Obama homenageou em Hiroxima os mortos do dia em que “o mundo mudou”
Na histórica visita à cidade arrasada pela bomba atómica, Presidente norte-americano falou com sobreviventes e voltou a defender um mundo sem armas nucleares. Redução de arsenal americano abrandou durante a sua presidência.
Não houve um pedido de desculpa, nem o reconhecimento de que a II Guerra Mundial, que tinha já matado 60 milhões de pessoas, poderia ter terminado sem aquelas bombas. Mas nos arquivos históricos da primeira visita de um Presidente norte-americano em funções a Hiroxima ficará o tributo que Barack Obama prestou às vítimas, o apelo repetido a um futuro sem armas nucleares e, sobretudo, o abraço a Shigeaki Mori, um sobrevivente que naquele “fatídico dia” tinha apenas oito anos.
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Não houve um pedido de desculpa, nem o reconhecimento de que a II Guerra Mundial, que tinha já matado 60 milhões de pessoas, poderia ter terminado sem aquelas bombas. Mas nos arquivos históricos da primeira visita de um Presidente norte-americano em funções a Hiroxima ficará o tributo que Barack Obama prestou às vítimas, o apelo repetido a um futuro sem armas nucleares e, sobretudo, o abraço a Shigeaki Mori, um sobrevivente que naquele “fatídico dia” tinha apenas oito anos.
Foi o momento mais inesperado de uma visita com a solenidade das grandes ocasiões, coreografada até ao mais pequeno detalhe – o Japão, contam as agências, esteve colado à televisão para ver até onde iria o Presidente norte-americano no gesto que o país espera há 71 anos. Obama foi contido no discurso, mas as breves palavras que trocou com dois sobreviventes testemunharam o que ele próprio tinha dito pouco antes: a actual aliança entre o Japão e os Estados Unidos mostra que “mesmo as divisões mais dolorosas podem ser ultrapassadas” e que “os antigos inimigos podem tornar-se não só parceiros, como os melhores amigos e os mais fortes aliados”.
Obama esteve menos de duas horas em Hiroxima, o bastante para visitar o museu do parque onde estão reunidos testemunhos do horror que varreu a cidade quando a 6 de Agosto de 1945 a Força Aérea norte-americana largou a primeira das duas únicas bombas nucleares alguma vez usadas contra seres humanos. Dezenas de milhares de pessoas morreram instantaneamente, num balanço que se elevaria até 140 mil mortos no final desse ano. A cidade de Nagasáqui seria arrasada três dias depois, num ataque que matou 74 mil pessoas e selou a rendição japonesa, pondo fim a seis anos de guerra.
“Numa manhã luminosa sem nuvens, a morte veio do céu e o mundo mudou”, disse Obama, depois de, em silêncio e com uma leve vénia, colocar uma coroa de flores brancas frente ao cenotáfio onde estão inscritos os nomes de todas as vítimas. À sua frente, na terra queimada que é hoje o Parque Memorial da Paz ardia a chama eterna e, em pano de fundo, erguia-se a cúpula emblemática de um dos raros edifícios que a força da explosão não arrasou.
Histórica, a visita a Hiroxima provocou grande debate, nos Estados Unidos, no Japão e também na China, o grande adversário actual de ambos, que vê nesta deslocação uma tentativa de branqueamento do passado e uma união de forças contra os interesses de Pequim. Obama avisou que não iria revisitar a decisão tomada pelo Presidente Harry Truman, nem pedir desculpas (nos EUA prevalece a visão de que o uso das bombas foi justificado para pôr fim ao conflito). O seu objectivo, insistiu, era homenagear os mortos – não só os de Hiroxima e Nagasáqui, mas de todos os que morreram nos seis anos de guerra – e insistir na urgência de um desarmamento nuclear.
“Uma revolução moral”
“Porque viemos a este lugar, a Hiroxima? Viemos para reflectir sobre a terrível força libertada num passado não tão distante assim. Viemos para homenagear os mortos”, disse Obama, tendo o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, ao seu lado. Nascido 16 anos depois do fim da II Guerra, mas com o peso da História sobre os ombros, Obama evocou “o momento em que a bomba caiu” e “o horror das crianças confusas perante aquilo que os seus olhos viam”.
Obama sublinhou que a memória desse dia – “em que a humanidade mostrou ter meios para se destruir a si própria” – não deve extinguir-se quando morrerem os últimos sobreviventes. E afirmou que cabe ao mundo actual “escolher um futuro no qual Hiroxima e Nagasáqui não sejam vistas como o despontar de uma era de guerras atómicas, mas como o início do despertar moral” global. “O progresso tecnológico sem o equivalente progresso das instituições humanas pode destruir-nos. A revolução científica que levou à cisão do átomo requer também uma revolução moral.”
Obama, que em 2009 criou grandes expectativas com o já célebre discurso em Praga sobre o mundo livre de armas nucleares, autorizou uma modernização sem precedentes do arsenal norte-americano e as negociações com a Rússia para a redução dos respectivos stocks estão há vários anos paradas. Uma análise da Federação de Cientistas Americanos, reputado grupo pró-desarmamento, a dados divulgados pelo Pentágono na véspera da visita, revela também que durante os mandatos de Obama foram desactivadas menos ogivas do que em qualquer outra presidência desde o final da Guerra Fria.
Em Hiroxima – para onde viajou como sempre acompanhado pelas malas com os códigos nucleares – admitiu que a responsabilidade recai sobre as “nações que como os EUA possuem milhares de ogivas”. “Devemos ter a coragem de escapar à lógica do medo e trabalhar por um mundo livre de armas nucleares”, insistiu.
Mesmo sem o pedido de desculpas – admissão que seria também intolerável para os países vizinhos, que insistem que Tóquio não se penitenciou suficientemente sobre as atrocidades que cometeu – muitos japoneses saudaram as palavras de Obama. “Para mim foi mais do que suficiente”, disse à Reuters Eiji Hattori, que tinha apenas dois anos quando Hiroxima foi arrasada e perdeu nesse dia ou nos anos seguintes toda a sua família. A radiação deixou-lhe como herança três tipos de cancro, mas diz que o discurso ajudou a aliviar a dor que nunca se extinguiu.
Miki Tsukishita, dois anos mais velho, lamenta, no entanto, que Obama não tenha deixado em Hiroxima promessas mais concretas para uma redução dos arsenais nucleares americanos. “Os sobreviventes da bomba atómica como eu estão a ficar velhos. Aplaudir a visita não é suficiente”.