pelos trabalhos agrícolas ao longo dos tempos ou mesmo pelas próprias estratégias de intervenção arqueológica actuais”. Com frequência são realizadas “decapagens mecânicas para remoção de sedimento até ao nível geológico” que podem “levar à destruição de outras estruturas mais ténues”, admite Miguel Serra, considerando, ainda assim, que “não há entidade como a EDIA em termos de seriedade e rigor na fiscalização” do trabalho arqueológico.