Febre no coração da Europa
Quando escreveu Danúbio, em 1986, os cafés, lugares intermédios entre as esferas individual e colectiva, eram o símbolo da Europa – e as periferias mantinham os valores comuns mais vivos do que os grandes centros. Hoje, com as fronteiras ao rubro, tudo isso mudou, lamenta Claudio Magris.
Aos 77 anos, o italiano Claudio Magris (cujos livros estão publicados em Portugal pela Quetzal) é considerado um dos mais importantes intelectuais europeus. Escreveu romances, ensaios, peças de teatro e artigos em que reflecte sobre cultura alemã, identidade europeia, política, religião, cultura. Convidado pelo festival LeV (Literatura em Viagem), esteve no passado fim-de-semana em Matosinhos, onde conversou com o Ípsilon.
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Aos 77 anos, o italiano Claudio Magris (cujos livros estão publicados em Portugal pela Quetzal) é considerado um dos mais importantes intelectuais europeus. Escreveu romances, ensaios, peças de teatro e artigos em que reflecte sobre cultura alemã, identidade europeia, política, religião, cultura. Convidado pelo festival LeV (Literatura em Viagem), esteve no passado fim-de-semana em Matosinhos, onde conversou com o Ípsilon.
Na obra Danúbio, fala dos cafés de Viena, Budapeste ou Lviv como símbolos da Europa. Diz: “Os cafés são a Europa”. O que nos dizem os cafés de hoje sobre a Europa?
Antes de mais, deixe-me dizer que Danúbio é um romance disfarçado, não um livro de História. Não se pode tomar literalmente. Essas afirmações são metáforas, o que significa que são ao mesmo tempo verdades e mentiras. Nessa passagem transparecia um sentimento de decadência fascinante, mas também uma dimensão que não é só de solidão individual, nem do apagamento do indivíduo na multidão. É a relação do individual com a dimensão pública. Os cafés são uma versão moderna da ágora grega. Locais onde se misturam trabalho e lazer, onde nos entregamos a certas rotinas, a certa preguiça, a certa reflexão, e onde podemos ler, discutir, e depois escrever. Isto nem sempre existe nas cidades de hoje, com o ritmo de hoje.
As cidades já não são pontos de encontro entre essas dimensões individual e colectiva?
A maneira como vejo as cidades é, bem entendido, marcada pela minha educação sentimental. Que sempre me levou a procurar essa dimensão intermédia entre o que é histórico, cultural, público, e a vida, que é fugaz, mas que dá a atmosfera a uma cidade. É por isso que quando visito uma cidade não são os museus nem os monumentos que me interessam. Acredito que a verdadeira realidade de uma civilização e de uma cultura é a vida quotidiana. A importância dos livros que li, da música que ouvi, é dar-me uma forma de me aproximar dos outros, de viver o mundo que me rodeia, de intervir, ou não, nas coisas. Existe a dimensão dos compromissos colectivos, públicos, que constitui um dever, porque é preciso interessarmo-nos pelo que se passa, e existe o reflexo disso na vida quotidiana. O que me interessa é a dimensão intermédia, entre as duas. É por isso que aqui no Porto preferi andar pelas ruas, passear pela Ribeira, a visitar museus.
A sua ideia de viagem coloca-a nessa dimensão intermédia, entre a experiência directa, dos lugares, das pessoas e da vida quotidiana, e a observação culta.
Certamente. Para mim, vir a Portugal implica conhecer a sua História, saber quem é D. Sebastião e o mito do Desejado, ler Saramago e Lobo Antunes, estar familiarizado com a Revolução dos Cravos, que segui com muito interesse na época, ter a noção de que a cultura portuguesa tem ramificação em lugares como Moçambique… Tudo isso misturado com a vida é a dimensão humana de um lugar, de uma cultura. Na minha opinião, e na minha vida, a literatura serve para isso. Depois de ler Guerra e Paz, por exemplo, nunca mais vi o amor da mesma maneira. Fui sempre influenciado pela forma como Natasha e Andrei se conheceram.
Nas viagens pelos países do Danúbio, desenvolve o conceito de periferia. As periferias dos impérios, ou da Europa, como regiões onde os valores e o sentimento de pertença ao grupo são mais fortes do que no centro. Isso continua a ser verdade nas periferias da Europa?
Não. Há uma mudança. Infelizmente, depois da Guerra Fria, a História não acabou, explodiu com uma intensidade ainda mais violenta. A periferia interessa-me muito, porque é o lugar da separação, mas também do encontro. Na periferia, há um conhecimento do centro maior do que o que existe no centro sobre a periferia. Ou mesmo, paradoxalmente, um conhecimento e um sentimento dos valores comuns mais fortes do que no centro. Por outro lado, o grande perigo da periferia é o de se considerar o mais autêntico representante da nação, por serem zonas onde se pensa que esse sentimento nacional está ameaçado. É nesse contexto que nascem os nacionalismos das zonas periféricas, desses países que são zonas de fronteira. Também as fronteiras são pontos de encontro dos outros e de separação, de exclusão.
Está a pensar nos países do Leste europeu, que são por exemplo os mais relutantes em receber os refugiados sírios…
Sim. São países que tiveram de proteger a sua identidade, a sua tradição, da hegemonia soviética. E estão ainda muito fixados nessa obsessão, que lhes retira a capacidade de se abrirem. É por isso que os muros, e não me refiro apenas aos que se erguem contra os imigrantes, mas também aos que os separam da ideia de Estado europeu, são muito mais altos nessas regiões. Por exemplo, a Constituição húngara é absolutamente impossível no interior da União Europeia.
Mas parece que já ninguém sabe quais são os valores essenciais da Europa.
Pois, deviam ser claros, e comuns ao centro e à periferia, mas talvez a incerteza, a ansiedade por haver no seio da União Europeia tantas nacionalidades levem a que não se assumam esses valores com convicção. A regra da unanimidade, por exemplo, bloqueia as decisões, e não é democrática. A unanimidade é uma ficção dos regimes totalitários. A democracia é uma investigação, uma procura, e depois uma decisão, feita pela maioria, dando à minoria a possibilidade de existir e de se exprimir. A unanimidade é impossível.
A identidade europeia precisa de uma fronteira, geográfica e moral, para se definir? Em Danúbio faz uma reflexão sobre o Limes, a linha que definia os limites do império romano, dizendo que ela dava forma a uma entidade para que pudesse ser reconhecida, respeitada e amada. Onde está hoje o Limes da Europa?
O Limes, a fronteira, o limite, não é uma realidade metafísica imutável. Muda com a História. Não é apenas a fronteira de cada Estado, mas de cada civilização. O problema é quando o Limes se torna uma coisa simultaneamente incerta e rígida. Hoje, temos um sentimento de incerteza sobre o que é a Europa e onde termina. A Turquia, faz ou não faz parte? As decisões são tomadas sobre uma base histórica e cultural, ou trata-se de uma realidade política que pode excluir, ou decidir consoante as conveniências? O Limes deixou de ser a amplitude onde cabiam muitas possibilidades, para ser às vezes uma fronteira próxima, pequena e rígida.
Hoje, essa ideia de limite alimenta os fundamentalismos identitários e os nacionalismos?
Sim, é o limite de cada país, ou de cada região. Há um fechamento aos outros, uma febre identitária. Em Itália vemos isso por todo o lado, um exacerbar das especificidades. Mas não se trata de amor por essas especificidades. Por exemplo, em casa falo sempre no dialecto triestino. Também com os meus amigos da Universidade de Trieste não falo italiano, mas o dialecto da região. Mas isso não é uma ideologia. Se o fosse, seria uma perversão da autêntica identidade local, cuja natureza não é ser usada contra a identidade superior. Isso representaria uma ofensa ao meu próprio dialecto.
O fundamentalismo islâmico tem-nos ajudado a compreender quais são os nossos valores europeus comuns, ou veio lançar dúvidas sobre a sua justeza e universalidade?
Os valores do fundamentalismo islâmico não são os nossos, e é preciso ter uma atitude muito dura em relação a eles. Há valores sobre os quais já não discutimos. Os direitos de cada um, as identidades nacionais, étnicas, sexuais, religiosas, etc., não são discutíveis. Se a região da Toscana agora decidisse que as mulheres não poderiam mais ir à escola, o que teríamos de fazer era chamar o Exército. Há valores que não são negociáveis.
É importante definir quais são esses valores?
O problema dos valores não é a sua definição. Eles existem quando a sua definição é a realidade da vida. É possível ouvir todas as sugestões, e estar sempre disponível para mudar de opinião, mas há fronteiras inultrapassáveis. E essas fronteiras não são impostas. O importante é que, por exemplo, a pedofilia não exista, nem mesmo na nossa consciência, antes de a definirmos como coisa absolutamente interdita. Os valores existem quando são a substância da nossa cultura. Não tenho nenhuma necessidade de me reprimir para não me tornar um pedófilo, ou para não matar uma criança, ou para não violar uma mulher. Esses valores existem em mim previamente a qualquer proibição.
Mas não são universais. Certas culturas não os respeitam.
Há esse problema. Mas não podemos ter qualquer contemplação para com isso. Porque não tem nada a ver com professar uma determinada religião. Eu fiquei muito contente que Londres, com o seu passado de potência colonial e racista, tenha agora eleito um presidente de Câmara muçulmano. E certamente que ele [Sadiq Khan] não representa um perigo para a identidade das mulheres inglesas. Não as vai obrigar a sair com o véu na cabeça.
A laicidade é um desses valores inegociáveis?
Sim, é absolutamente necessária. Mas não significa a recusa da religião. É apenas a capacidade de distinguir o que é objecto de uma demonstração do que é apenas objecto de uma convicção. Não quero dizer que o objecto de demonstração seja mais importante do que o objecto de convicção. Mas é preciso saber distinguir entre o que a Ciência pode demonstrar e os valores que não podem ser demonstrados. Esse é o grande desafio. Nesse sentido, a laicidade não tem nada a ver com convicção religiosa ou falta dela. Conheço religiosos laicos, e anti-clericais fanáticos. Um matemático católico não deve usar os Evangelhos para demonstrar o Teorema de Pitágoras. A laicidade é a capacidade de encarar os nossos próprios valores com uma distância crítica. Um exemplo: quando o meu filho tinha 14 anos costumava jogar à bola na praia, em Trieste. A partir de certa zona, havia uma praia nudista, embora sem uma fronteira oficial. O meu filho brincava na zona não-nudista, e tinha os calções vestidos. Uma vez a bola rolou até à zona nudista, e quando ele foi lá buscá-la, alguém lhe disse que ele tinha de tirar os calções. Porque haveria de fazê-lo? Que interesse poderia isso ter para os banhistas nudistas? Aquele nudista era fanático e ideológico. Não era um nudista laico.