O mundo tenta salvar a Líbia com mais armas
Os Estados que ajudaram a derrubar Khadafi e abandonaram os líbios à sua sorte querem agora construir um novo exército capaz de derrotar o Estado Islâmico. Mas há riscos em enviar armas para um país instável com três governos.
Os combatentes da milícia mais poderosa na Líbia recriminavam-se na noite de quarta-feira por não terem sido capazes de impedir o ataque daquela tarde. Um camião conseguira de alguma forma galgar 140 quilómetros de estrada em terreno aberto sem ser travado e o resultado fora catastrófico. Partira de Sirte cheio de explosivos, como seria de esperar de qualquer coisa vinda a alta velocidade da fortaleza do Estado Islâmico. Invadiu as linhas de defesa dos milicianos e fez-se explodir junto de um grupo de homens com uma violência de tal ordem que uma bola de fogo se ergueu dezenas de metros no ar. Os jihadistas usaram a mesma táctica no passado para aterrorizar soldados iraquianos e capturar um terço do país, mesmo quando muitas vezes dispunham de dez vezes menos combatentes e armas mais rudimentares. No final da última semana ainda morriam pessoas atingidas pela explosão suicida em Abugrein, uma das últimas linhas do território de cerca de 300 quilómetros que os jihadistas controlam na costa da Líbia. Contavam-se por essa altura 45 mortos.
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Os combatentes da milícia mais poderosa na Líbia recriminavam-se na noite de quarta-feira por não terem sido capazes de impedir o ataque daquela tarde. Um camião conseguira de alguma forma galgar 140 quilómetros de estrada em terreno aberto sem ser travado e o resultado fora catastrófico. Partira de Sirte cheio de explosivos, como seria de esperar de qualquer coisa vinda a alta velocidade da fortaleza do Estado Islâmico. Invadiu as linhas de defesa dos milicianos e fez-se explodir junto de um grupo de homens com uma violência de tal ordem que uma bola de fogo se ergueu dezenas de metros no ar. Os jihadistas usaram a mesma táctica no passado para aterrorizar soldados iraquianos e capturar um terço do país, mesmo quando muitas vezes dispunham de dez vezes menos combatentes e armas mais rudimentares. No final da última semana ainda morriam pessoas atingidas pela explosão suicida em Abugrein, uma das últimas linhas do território de cerca de 300 quilómetros que os jihadistas controlam na costa da Líbia. Contavam-se por essa altura 45 mortos.
Este é um dos enclaves mais preciosos do Estado Islâmico em todo o mundo. O comando jihadista aproveitou o vazio de poder e conflito interno que se seguiram à queda de Muammar Khadafi e intervenção militar da NATO — uma “tempestade perfeita”, como diz em privado o Presidente norte-americano, segundo a revista The Atlantic — e fez da cidade natal do ex-ditador o seu bastião líbio. Os Estados Unidos calculam que o grupo tem perto de seis mil combatentes em Sirte, separados da Europa apenas por algumas centenas de quilómetros de mar. Alguns são combatentes dos países vizinhos — sobretudo da Tunísia —, mas muitos são produto do ambiente propício para o recrutamento jihadista local. À pobreza e facciosismo que se apoderam do país, Sirte soma uma onda de violentas represálias no pós-guerra. Alguns jihadistas foram até recrutados entre os emigrantes africanos chegados para tentar uma travessia pelo Mediterrâneo. A cidade vive agora governada pela mesma interpretação extrema da lei islâmica imposta em Raqqa, na Síria, ou Mossul, no Iraque.
A Líbia não tem meios para enfrentar a ameaça crescente do Estado Islâmico. Nenhum dos seus três governos tem influência sobre mais do que um punhado de cidades, onde, quando muito, o seu comando é tolerado por políticos e milícias locais, os verdadeiros detentores do poder. Não existe um Exército digno desse nome e a montanha de armas que circula pelo país está espalhada por dezenas de milícias e traficantes. Mas os mesmos países que bombardearam a Líbia em 2011 querem agora ajudá-la a resolver o impasse político e a ameaça do Estado Islâmico. Querem fazê-lo enviando mais armas para o país e treinar forças leais ao novo Governo de Unidade Nacional, mesmo admitindo — como fez recentemente um general norte-americano — não haver ainda uma ideia clara sobre quem deve receber o novo armamento. “É um equilíbrio delicado”, explicou o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, anunciando a intenção do seu país e de outros aliados da NATO de suspender parte do embargo sobre o envio de armas para a Líbia para restringir Khadafi.
Iraque 2.0?
Os riscos são evidentes: as armas podem cair nas mãos erradas e fomentar uma nova guerra entre facções rivais. O Governo de Unidade Nacional (GUN) ainda não reúne consenso e não controla um corpo militar. Tenta por enquanto convencer os governos rivais em Tripoli e Tobruk a concederem-lhe autoridade: o primeiro já quase não controla instituições relevantes, mas o Parlamento de Tobruk e grande parte do Leste do país recusam-se a capitular por ordens do general Khalifa Haftar, apoiado e armado pelo Egipto e Emirados Árabes Unidos. É Haftar quem controla os resquícios das forças armadas de Khadafi, quando o GUN ainda não conseguiu sequer sair da base naval de Tripoli onde desembarcou e depende de uma aliança instável de milícias, como a de Misrata, que o Estado Islâmico atacou na última semana. Os Estados Unidos, França e Reino Unido têm homens das forças especiais no terreno há vários meses e mesmo assim não conseguem compreender inteiramente as alianças em jogo. “Estamos mesmo dependentes do GUN para que ele decida quem é que o apoia e quem o pode vir a fazer”, admitiu o general americano David Rodriguez ao Washington Post.
A intenção é evitar uma nova Síria. O argumento a favor de suspender parte do embargo de armas para a Líbia defende que só assim o novo Governo de Unidade Nacional se poderá afirmar como a força política consensual e fazer frente ao Estado Islâmico, que muitos receiam estar a investir na sua presença africana para compensar as derrotas no Médio Oriente — possivelmente convocando combatentes do Boko Haram, que lhe jurou fidelidade no último ano. “Depende muito do sucesso ou não do GUN: com armas insuficientes continua a ser um tigre de papel”, escreve William Wallis no Financial Times. Investir no armamento do novo Governo pode fazer com que as forças ainda hesitantes em conceder-lhe autoridade se decidam a fazê-lo e ao mesmo tempo dissuadir o general Haftar e os políticos de Tobruk a desistir da sua oposição. “Queremos vê-los [ao GUN] a formar uma estrutura de comando unificado que possa chegar a todas as partes da Líbia”, argumenta um diplomata ocidental ao mesmo jornal. “Isto é importante e, julgando pelo progresso até agora, não será fácil.”
Mas muitos querem evitar um novo Iraque. O Estado Islâmico ficou substancialmente mais poderoso quando roubou milhares de milhões de dólares em armas norte-americanas enviadas ao Exército iraquiano. Muita da sua força actual ainda depende delas e de outras que quase todos os meses consegue capturar aos rebeldes sírios e aliados do Presidente Bashar al-Assad. A miríade de milícias na Líbia está menos preparada do que estas forças, o que aumenta o risco de o novo arsenal cair nas mãos erradas, mesmo que a intenção por agora seja enviar apenas armas ligeiras. Nas palavras de Iain Overton, director do Instituto Acção contra a Violência Armada: “Sabemos que o Pentágono perdeu cerca de 190 mil pistolas e espingardas automáticas do tipo Kalashnikov no Iraque. Sabemos que perdeu o rasto a mais de 40% do armamento enviado para as forças de segurança no Afeganistão. E sabemos que o Pentágono não consegue dar conta de mais de 500 milhões de dólares em ajuda militar ao Iémen. Quais é que são as probabilidades, então, de um título de jornal daqui a cinco anos dizer que o Pentágono perdeu milhões de dólares em armas na Líbia?”
Intervenção pendente
Quase todos admitem que alguma coisa tem de ser feita na Líbia. A NATO prepara-se para um missão de longa-data no país depois de o ter abandonado à sua sorte com a queda de Khadafi. Será uma das caras da sua nova estratégia para o Mediterrâneo: a aliança quer ajudar a “construir instituições”, destruir redes de imigração ilegal e contribuir para a estabilização de zonas reconquistadas ao Estado Islâmico. Espera apenas por um pedido formal da parte do novo Governo, que, pelo menos por enquanto, quer evitar mostrar-se incapaz e demasiado dependente de forças externas. A estrutura da missão ainda está por definir, mas os diplomatas da aliança asseguram que não vai passar por operações de combate. Mattia Toaldo, especialista na Líbia no European Council on Foreign Relations, argumenta que esta intervenção pendente deve tirar já lições do envio de forças especiais para o terreno, que, em vez de ajudar à reconciliação líbia, só piorou as fracturas, deixando a impressão em milícias opositoras de se poderem transformar “num equivalente dos peshmergas [combatentes curdos] iraquianos” e receber favores políticos e armas em troca.
Caso nada disto funcione, a Europa e os Estados Unidos podem não resistir à tentação de intervir militarmente na Líbia, como fizeram no Iraque e Afeganistão — algo para o qual nenhum país parece disposto a dispensar capital político e militar. O risco de ter um bastião poderoso do Estado Islâmico tão próximo das costas europeias e a possibilidade de a Líbia se tornar na nova grande plataforma para emigrantes e refugiados a caminho de Itália podem ser o gatilho para que isso aconteça. Mas enviar armas para o novo Governo parece ainda não ser a chave para sarar as feridas líbias, como argumenta Claudia Gazzini, investigadora no International Crisis Group. “A política de oferecer armas como uma cenoura para aliciar aliados importantes no Leste do país não funcionou no passado”, afirma. “[O GUN] deve antes alargar o consenso em redor do seu projecto político e conquistar a população hostil do Leste. Se não o fizer, pode estar no caminho de uma colisão com as forças do [general] Haftar, o que só abre as portas a benefícios para o Estado Islâmico.”