Como a Agência para a Investigação do Cancro da OMS confunde os consumidores
O trabalho de pintor causa cancro, utilizar um telemóvel possivelmente também o causa e trabalhar por turnos é “provavelmente cancerígeno”. Há quatro décadas que a Organização Mundial de Saúde avalia substâncias e actividades para as catalogar enquanto “perigo”. Cientistas discordam.
Graças aos cientistas que trabalham sob os auspícios da Organização Mundial da Saúde (OMS), podemos ter bastante certeza de que a nossa escova de dentes não nos vai causar cancro. Ao longo de quatro décadas, a agência de investigação da OMS avaliou 989 substâncias e actividades, desde o arsénico aos produtos utilizados em cabeleireiro, e descobriu que apenas uma delas “provavelmente” não causa cancro nos seres humanos. Trata-se de um produto de “nylon” usado em calças elásticas e pêlos de escovas de dentes.
Todas as outras 988 substâncias apresentam algum nível de risco ou exigem mais estudos, de acordo com a Agência Internacional para a Investigação do Cancro [sigla em inglês IARC], que é uma das secções da OMS. Algumas coisas presentes na principal categoria de cancerígenos da IARC são obviamente muito prejudiciais, como o plutónio, o gás-mostarda e o tabaco. Outras são mais surpreendentes: também classificados como “Cancerígenos de Grupo 1” estão o pó de madeira e peixe salgado chinês.
A IARC afirma que o trabalho de pintor causa cancro, utilizar um telemóvel possivelmente causa, e trabalhar por turnos, como os pilotos de avião ou os enfermeiros, por exemplo, é “provavelmente cancerígeno”. Em Outubro de 2015, colocou as carnes processadas na sua primeira categoria de cancerígenos conhecidos, juntamente com o plutónio.
Estas descobertas causaram consternação, principalmente entre os leigos perplexos com o significado dos “rankings” da IARC.
Enquanto uma autoridade mundial no campo do cancro – uma doença que mata mais de oito milhões de pessoas por ano a nível global, com mais de 14 milhões de casos a surgir anualmente -, a IARC tem uma enorme influência e é muito respeitada, mesmo entre aqueles que a criticam. Mas os especialistas do mundo académico, da indústria e da saúde pública afirmam que a IARC confunde o público e os legisladores. Alguns críticos dizem que a forma como a IARC define e comunica quais as substâncias que são cancerígenas apresenta muitas falhas e precisa de ser alterada.
Mesmo a OMS, que supervisiona a IARC, foi apanhada de surpresa quando a agência anunciou que as carnes vermelhas e processadas deveriam ser classificadas, respectivamente, como cancerígenos prováveis e confirmados. O porta-voz oficial da OMS, Gregory Hartl, emitiu um comunicado onde dizia que a sede da OMS em Genebra (Suíça) tinha sido inundada com perguntas e pedidos de esclarecimento. A decisão da IARC não significava que as pessoas deviam deixar de comer carne vermelha, explicou.
Questionado acerca da relação entre a IARC e a OMS, Hartl disse à agência Reuters: “A OMS trabalha de muito perto e continuamente com a IARC no sentido de melhorar a forma como os dois organismos colaboram e comunicam na descoberta de riscos potenciais e efectivos para o público.”
Em causa estão decisões que podem afectar a vida de milhões de pessoas e as actividades económicas de Estados e empresas multinacionais. As directivas da IARC afectam muitas coisas, como se determinados produtos químicos são licenciados para uso na indústria ou se os consumidores escolhem ou rejeitam certos produtos ou estilos de vida.
Mas os seus métodos não são bem entendidos e não ajudam muito o público, isto de acordo com Bob Tarone, um especialista em estatística que trabalhou no Instituto Nacional de Cancro dos Estados Unidos e agora é director de bioestatísticas no Instituto Internacional de Epidemiologia. Eis o que ele diz acerca da maneira como a IARC funciona: “Não é positivo para a ciência, não é positivo para as agências reguladoras. E para as pessoas? Bem, estão apenas a ser confundidas.”
Paolo Boffetta trabalhou na IARC durante 19 anos, subindo na hierarquia até se tornar director da equipa de genética e epidemiologia, e descreve-se como sendo “ainda um forte apoiante” da agência. No entanto, Boffetta, actualmente na Faculdade de Medicina Mount Sinai, nos Estados Unidos, avança também que à abordagem da IARC por vezes falta “rigor científico”, pois as suas decisões podem envolver especialistas que analisam as suas próprias investigações ou as dos seus colegas próximos.
Algumas instituições têm também entrado em choque com a IARC. A agência está actualmente envolvida num aceso diferendo com a Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar (AESA) acerca do glifosato, um ingrediente de pesticidas largamente utilizados. A IARC afirma que o glifosato é “provavelmente cancerígeno”. A AESA diz que não é. A disputa tem levantado preocupações acerca de potenciais conflitos de interesses na IARC, envolvendo um consultor da agência que está estreitamente ligado ao Enviromental Defense Fund, um grupo de pressão norte-americano que se opõe à utilização de pesticidas.
Face a estas críticas, a IARC defende vigorosamente os seus métodos e objectivos. “Este é realmente o processo mais adequado”, declarou à Reuters Kurt Straif, o director do programa de classificação da IARC quando inquirido acerca da forma como a sua agência avalia potenciais causas de cancro.
O director da IARC, Chris Wild, tem também defendido a agência face a críticas em jornais científicos. Numa carta a um desses jornais, escreveu que os cientistas envolvidos nas decisões de classificação “são movidos por um desejo de melhorar a saúde pública identificando as causas do cancro nos seres humanos e assim contribuindo para a prevenção da doença”.
Richard Sullivan, professor de políticas para o cancro e saúde global no King’s College de Londres, afirma que qualquer confusão se deve a uma incompreensão generalizada acerca do papel da IARC.
“A IARC existe apenas para a parte científica. E a parte científica está absolutamente perfeita”, disse à Reuters. “Mas existe um desfasamento entre a ciência pura e a comunicação das políticas de saúde pública. É aí que surgem os problemas.”
Desde o início, a IARC tem sido um compromisso. Nascida de uma iniciativa francesa, foi originalmente pensada como uma agência independente com um imenso orçamento. Acabou como uma parte semiautónoma da OMS e com fundos modestos. A IARC, sedeada em Lyon (França), teve receitas de 30 milhões de euros em 2014, enquanto a organização sem fins lucrativos britânica Cancer Research UK recebeu cerca de 875 milhões de dólares, e o Instituto Nacional de Cancro, órgão estatal dos Estados Unidos, teve um orçamento de 4,9 biliões de dólares em 2014.
Apesar dos seus limitados recursos financeiros, a IARC foi uma pioneira e afirmou-se como uma autoridade líder a nível mundial. As suas conclusões acerca de algo causar ou não cancro captaram a atenção dos políticos e do público em geral.
Para alcançar as suas decisões, a IARC reúne grupos de especialistas que examinam as provas científicas existentes e depois colocam a substância ou actividade em uma de cinco categorias: cancerígena para os seres humanos; provavelmente cancerígena; possivelmente cancerígena; não classificável como cancerígena; e provavelmente não cancerígena. Estes relatórios são conhecidos como “monografias”.
O público por vezes não compreende o que a IARC quer dizer com estas classificações. A agência explica que determina o “perigo” – o peso das provas de uma substância ou actividade poder de alguma forma causar cancro. Não leva em linha de conta os normais níveis de exposição ou consumo por parte dos seres humanos. Ou seja, não está a medir o “risco” ou a probabilidade de uma pessoa apanhar cancro com qualquer coisa.
A IARC não dá opinião acerca dos níveis relativos de risco de apanhar cancro devido a, por exemplo, plutónio ou álcool; o que diz é que existem provas evidentes de que ambos podem causar cancro. Por isso, coloca ambas as substâncias na sua categoria mais elevada de ser cancerígeno.
Geoffrey Kabat, epidemiologista de cancro na Faculdade de Medicina Albert Einstein (em Nova Iorque) que recentemente criticou publicamente a IARC, opina que estas classificações causam “danos” ao público.
“O que o público quer saber é ‘Quais são os agentes no nosso meio ambiente que é provável que tenham efeitos palpáveis na nossa saúde?’, e não exposições teóricas que poderão, em algumas condições artificiais, ter algum possível efeito”, opina Kabat, que é autor do livro Hyping Health Risks.
Os riscos de incompreensão pública ficaram evidentes na reacção de alguns meios de comunicação social ao anúncio da IARC sobre as carnes vermelhas e processadas. O “Huffington Post” escreveu: “A carne é o novo tabaco”. O britânico “Daily Mail” escreveu que os “chefes da saúde” tinham “posto a carne processada ao mesmo nível que os cigarros”.
Tais interpretações são enganosas, segundo o ponto de vista da IARC. Straif declarou à Reuters que a culpa de quaisquer confusões pertence à indústria, aos grupos de activistas e aos meios de comunicação social.
“Há pessoas com interesses financeiros em vários sectores que querem que isso pareça ridículo. Existem grupos de activistas que querem poder dizer ‘Isto agora foi declarado pela IARC como cancerígeno e por isso precisamos de tomar todas as medidas necessárias para o combater’. E depois há ainda uma outra dimensão – os meios de comunicação social, que têm os seus próprios interesses em torná-lo sensacionalista.”
Straif defendeu a decisão de colocar as carnes processadas na mesma categoria de risco que o plutónio, afirmando que “ambas estas coisas mostram provas evidentes que de são cancerígenas para os seres humanos”.
“Ingénua, se não mesmo anticientífica"
Alguns críticos proclamam que os problemas com as monografias da IARC começam muito antes de elas se tornarem manchetes. As suas preocupações centram-se na composição dos “grupos de trabalho especialistas” que decidem em qual das cinco categorias da IARC uma substância ou actividade deve ser colocada. Entre estes especialistas estão por vezes pessoas que passaram anos a publicar estudos sobre se a referida substância ou actividade sob escrutínio podia causar cancro. Eles podem integrar os grupos de trabalho da IARC que revêem as suas próprias pesquisas e as de colegas próximos.
Entre 2012 e 2015, por exemplo, a IARC publicou ou iniciou 18 monografias envolvendo 314 cientistas. Uma análise da Reuters descobriu que pelo menos 61 desses cientistas integraram grupos de trabalho de monografias que abordaram as pesquisas científicas desses mesmos investigadores. Esta análise não incluiu o número de cientistas que integraram grupos de trabalho que analisaram as pesquisas de colegas próximos.
Em cartas, comentários e artigos publicados em revistas científicas, Bob Tarone, do Instituto Internacional de Epidemiologia, e outros cientistas têm questionado se tais pessoas “serão os melhores juízes da validade e da correcção metodológica do seu próprio trabalho e de trabalhos de colegas próximos”.
Kurt Straif, da IARC, afirma que os grupos de trabalho da agência incluem “os melhores especialistas a nível mundial”, que de forma crítica revêem as provas científicas e não são influenciados por descobertas anteriores do seu próprio trabalho, ou do trabalho de colegas próximos. “A IARC acredita profundamente, e tem boas razões para isso, que aqueles que sabem mais sobre determinadas exposições são aqueles que têm trabalhado nessas mesmas exposições”, afirma.
Straif avança também que as regras da IARC asseguram que nenhum “autor ou colega associado” pode avaliar directamente um estudo que tenha publicado. E a neutralidade é assegurada, explica, por as discussões envolverem entre vinte e trinta pessoas num ambiente em que “qualquer tipo defesa de causa própria (…) não é tolerado”.
Tarone considera a presunção da IARC de que todos os especialistas são isentos e independentes como “ingénua, se não mesmo anticientífica”. Disse à Reuters: “É absurdo afirmar que não existem questões de favorecimentos relacionados com o próprio interesse, a reputação ou a carreira. Não tem nada a ver com maus motivos, é apenas a natureza humana.”
Tarone e outros críticos dizem que a IARC é inconsistente na resolução de potenciais conflitos de interesses, e citam como exemplo um estudo sobre radiações como as que são emitidas pelos telemóveis. Em Junho de 2011, a IARC concluiu que tais radiações são “possivelmente cancerígenas”. Essa classificação colocou o uso de telemóveis na mesma categoria que o chumbo e o clorofórmio.
Anders Ahlbom, professor no Instituto Karolinska na Suécia, foi inicialmente convidado para presidir ao grupo de trabalho sobre frequências de rádio eletromagnéticas, em Maio de 2011. No entanto, Ahlbom, que pensa que existem poucas provas que sugiram que os telemóveis causem cancro, foi convidado a ceder o lugar cerca de uma semana antes da data marcada para começarem as reuniões, após ter comunicado à IARC que tinha sido contactado por um jornalista. O jornalista tinha-o questionado acerca do facto de pertencer à administração da firma de consultoria do seu irmão, que auxiliava clientes a fazerem lobby em assuntos de telecomunicações.
A IARC decidiu que Ahlbom tinha um aparente conflito de interesses. Ahlbom aceitou esta decisão, apesar de declarar que não havia conflito, dado não ter interesses financeiros na companhia do seu irmão. Ahlbom diz ainda que a sua saída alterou o equilíbrio no grupo de trabalho da IARC que, declararam ele e outros cinco cientistas, incluía investigadores que já consideravam que os telemóveis aumentavam o risco de contrair tumores cerebrais.
“Parece que a IARC trata os conflitos de interesses de forma diferente dependendo da pessoa em questão e de que ‘lado’ se assume que ela representa”, explicou Ahlbom à Reuters.
Kurt Straif mantém que a IARC “leva muito a sério todos os conflitos de interesses, independentemente dos indivíduos ou organizações envolvidos”, e que a saída de Ahlbom do grupo de trabalho não deixou este desequilibrado.
“É difícil perceber como é que um grupo de trabalho de 32 especialistas de renome internacional ficaria de repente desequilibrado devido a apenas um especialista ter tido um conflito de interesses.”
Vermelhas de raiva
Nas reuniões dos grupos de trabalho da IARC, é permitida a presença de observadores convidados que apresentem “credenciais científicas relevantes”, mas eles têm de assinar um acordo de confidencialidade e não podem comentar no exterior o que se passa na sala. Straif diz que isto serve para assegurar que os cientistas podem falar à vontade, sem receio de que as suas discordâncias ou discussões sejam reveladas para fora sem o seu consentimento.
Um observador, especialista em alimentação e produção animal que esteve presente no grupo de trabalho sobre as carnes vermelhas e processadas em 2015, falou à Reuters sob anonimato, e assegura que o painel de especialistas que estava a analisar as provas científicas parecia já ter em mente um determinado resultado.
Na sua avaliação das carnes, a IARC foi para além da sua usual determinação apenas de perigos e não de riscos. Forneceu avisos específicos acerca dos riscos de comer produtos com carnes vermelhas e processadas.
A IARC escreveu, por exemplo, que por cada 50 gramas de carne processada ingerida diariamente, o risco de uma pessoa contrair cancro do cólon aumenta 18 por cento. O observador que falou à Reuters disse que parece que estes dados “apareceram do nada, da noite para o dia”.
Continua o observador: “Esperava que os dados científicos fossem avaliados com um maior nível de rigor. Mas francamente, ao fim de 10 dias, e de um ponto de vista científico, fiquei realmente bastante chocado.”
Kurt Straif responde que os valores provêm de “uma análise combinada” de relatórios científicos sobre o tema, e foram divulgados pela IARC porque havia suficientes provas em estudos epidemiológicos em humanos para os especialistas do grupo de trabalho confiarem neles.
Straif disse à Reuters que alguns observadores podem não ter assistido a parte das discussões do grupo de trabalho: “Trabalhámos muito, até de madrugada e todo o fim-de-semana, por isso não tenho a certeza de que os observadores lá tenham estado o tempo todo.”
Num email mais tarde enviado à Reuters, afirmou que as estimativas de riscos e respectivos estudos científicos fizeram parte das discussões da monografia desde “os primeiros rascunhos e ao longo de todas as revisões”. Acrescentou ainda: “É muito difícil perceber como é que algum participante conseguiria não assistir a esta discussão.”
Embora não discorde da opinião da IARC de que a carne é cancerígena, a sede da OMS emitiu uma série de “tweets” para contextualizar a questão. A OMS assegurou que “os riscos da carne processada para a saúde são muito diferentes dos dos cigarros e do amianto” e que “a carne fornece uma quantidade de nutrientes essenciais e, quando consumida com moderação, tem lugar numa dieta saudável”.
A polémica levantou questões na sede da OMS acerca do controlo da organização sobre a IARC. “Fala-se agora por aqui sobre a necessidade de controlar a IARC”, contou um funcionário da OMS colocado em Genebra.
Charles Clift, especialista de saúde pública global no Centro de Segurança de Saúde Global em Chatham House [Instituto de Assuntos Internacionais do Reino Unido], crê que a OMS devia ter tido um papel mais activo na apresentação das conclusões da IARC sobre a carne vermelha e processada.
“A OMS devia estar presente para fornecer uma orientação oficial”, diz Clift, “e não apenas apoiar coisas que podem ser mal interpretadas – quer pela IARC ou por quem quer que seja.”
O porta-voz da OMS, Gregory Hartl, confirmou à Reuters que a IARC é uma agência “funcionalmente independente” e que quando a IARC assinala perigos cancerígenos, “a OMS define ou redefine os níveis de risco associados a esses perigos. Baseada na avaliação de riscos, a OMS reafirma orientações existentes ou emite novas orientações destinadas a salvaguardar a saúde pública”.
Kurt Straif, da IARC, termina: “Estou muito satisfeito com a maneira como fazemos as coisas neste momento. Estamos realmente na vanguarda da comunidade científica.”