Violação de menor por 30 homens choca o Brasil em vésperas de Jogos Olímpicos
A cada 11 minutos uma mulher é estuprada. Este crime foi visto como um exemplo da deriva e colapso moral e económico do país.
A menos de três meses da abertura dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, o caso de uma adolescente que foi alegadamente violada por mais de 30 homens numa favela da cidade deixou os brasileiros em estado de choque. Pelo menos dois dos homens envolvidos partilharam um vídeo e fotografias da cena no Twitter, mostrando a jovem nua e inconsciente. “Olha onde o trem bala [comboio de alta velocidade] passou”, diz um dos homens no vídeo, depois de abrir as pernas da menor.
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A menos de três meses da abertura dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, o caso de uma adolescente que foi alegadamente violada por mais de 30 homens numa favela da cidade deixou os brasileiros em estado de choque. Pelo menos dois dos homens envolvidos partilharam um vídeo e fotografias da cena no Twitter, mostrando a jovem nua e inconsciente. “Olha onde o trem bala [comboio de alta velocidade] passou”, diz um dos homens no vídeo, depois de abrir as pernas da menor.
O crime está a ser investigado pela polícia, depois de a provedoria de justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro ter recebido cerca de 800 denúncias de cidadãos que partilharam print screens (cópias) do que os homens publicaram nas suas redes sociais antes destas serem apagadas. Quatro homens suspeitos foram identificados e são alvo de um pedido de detenção, entre eles o namorado da vítima, que estuda na mesma escola e com o qual se relacionava há três anos.
A violação colectiva ocorreu no fim-de-semana passado, depois de a jovem de 16 anos ter encontrado o namorado numa favela na madrugada de sábado. Segundo o depoimento que prestou à polícia, ela só se lembra de acordar no domingo, dopada e nua, numa casa no Morro da Barão, em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro, cercada por 33 homens armados com metralhadoras e pistolas.
A vítima não apresentou queixa à polícia nem procurou assistência médica imediatamente depois do ocorrido. Foram as imagens e o vídeo publicados em redes sociais pelos seus violadores que revelaram o caso e permitiram detectar a jovem. Um dos homens posou sorridente para uma selfie com a adolescente ao fundo, deitada na cama e seminua, e publicou a imagem no Twitter. Num vídeo de 40 segundos, filmado por um telemóvel, que também chegou a circular na Internet, um dos homens comenta que a jovem “engravidou de mais de 30”. “Entendeu ou não entendeu? Mais de 30!”, ri-se.
Segundo o relato dos jornais brasileiros, os homens exibem a vagina da adolescente, que está a sangrar, e comentam, orgulhosos, “olha onde o trem bala passou”.
Para a promotora de Justiça e coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência contra a Mulher do Ministério Público do Estado de São Paulo, Silvia Chakian, o facto de gravarem e publicarem a prova do crime que cometeram revela “a certeza total da impunidade” por parte dos violadores. "Não tem 30 monstros juntos. Não tem patologia nisso. É uma questão cultural. São 30 pessoas que participaram do crime e nenhuma delas agiu para evitar que aquele crime acontecesse. Isso revela uma sociedade criminosa e violenta contra a mulher. Que considera que o corpo da mulher é feito para o homem usufruir”, disse à BBC Brasil.
Antes dos posts e os perfis dos seus autores serem bloqueados ou apagados, eles arrecadaram centenas de likes e comentários de aprovação, sugerindo que a culpa tinha sido da adolescente. O mesmo aconteceu quando as primeiras notícias sobre a violação surgiram nos jornais brasileiros. “Para mim, 50% da culpa é dela”, comentou um homem no Facebook do jornal O Globo. “A culpa é dela mesmo, coloca roupinha sensual, semi nua e quer o quê? A gente só acha o que procura e ela achou. Merecido!”, escreveu outro.
O caso gerou uma onda generalizada de repúdio nas redes sociais brasileiras, onde a hashtag #EstruproNuncaMais alcançou o topo dos assuntos mencionados no Twitter brasileiro e o terceiro lugar no Twitter mundial. Estupro é o termo brasileiro para violação sexual.
No mesmo dia em que o caso gerou indignação nas redes sociais, o novo ministro brasileiro da Educação recebeu o actor Alexandre Frota para ouvir as propostas dele para a área. O encontro foi fortemente criticado, e muitas pessoas lembraram que, numa entrevista num programa televisivo em 2015, Frota fez uma apologia do sexo sem consentimento ao relatar que tinha violado uma mãe-de-santo, perante uma plateia deleitada. Face à reacção de organizações e activistas, o actor disse que o episódio nunca aconteceu e que se tratara de uma piada. Muitos activistas e feministas denunciaram a existência de uma “cultura de estupro” no Brasil, que passa pela tolerância e naturalização da violência sexual praticada contra as mulheres. Em 2014, o deputado Jair Bolsonaro disse a uma deputada do Partido dos Trabalhadores (PT) que não a violava porque ela não merecia. A sua reputação política não parece ter sofrido com isso: é o candidato presidencial preferido das elites ricas do Brasil.
“Infelizmente, casos de estupro, de violência contra as mulheres estão-se tornando uma constante no Brasil, principalmente no Rio”, disse ao PÚBLICO Eloisa Samy Santiago, advogada. “A cada 11 minutos uma mulher é estuprada. A cada seis, uma mulher é vitima de violência. São números de guerra. E os números ainda são subestimados. 60% das ocorrências não são levadas à justiça. Isso só mostra que a violência contra a mulher não importa.”
Em 2013, a violação de uma turista americana por um grupo de homens numa carrinha de transporte público no Rio chocou o país e a comunidade internacional. Esse episódio também aconteceu num momento em que o Brasil se preparava para receber um mega-acontecimento desportivo, o Campeonato Mundial de Futebol, e o Rio em particular procurava passar uma imagem de cidade em recuperação, que conseguira frear a insegurança e o crime. O momento agora é claramente outro, em vésperas dos Jogos Olímpicos. A notícia da violação foi recebida como um exemplo da deriva e colapso moral e económico de um país abalado por uma classe política notoriamente corrupta e por um processo de impeachment duvidoso e divisório. “Barbárie” foi a palavra mais repetida.
O caso chegou às autoridades graças à mobilização de um grupo informal de feministas que na quarta-feira de manhã descobriram que o vídeo sobre a violação estava a ser partilhado nas redes sociais e procuraram informações para identificar a vítima. “Isso levou o dia todo. Quando eram umas dez, 11 da noite me passaram as informações e entrei em contacto com a família da moça, oferecendo ajuda”, explica Eloisa Santiago, que se voluntariou para acompanhar a jovem até o Ministério Público e assumir a sua defesa. Foi a advogada que na quinta-feira a levou à polícia para apresentar queixa, ao Instituto de Medicina Legal para fazer o exame de corpo de delito (para apurar a ocorrência de abuso sexual) e a um hospital. “A mãe dela disse que já a tinha levado ao Conselho Tutelar [orgão que cuida de menores em situações de risco ou menores infractores] em uma outra situação, mas que em casos assim não adiantava porque a policia não faz nada.”
O Presidente interino do Brasil, Michel Temer, condenou a violação esta sexta-feira e anunciou que vai criar um departamento especial na Polícia Federal para combater a violência dirigida às mulheres.