“É absolutamente vital que se evolua em direcção a bancos pan-europeus”

Peter Praet, membro do conselho executivo do BCE, avisa Portugal da situação frágil em que se encontra nos mercados e critica recuos nas reformas estruturais.

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Peter Praet apela ao Governo para que não recue em reformas estruturais Rui Gaudêncio

É um dos seis membros do conselho executivo do Banco Central Europeu e lidera o departamento que prepara as recomendações para as decisões de política monetária. De visita a Lisboa para participar numa conferência falou com o PÚBLICO sobre a situação portuguesa. Não quis fazer comentários sobre casos específicos de bancos por não ser a sua área, mas defendeu que “o que interessa nos bancos é que sejam bem geridos, não que sejam detidos por nacionais”. Em relação à economia e ao orçamento, avisou que “a disciplina do mercado ainda está presente” e disse acreditar que o Governo português “está bem ciente da fragilidade da situação”.

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É um dos seis membros do conselho executivo do Banco Central Europeu e lidera o departamento que prepara as recomendações para as decisões de política monetária. De visita a Lisboa para participar numa conferência falou com o PÚBLICO sobre a situação portuguesa. Não quis fazer comentários sobre casos específicos de bancos por não ser a sua área, mas defendeu que “o que interessa nos bancos é que sejam bem geridos, não que sejam detidos por nacionais”. Em relação à economia e ao orçamento, avisou que “a disciplina do mercado ainda está presente” e disse acreditar que o Governo português “está bem ciente da fragilidade da situação”.

Como é que o BCE está a gerir o facto de a sua política afectar de forma diferente os países que poupam mais e os países que estão mais endividados, como Portugal?
Realmente, temos países que tiveram um ciclo financeiro muito pronunciado, como Espanha ou Portugal e depois uma grande correcção. E temos países como a Alemanha, sem um ciclo financeiro e com excesso de poupanças. É uma situação em que alguns países da união são credores e outros devedores. Mas é também importante dizer-se que em todo o ajustamento que foi feito, olhando para a união como um todo, se registou uma compressão da procura, por que tal aconteceu de forma muito acentuada nos países em crise, mas não houve uma compensação por parte dos países excedentários ao nível da procura interna. Na Alemanha, por exemplo, o PIB esteve muito bem durante a crise, mas a procura interna foi relativamente fraca. Feitas as contas, o excedente da balança de transacções correntes que vamos ter na união económica e monetária será de 4% do PIB, o que é enorme, com a Alemanha quase com 9%. Há um excesso de poupanças na zona euro. Antes da crise, tínhamos uma balança situada entre -1% e 1% do PIB. O desequilíbrio que agora temos é difícil de resolver.

Mas são os países com excedentes que se estão a queixar que são os mais afectados pelas taxas negativas. Isso condiciona as decisões do BCE?
O conselho de governadores não altera de nenhuma forma a sua capacidade para decidir por causa de debates políticos. Fazemos o que temos a fazer como bons banqueiros centrais. E somos unânimes a defender esta ideia, mesmo que não sejamos totalmente unânimes em relação às medidas que tomamos. O facto dominante é que somos unânimes na nossa intenção de atingir o nosso objectivo para a inflação e apoiar a economia.

Para os países com défices, como Portugal e outros, o BCE apresentou muitas vezes críticas e recomendações. Não concorda que o BCE tem sido menos veemente nas críticas e recomendações de política que faz aos países que têm excedentes?
É um muito bom ponto. Nós tivemos de passar por uma crise da balança de pagamentos nos países deficitários porque o dinheiro estava a sair e não tínhamos um bom mecanismo de ajustamento na união monetária para os choques assimétricos. E o problema nesses países foi uma grande perda de competitividade. Foram feitas reformas estruturais, mas ao mesmo tempo, quando esses países foram atingidos pelos choques assimétricos, não houve uma compensação noutros países. É um problema que é difícil de resolver, mas é um facto que a união monetária não tem funcionado muito bem nesta questão. Uma preocupação é que uma reflexão fundamental sobre a forma de pôr a união monetária a funcionar melhor não está a avançar suficientemente. Claro que nem tudo é negativo. Conseguimos montar melhores mecanismos para lidar com a crise da dívida soberana, mas ainda estamos a meio. E temos a união bancária, onde estamos especialmente avançados em termos de supervisão, mas ainda não a terminámos.

O facto de a união bancária não estar terminada não conduz a que os bancos pequenos dos pequenos países sejam comprados pelos bancos grandes dos países grandes?
Eu sei que há uma grande discussão sobre isto aqui em Portugal. Mas eu tenho sempre dificuldade em perceber porque é que isso seria um problema. Eu vivi a crise do Fortis na Bélgica e esse banco representou um risco enorme para o país. Agora está sob o controlo do BNP e isto tem sido absolutamente instrumental a evitar uma catástrofe. Para a Europa esta é uma questão importante. Nós vemos que os sistemas bancários são em geral mais nacionais do que eram. Não em Portugal, mas em muitos países. Os bancos, mesmo quando têm subsidiarias, tendem a gerir cada vez mais as entidades em separado. Isto significa que, se existe um choque num país, o sistema bancário não é suficientemente diversificado. E claro que o facto de estarmos numa união monetária limita o espaço de manobra: um país não tem o instrumento da taxa de câmbio e a política monetária é única. Por isso é absolutamente vital que se evolua em direcção a bancos pan-europeus, bancos que estejam geograficamente diversificados e que tenham uma garantia de toda a união monetária como um todo.

Portanto o que está a dizer é que, numa união monetária, se os países pequenos querem ter bancos seguros, têm também de esquecer a questão de quem os detém?
O que interessa nos bancos é que sejam bem geridos, não que sejam detidos por nacionais. Pode sempre haver bancos locais, não é esse o problema, mas ter todo o sistema bancário exposto a uma economia local na união monetária como a nossa é uma combinação perigosa. Temos dois problemas na zona euro: um mercado bancário fragmentado e a falta de um backstop comum. Isto não pode ser feito num dia, mas é preciso explicitar como é que se pretende fazer essa transição.

A política monetária na Europa é feita essencialmente através dos bancos. Isso não é um problema? Não há outra maneira de fazer chegar o dinheiro mais directamente às pessoas e às empresas?
No que diz respeito ao “helicopter money”, nós não estamos a discutir isso. É verdade que o principal mecanismo de transmissão da nossa política é através dos bancos. Mas quando se corta as taxas, as pessoas também ficam com um incentivo para consumir mais. O consumo aumentou mais do que o rendimento disponível em alguns países. E, pensem no reequilíbrio que acontece nos portfólios: quando compramos obrigações, quem as vende, que não são necessariamente bancos, ficam com mais liquidez. O que é que eles fazem com o dinheiro. Algumas pessoas gastam-no, outras reinvestem.

E dessa forma não beneficiam mais os ricos do que os pobres?
Não estou convencido disso. Se evitarmos uma recessão e facilitarmos uma retoma da economia e do emprego, o efeito de distribuição nesse caso é muito importante. Não se pode olhar apenas para os preços dos activos, como as acções por exemplo, mas também para o impacto na economia.

Em Portugal, devemos acreditar que as medidas do BCE vão fazer os bancos emprestar mais quando a procura por crédito é tão baixa?
Numa conjuntura fraca, tem-se crescimento mas o volume de crédito continua a descer de ano para ano. Em geral, na Europa, existe uma procura fraca por empréstimos. E como o sector bancário não se consolidou o suficiente, a principal questão para os bancos actualmente é terem demasiada concorrência. O nosso inquérito aos bancos mostra que existe uma concorrência crescente no sector bancário. A boa notícia é que as taxas são passadas para os clientes, mas ao mesmo tempo os bancos não geram lucros suficientes para se recapitalizarem. Há grandes desafios no sector bancário em muitos países europeus e Portugal certamente que é um deles.

O que pensa do plano de criar uma entidade para lidar com o crédito mal parado em Portugal?
Desenvolver um mercado para o crédito malparado é fundamental. Mas há muitas condições para que isso possa funcionar. Em Espanha fizeram isso muito cedo, mas muito do seu crédito malparado estava relacionado com a exposição ao imobiliário, que é muito mais fácil de lidar do que os empréstimos a PME, que são predominantes em Itália e Portugal. Nesses empréstimos é muito mais difícil definir um preço. Se um banqueiro tenta vender esses créditos, o comprador não sabe exactamente o que está a comprar, por isso o preço acaba por ser muito baixo. Estas são questões técnicas muito difíceis de resolver. 

Concorda que o BCE foi decisivo nos últimos três anos para que Portugal conseguisse manter as taxas de juro relativamente baixas?
Um dos principais factores pelos quais as taxas de juro portuguesas desceram foi porque o país cumpriu o seu programa.

Então não sente que o país agora está dependente das taxas de juro baixas do BCE e da sua promessa de apoio em caso de necessidade?
Recentemente, vimos as taxas de juro de Portugal a subir. Isto mostra que a disciplina do mercado está presente, mesmo apesar do facto de o BCE comprar dívida pública do país. Portugal não deve esquecer esta mensagem: a disciplina do mercado ainda está presente. E depois há os ratings. Quando fazemos compras de activos, olhamos para as agências de rating. Há apenas uma com o nível mínimo para Portugal e é de BBB-.

Se Portugal perdesse esse rating da DBRS, o que é que o BCE faria?
É muito claro, nós apenas compramos activos com rating em nível de investimento. Podemos temporariamente não considerar o rating, mas isso exige a existência de um programa. Por isso, não há aqui qualquer ambiguidade.

Não lhe parece estranho que a acção do BCE em relação a Portugal esteja neste momento dependente de uma única agência de ratings?
O BCE confia em quatro reconhecidas agências de rating e tem um departamento económico a olhar para a vulnerabilidade dos países.

Um departamento provavelmente melhor que o da DBRS...
As agências de rating têm de cumprir critérios definidos. Pode-se dizer: porque é que não fazem os vosso próprios ratings? Claro que podemos fazer a análise para conferir as conclusões e avaliações das agências de rating, mas é uma boa prática que isso seja feito nas duas direcções, ou seja que as nossas avaliações também sejam conferidas por entidades externas.

O FMI calcula que, ao actual ritmo, o BCE vai atingir o limite de obrigações portuguesas que pode comprar até ao fim do ano. Irá Portugal ter um problema aqui?
Não quero fazer comentários a esta questão.

Falou da reacção dos mercados aos últimos desenvolvimentos em Portugal. E você, está preocupado?
Os mercados estão preocupados, mas não excessivamente. O que significa que ainda existe o benefício da dúvida. O que observo é que o rumo orçamental foi confirmado, mas uma série de coisas não estão ainda claras para o orçamento de 2016. E o número previsto para o crescimento do PIB nominal parece ser elevado. Há uma declaração política de continuidade e de intenção de seguir as regras europeias, isso é positivo, mas há algumas dúvidas acerca dos detalhes e sobre os pressupostos macroeconómicos. Portanto isto é algo que estamos a seguir e eu penso que o Governo está bem ciente da fragilidade da situação. A outra coisa que estamos a acompanhar são as reformas estruturais. O plano português tem seis prioridades, e um deles é a coesão social, que eu acho muito importante. Mas há algumas reformas que foram revertidas, e precisamos por isso de levantar uma série de questões. Quais são as implicações orçamentais, por exemplo, se se voltar para a semana de 35 horas? Este ainda é um período em que existem pontos de interrogação.

O Governo defende que a prioridade das reformas tem de mudar para a qualificação e a coesão social, em vez da flexibilidade no mercado de trabalho, por exemplo. Não concorda com essa visão?
O que eu acho é que as reformas têm de ser continuadas. Mas cabe aos políticos decidir sobre a distribuição e onde se devem colocar as prioridades. No final o que queremos é um país mais estável, com mais produtividade e menos stress financeiro.

E no sector bancário, o que acha da política do Governo nessa área?
Ainda não é clara. Os indicadores mostram que o sector bancário ainda é frágil, que o ajustamento está longe de estar concluído, e ainda é difícil perceber qual é a estratégia aqui. Por exemplo, um veículo de gestão de activos é uma boa ideia, mas é tecnicamente difícil de implementar, e pode demorar tempo até estar operacional.

O que acha da possibilidade de nacionalizações?
Se nacionalização significa decisões na alocação do crédito na base de critérios económicos pouco saudáveis, então não é uma boa ideia. Se o problema que existe é de um banco privado que aloca mal as poupanças, então o que se tem de perceber é porque é que o banco está a tomar as decisões erradas. Habitualmente o que significa é que os donos e os gestores dos bancos não são bons. O que um banco precisa, seja detido ou não pelo Estado, é de boa governança e controlo relativamente à bondade das decisões de crédito. Tanto temos visto exemplos de maus bancos públicos como de maus bancos privados.

Tivemos a troika em Portugal desde 2012 e ainda estamos com problemas na banca agora. Isto não deveria ter sido resolvido com o programa?
Os bancos foram um prioridade. Em Portugal, havia muito crédito em relação à quantidade de depósitos, portanto no programa foram colocados muitos constrangimentos nessa área, o que significa um aperto no crédito. É difícil julgar, à posteriori, porque é preciso olhar para as condições que se viviam na altura. O que sabemos é que a falta de uma união bancária quando o choque surgiu, amplificou muito a crise. E ainda não concluímos a união bancária. O que acontece em Portugal é que tem problemas de crescimento de longo prazo. Fez um grande esforço nos últimos anos, mas precisa de continuar.

A entrevista em inglês: "We have shown in the past that we can be very creative"