Vir para Portugal depois de uma vida inteira na Venezuela
Nos últimos 20 anos muitos portugueses trocaram a Venezuela por Portugal. O que os atrai mais agora em Portugal não é a possibilidade de ganhar dinheiro, “é a tranquilidade, a liberdade”.
Dinarte Pestana de Abreu fechou a porta do apartamento, pôs o carro em casa de um amigo, entregou o negócio a um primo, pegou na mulher e nos filhos, de quatro e sete anos, e virou costas a Valença, a terceira maior cidade da Venezuela. Aterrou em Lisboa na terça-feira.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Dinarte Pestana de Abreu fechou a porta do apartamento, pôs o carro em casa de um amigo, entregou o negócio a um primo, pegou na mulher e nos filhos, de quatro e sete anos, e virou costas a Valença, a terceira maior cidade da Venezuela. Aterrou em Lisboa na terça-feira.
“Não temos qualidade de vida na Venezuela”, lamenta, ao telefone. “Não há segurança. Temos de estar fechados todo o tempo. Falta tudo. Quem não tem bons ingresos [rendimentos], não come bem. Para dar melhor vida aos meus filhos, tomei a decisão de vir para Portugal.”
Nos anos 50, 60 e 70, o fluxo ia daqui para lá. Desde finais de 1948, a economia da Venezuela prometia ascensão social. Os portugueses desembarcaram em força entre 1948 e 1983. Uns levavam o dinheiro ganho nas petrolíferas da ilha do Curazao. Outros apenas força braçal. Muitos viveram com o mínimo até se converterem em sócios de pequenos negócios.
Em pouco tempo, Caracas, a capital, ganhou uma ampla variedade de comércios e pequenas indústrias dirigidas por portugueses. Em meados dos anos 70, já eram mais de quatro mil à frente de supermercados, adegas, cafetarias, ferrarias, talhos, frutarias, padarias, peixarias… Com o tempo, tornaram-se numa das mais prósperas e incluídas comunidades na sociedade.
Dinarte foi em 1978. Tinha dois anos. “Cresci lá. Fiz vida lá.” De certo modo, manteve a tradição: geria a sua própria padaria/pastelaria. “Neste momento, é uma padaria sem pão, uma pastelaria sem bolos”, diz. “Já leva mais de 15 dias sem farinha. A qualquer momento, pode fechar as portas.”
Repetem-se as notícias sobre problemas de abastecimento num país que exporta petróleo e importa quase todas as outras matérias-primas. A inflação atingiu 720% este ano, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Faltam alimentos e medicamentos. Falha a electricidade. Várias padarias colaram cartazes à porta a dizer: “No hay pan”. Em frente às que ainda têm farinha, formam-se longas filas.
Fluxo contínuo
Impossível saber quantos já trocaram a Venezuela por Portugal. O fluxo susceptível de ser detectado pelas autoridades é quase insignificante. São quase todos portugueses de origem, como Dinarte, ou lusodescendentes com dupla nacionalidade, como os seus filhos. No final do ano passado, os residentes de nacionalidade venezuelana, como a mulher dele, não iam além dos 2008, mais 95 do que no ano anterior, segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
Não é um movimento migratório novo. Houve um pico após a crise económica que culminou no célebre Caracazo (Fevereiro de 1989). Outro a seguir às enxurradas que desfiguraram o Estado de Vargas (Dezembro de 1999). E outro na convulsão que se seguiu ao golpe contra Hugo Chávez (Abril de 2002). De então para cá, manteve-se um fluxo mais ou menos contínuo, muito impulsionado por tragédias pessoais ou por solavancos políticos.
Dinarte Pestana de Abreu andava há muito a pensar em vir. Por vontade da mulher, já cá estariam há mais tempo. Comprou os bilhetes de avião em Novembro do ano passado. Nos últimos meses teve medo de ser impedido de sair com a família. No princípio do ano, o Presidente da República, Nicolás Maduro, decretou estado de emergência económica. Já este mês, frente a manifestações pela revogação do seu mandato, prorrogou-o e ameaçou aumentar o nível.
O padeiro comprou os bilhetes, com cartão de crédito, a partir dos Estados Unidos. Desde 2003, vigora um sistema de controlo cambial que proíbe a livre obtenção de moeda estrangeira e obriga companhias aéreas a solicitar autorizações para repatriar os capitais gerados pelas vendas. Há dois anos, a maioria das companhias aéreas deixou de vender bilhetes em bolívares e passou a impôr pagamento em dólares e cartões de crédito de bancos estrangeiros.
Fazer as malas e partir é o plano B de um número indeterminado de famílias. A afluência aos serviços consulares mostra um esforço para manter a documentação em ordem. Segundo o cônsul-geral de Portugal em Caracas, Luiz de Albuquerque Veloso, só no ano passado, naquela estrutura foram concedidas 2373 nacionalidades e emitidos 13.172 passaportes.
“A comunidade portuguesa tem um enorme apreço pela Venezuela, não apenas porque foi a nação que tão bem a acolheu, mas também porque aprecia o estilo de vida, o povo, a temperatura do país”, diz o cônsul numa entrevista por email. “Muitos portugueses consideram-se venezuelanos.” Vê partir “novas gerações, que procuram destinos que lhes possam assegurar melhores condições de vida e de trabalho”, explica ainda. Avançam, mais do que tudo, para os Estados Unidos, a Europa, os países vizinhos, como outros jovens venezuelanos. “Dizem-me que regressarão assim que a situação melhorar.”
Vidas repartidas
Não é pouca gente. “Existem cerca de 250.400 portugueses inscritos no Consulado-Geral de Portugal em Caracas e creio que no de Valença existem cerca de 51 mil”, informa Luiz de Albuquerque Veloso. “Calcula-se que a comunidade portuguesa na Venezuela chegue a um milhão, tendo em conta portugueses não inscritos, luso-descendentes e cônjuges venezuelanos.”
Os estudos do historiador António de Abreu Xavier confirmam o apego: os portugueses apreciam “o clima cálido, a diversidade paisagística, a cordialidade, a variedade gastronómica, o igualitarismo, a anomia cidadã e um certo caos”. Agrada-lhes “o cosmopolitismo urbano, que muitos opõem às aldeias portuguesas, não às suas cidades”. Durante anos, só “a insegurança e o excesso de normas oficiais” alimentaram o desejo de partir.
Custa-lhes romper laços. Desde a década de 70, instalou-se, na comunidade, o sentimento de que a vida deve repartir-se entre os dois países. Vingou a ideia “de que o ramo comercial desenvolvido não alcançaria os mesmos lucros em Portugal nem cobriria, com a mesma rapidez, os gastos e o conforto a que a família está habituada”, percebeu António de Abreu Xavier há mais de dez anos, ao fazer um doutoramento na Universidade Central da Venezuela.
No livro Con Portugal en La Maleta (editoral Alfa/2007), aponta outras razões para ficar: “Apesar da casa e de outros pequenos investimentos, o emigrante abandonou o seu esforço para fazer um lugar permanente na sua terra natal. Nela são doutores ocasionais, mimados enquanto estiverem na emigração, tenham dinheiro e façam turismo em Portugal”. Voltar seria “perder esse estatuto”. No lado oposto a esse, o investigador colocava os que não queriam regressar por não terem meios: “Um reinício em Portugal é visto por eles como uma coisa vergonhosa onde se manifesta o velho cliché salazarista: um emigrante é bom cidadão se tem êxito e manda remessas para a pátria.”
Tranquilidade e segurança
Nos últimos anos, o país mergulhou numa crise. A liberdade de escolha encolheu. O designer gráfico Renato dos Santos Beja, de 27 anos, veio há dois anos e meio para Portugal e os pais ficaram em Caracas. “Querem vir, mas têm a vida deles lá. Têm a casa, o negócio, o carro. Ninguém quer comprar. Ninguém quer investir naquele país neste momento.”
“Não é fácil” ganhar o suficiente para pagar as contas e fazer uma vida independente em Coimbra. Renato trabalhou seis meses como servente de construção civil antes de conseguir abrir caminho na sua área e é precário o trabalho que agora vai fazendo. O que o atrai em Portugal não é a possibilidade de ganhar dinheiro, “é a tranquilidade, a liberdade”.
Não lhe parece que haja dinheiro que pague a possibilidade de estar em casa sem temer assaltos, de sair à noite sem pensar em roubos e em sequestros, de ir ao supermercado ou à farmácia e encontrar tudo o que precisa. “A insegurança é um problema sério na Venezuela”, sublinha.
Não é invulgar, após um crime violento, como um sequestro, haver quem venda tudo o que consegue e se meta num avião. Há histórias de gente que não se adaptou a Portugal, voltou para trás, teve de tornar a comprar casa, móveis, electrodomésticos, talheres, toalhas.
Os sogros de Nelly Lago venderam tudo e vieram para Portugal com o filho em Agosto de 2008. O rapaz foi lá casar-se com ela e ela viajou em Maio de 2009 com os documentos em ordem. “No princípio, foi complicado”, diz Nelly Lago ao telefone. Faltava-lhe a família. E custava-lhe suportar os rigores do Inverno.
Os sogros, que já estavam na faixa dos 50, não conseguiram integrar-se no mercado de trabalho. Tornaram à Venezuela. A rapariga, agora com 32 anos, sente-se bem em Santa Maria da Feira. Trabalha como manicura e o marido como pintor de automóveis. De vez em quando, juntam-se a amigos com a mesma origem e fazem arepas ou palenta crioula, duas grandes expressões da culinária venezuelana.
É na Madeira, local de origem da maior parte dos portugueses residentes da Venezuela, que tal presença tem visibilidade. Vê-se nas caixas dos supermercados, nas lojas dos centros comerciais, nos cabeleireiros, nos cafés, nos corredores da universidade pública. Não só no sotaque de quem serve ou é servido, também na música ambiente, nos produtos arrumados nas prateleiras.
Esperança
Parte da família de Dinarte Pestana de Abreu é originária da Madeira. Ele seguiu a mãe e a irmã, Liliana, há nove anos a viver na Grande Lisboa. Liliana veio grávida, com um filho pequeno ao colo. A rapariga, de 28 anos, trabalha como assistente dentária, gere a página de Facebook Venezuelanos em Portugal e faz parte da associação Venexos, que está a angariar medicamentos para enviar para a Venezuela. Falar de crise em Portugal até lhe parece mal quando pensa na dimensão que a palavra crise assume no país natal. Todos os dias, diz ela, recebe mensagens de pessoas que querem saber o que devem fazer para vir.
O secretário de Estado das Comunidades, José Luís Carneiro, visitou o país no princípio deste mês, contactou com vários membros da comunidade e não ouviu apenas falar no elevado preço das viagens aéreas entre Lisboa e Caracas e na falta de voos directos para o Porto e para o Funchal. “Manifestaram preocupações relacionadas com o futuro do país, mas também fizeram votos de esperança”, esclarece numa entrevista por email. “Encontrei muita esperança de que a Venezuela consiga resolver os seus problemas institucionais, garantindo condições de vida aceitáveis para os muitos portugueses que lá escolheram viver."
Dinarte Pestana de Abreu não diz que não volta, se o país melhorar. A sua prioridade, porém, é garantir a segurança e o bem-estar da filha e do filho. Na sexta-feira já foi ao banco ver a possibilidade de obter um empréstimo para associar à poupança e montar um negócio para poder trabalhar e ganhar para viver.