Fenício Ariche que viveu há 2500 anos teria antepassados portugueses?

Análises do ADN mitocondrial revelam que um jovem fenício de Cartago, cujo esqueleto foi encontrado 1994, teria antepassados europeus. Mais precisamente, portugueses

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Ariche era um jovem fenício com cerca de 1,70 metros de altura que morreu em Byrsa, o ponto mais alto da cidade de Cartago (actual Tunísia), quando teria entre 19 e 24 anos. Isto há 2500 anos. O esqueleto do “jovem de Byrsa” foi descoberto em 1994 numa cripta funerária, cinco metros debaixo da terra. Agora, uma equipa internacional de cientistas sequenciou o ADN mitocondrial do seu esqueleto e descobriu que este homem pertence a uma linhagem que ainda existe na Europa. Aliás, os antepassados maternos de Ariche, dizem os cientistas num artigo publicado na revista Plos One, podem ser mesmo originários da Península Ibérica. As análises encontraram surpreendentes semelhanças genéticas entre o fenício e “um indivíduo moderno” da região Centro de Portugal e um outro europeu “não identificado”.

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Ariche era um jovem fenício com cerca de 1,70 metros de altura que morreu em Byrsa, o ponto mais alto da cidade de Cartago (actual Tunísia), quando teria entre 19 e 24 anos. Isto há 2500 anos. O esqueleto do “jovem de Byrsa” foi descoberto em 1994 numa cripta funerária, cinco metros debaixo da terra. Agora, uma equipa internacional de cientistas sequenciou o ADN mitocondrial do seu esqueleto e descobriu que este homem pertence a uma linhagem que ainda existe na Europa. Aliás, os antepassados maternos de Ariche, dizem os cientistas num artigo publicado na revista Plos One, podem ser mesmo originários da Península Ibérica. As análises encontraram surpreendentes semelhanças genéticas entre o fenício e “um indivíduo moderno” da região Centro de Portugal e um outro europeu “não identificado”.

Em 1994, os responsáveis do Museu Nacional de Cartago (situado na Tunísia e precisamente no local onde se ergueu há milhares de anos a cidadela de Byrsa) decidiram plantar árvores no terreno em volta. Os jardineiros fizeram uma acidental e surpreendente descoberta, deparando-se com um profundo poço de quatro metros de profundidade que os conduzia para um túmulo onde estavam depositados dois sarcófagos, um deles vazio. A cinco metros debaixo da terra foi encontrado um esqueleto. As escavações foram entregues aos especialistas, uma equipa franco-tunisina liderada por Jean-Paul Morel, que trouxeram Ariche para a superfície. Primeiro conhecido como o “jovem de Byrsa”, o rapaz fenício acabou por ser rebaptizado de Ariche, que significa “o homem desejado”, por iniciativa do ministro da Cultura da Tunísia.

Junto ao esqueleto de Ariche foram encontradas algumas peças, como um pendente e missangas. São adereços que aparecem na reconstituição feita uns anos mais tarde pela escultora Elisabeth Daynés, que se especializou neste tipo de trabalhos de reconstrução termoplástica, que assegurará uma precisão na ordem dos 95% na restauração dos traços de um indivíduo. Porém, há sempre uma margem para a imaginação e questões como, por exemplo, a cor dos olhos ou do cabelo permanecem no campo da subjectividade.

O que, de facto, se percebeu do esqueleto de Ariche foi que seria um jovem fenício robusto, com cerca de 1,7 metros de altura, que terá vivido no século VI a.C. e que morreu quando tinha entre 19 e 24 anos. Até agora, as causas da morte não foram esclarecidas. Os artigos que tinha junto do ossos levam a crer que pertenceria a uma elite de Cartago. Na tampa do seu túmulo estavam duas ânforas púnicas comerciais (vasos cerâmicos de base pontiaguda), uma caixa de marfim e diversos amuletos, entre outros objectos.

Longe do “quartel-general” dos fenícios que se estabeleceram numa faixa litoral do Mediterrâneo onde hoje se encontra o Líbano, a Síria e o Norte de Israel, Ariche foi encontrado em Cartago, um dos vários locais por onde esta civilização passou e se instalou por causa das suas intensas rotas comerciais. Após ter sido descoberto, as autoridades tunisinas autorizaram que o esqueleto fosse levado para França para o trabalho de reconstituição. Em 2014. Os restos do rapaz de Byrsa e os objectos que tinha junto dele foram levados para uma exposição no Museu Arqueológico da Universidade Americana de Beirute. E foi esta última viagem de Ariche, que permitiu a recolha de amostras dos seus ossos (dois pequenos pedaços das suas costelas) para uma inédita análise do ADN mitocondrial (que permite detectar linhagens maternas muito antigas) feita por um grupo internacional de especialistas, liderado por Lisa Matisoo-Smith, do Departamento de Anatomia do Centro Allan Wilson, da Universidade de Otago, na Nova Zelândia.

Uma linhagem rara

“Descrevemos o genoma mitocondrial completo recuperado do jovem de Byrsa e concluímos que ele pertence a raro haplogrupo [um conjunto de mutações genéticas] europeu, que possivelmente liga os seus antepassados maternos a locais influenciados por fenícios algures na costa Norte mediterrânica, nas ilhas do Mediterrâneo ou na Península Ibérica”, relatam os cientistas no artigo na revista Plos One.

Segundo adiantam, trata-se da primeira análise de ADN mitocondrial de um indivíduo fenício e também da mais antiga prova da presença deste raro haplogrupo mitocondrial europeu (U5b2c1) no Norte de África. Os cientistas consultaram os resultados de diversas análises de ADN mitocondrial já realizadas em alguns países e que estão em bases de dados ou artigos científicos publicados e também analisaram o ADN mitocondrial de 47 libaneses. Nenhum dos libaneses modernos “analisado” pertencia à mesma linhagem. Ariche ficava assim ligado à Europa pela assinatura genética U5B2c1.

Para nós, portugueses, há algo ainda mais impressionante do que as prováveis ligações maternas de Ariche à Europa. É que entre os diversos dados publicados, os investigadores analisaram o trabalho realizado por um grupo de peritos em genética populacional do Ipatimup (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, que integra agora o novo instituto I3S).

O grupo do Ipatimup tinha publicado um artigo na revista FSI Genetics em 2015 com actualização e revisão da diversidade genética portuguesa com base em análises do ADN mitocondrial de indivíduos actuais que vivem em várias regiões do país. Ana Goios, uma das autoras deste artigo, adiantou ao PÚBLICO que as amostras usadas para o trabalho faziam parte da base de dados existente no Ipatimup e que são actuais, posteriores a 2000. A investigadora portuguesa nota ainda que, apesar de terem sido apresentados resultados de amostras de 292 indivíduos, o trabalho só inclui 28 genomas completos mitocondriais do haplogrupo U, o segundo mais frequente em Portugal (o mais frequente é o H).

Foi neste trabalho dos investigadores portugueses que Lisa Matisoo-Smith e a sua equipa encontraram a descrição de um “indivíduo moderno” especial da região Centro de Portugal. Segundo explicam no seu artigo, o ADN deste indivíduo português não só partilha o raro haplogrupo europeu de Ariche como também tem três outras mutações adicionais, possuindo assim o mesmo haplótipo, que é algo ainda mais específico do que um haplogrupo. Após verificar a sequência genética de Ariche, Ana Goios confirma que “são muito próximas” mas sublinha que “não são exactamente iguais”. “De facto, partilha o haplogrupo e mais três mutações (ou variantes), mas há algumas variantes que são específicas do tal indivíduo fenício e poderá haver outras que são específicas da nossa sequência”, esclarece.

Porém, o português anónimo do Centro de Portugal não é o único. No artigo publicado na Plos One, os autores explicam que há outro “europeu não identificado”. Numa resposta por “email” enviada ao PÚBLICO, Lisa Matisoo-Smith não acrescenta muito mais: “Apenas sabemos que um indivíduo de Portugal partilha a mesma sequência de ADN mitocondrial, não sabemos exactamente quem é. Mas a amostra está registada como tendo sido recolhida na região Centro.” E, acrescenta a investigadora na mesma resposta, “uma sequência muito parecida também foi encontrada nas ruínas que datam do Mesolítico em La Braña, no Noroeste de Espanha”. Recorde-se que em 2014 foi notícia o resultado de um trabalho de uma equipa internacional de cientistas que publicou um artigo na revista Nature com o primeiro genoma completo de um caçador-recolector europeu do Mesolítico, com 7000 anos, após a análise de restos fósseis descobertos, em 2006, na gruta de La Braña-Arintero, nos Montes Cantábricos (Noroeste de Espanha).

Ariche tem outra correspondência genética identificada na Europa, além de Portugal. E poderá ter mais que os investigadores ainda não identificaram, avisa Luísa Pereira, editora do artigo publicado na Plos One e também investigadora no Ipatimup, que coloca um travão no entusiasmo com as semelhanças entre Ariche e um português. “Não podemos dizer que este fenício tem antepassados portugueses porque ele partilha também semelhanças com outro europeu não identificado e não sabemos qual era o seu país de origem”, ressalva, acrescentando que “tirar muitas conclusões apenas de uma amostra é muito limitativo, do ponto de vista científico”. Assim, a investigadora conclui: “Realmente, foi o primeiro trabalho feito em ossadas de um fenício mas não permite extrapolar tudo sobre os fenícios. Permite caracterizar este indivíduo, que tinha uma linhagem materna que é semelhante a indivíduos que ainda hoje vivem no Mediterrâneo, nomeadamente em Portugal.”

Ainda assim, os autores do artigo sublinham a importância desta semelhança entre Ariche e um português: “U5b2c1 é considerado um dos mais antigos haplogrupos da Europa e está associado a populações de caçadores-recolectores. É muito raro nas populações modernas e na Europa é encontrado em níveis inferiores a 1%. Curiosamente, a nossa análise mostrou que a sequência genética mitocondrial de Ariche aproxima-se mais da sequência de um individuo moderno, em particular de Portugal.”