O que é feito da América pós-racial?

Louvado por alguns pelos avanços em questões raciais, a presidência de Obama também foi muito criticada nesse campo. Muitos dos seus apoiantes acham que ele foi ridicularizado a níveis nunca antes vistos.

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No que toca à raça, o significado histórico de Obama está assegurado; apenas o seu impacto e a sua herança estão abertos ao debate

A histórica vitória de Obama nas eleições presidenciais de 2008 e a presidência que se seguiu alteraram profundamente a face da democracia norte-americana, transformando a limitada visão dos fundadores da nação face à política e à cidadania em algo mais alargado e mais elegante. De súbito, a presidência dos Estados Unidos pareceu muito diferente e por um momento a América também se sentiu diferente.

A vitória de Obama ajudou a concretizar uma das grandes ambições do movimento pelos direitos civis, ao mostrar a capacidade de americanos negros extraordinariamente talentosos para liderar e serem excelentes em todas as facetas da vida norte-americana. A primeira-dama Michelle Obama e as filhas Sasha e Malia alargaram esta reformulação da imagem da vida dos negros norte-americanos, dando uma visão evidente de uma família afro-americana saudável, carinhosa e próspera que desafia os estereótipos racistas ainda generalizados.   

Mas houve quem interpretasse o triunfo como muito mais do que isso.

A sua vitória foi considerada como sendo a chegada de uma América “pós-racial”, na qual o pecado original de escravatura racial da nação e a discriminação das leis “Jim Crow” nos estados sulistas após a Guerra Civil tinha sido finalmente redimido pela eleição de um negro para comandante supremo. Durante algum tempo, o país aconchegou-se numa ressaca racialmente harmoniosa.

Um presidente negro iria influenciar gerações de crianças, incitando-os a acolher uma nova visão de cidadania americana. A “Coligação Obama” entre votantes afro-americanos, brancos, latinos, asiáticos e nativos americanos tinha ajudado a lançar uma nova era em que o racismo institucional e a desigualdade generalizada iriam desaparecer à medida que os americanos abraçavam a promessa multicultural da nação.

Sete anos depois, este imenso optimismo parece ter desaparecido. Quase imediatamente, a presidência de Obama originou fúrias raciais que se têm multiplicado com o passar do tempo. Desde os ataques tingidos de racismo do Tea Party à agenda política do Presidente até às fantasias mais abertamente racistas do movimento “birther” [de nascimento] assegurando que Obama nem sequer era cidadão dos Estados Unidos, o clima racial a nível nacional ficou mais instável, e não menos.

Se o conflito racial, na forma dos “birthers”, dos “Tea Partyers” e dos ressentimentos permanentes, implicitamente manchou o primeiro mandato de Obama, depois irrompeu em guerra aberta durante a maior parte do seu segundo mandato. A decisão do Supremo Tribunal em 2013 no caso Shelby vs. Holder afectou a implantação do Voting Rights Act [lei de 1965 que impede a discriminação racial em votações], colocando em questão a conquista mais simbólica do período heróico do movimento dos direitos civis.

A partir de 2012, com a morte a tiro do adolescente negro Trayvon Martin na Florida, a nação reabriu um intenso debate sobre o contínuo horror do racismo institucional evidenciado numa série de muito publicitadas mortes de homens, mulheres, rapazes e raparigas negros às mãos das forças policiais.

As manifestações, os protestos e o ultraje sentido por uma nova geração de activistas dos direitos civis tornou o hashtag #BlackLivesMatter um grito de alerta e congregação para um novo movimento de justiça social. Activistas do Black Lives Matter têm argumentado veementemente que o sistema de justiça criminal dos Estados Unidos representa uma via rápida para a repressão racial, marcada por uma guerra às drogas que escolhe, pune e encarcera jovens negros e negras de forma desproporcionada. No seu livro best seller The New Jim Crow, a professora de Direito Michelle Alexander argumenta que a prisão em massa representa um sistema de castas que espelha a generalizada e estrutural desigualdade de um sistema de apartheid racial que ainda persiste.

O cuidado de Obama no seu primeiro mandato no que toca a questões raciais foi rasgado pelas suas controversas declarações de que a polícia tinha “agido de forma estúpida” quando da prisão, em 2009, por erro na identificação, de Henry Louis Gates Jr., proeminente professor de Estudos Afro-Americanos na Universidade de Harvard. Quatro anos mais tarde, entrou de novo em polémica ao afirmar que, se tivesse tido um filho, “ele seria parecido com Trayvon”.

No rescaldo dos distúrbios raciais em Ferguson (estado do Missouri) e em Baltimore e do massacre por motivos raciais em Charleston, na Carolina do Sul, Obama foi mais longe. Em 2015, encontrou a sua voz e o seu tom, numa série de empolgantes discursos em Selma (estado do Alabama) e Charleston, onde reconheceu a longa e contínua história de injustiça racial dos Estados Unidos.

A nível de políticas e medidas, Obama lançou uma iniciativa de solidariedade privada, My Brother’s Keeper [O Guardião do Meu Irmão], destinada a auxiliar jovens negros com baixos rendimentos, e tornou-se o primeiro Presidente a visitar uma prisão federal, fazendo um apelo a reformas no sistema prisional que antecipava os esforços da sua administração para libertar presos em estabelecimentos federais com pesadas penas relativas a acusações de pequenos crimes relacionados com drogas.

Apesar destes esforços, muitos dos apoiantes afro-americanos de Obama expressaram um profundo desapontamento com a recusa do Presidente em implementar à força políticas de justiça racial e económica que favorecessem o seu mais fiel eleitorado. 

Nesta perspectiva, a presidência de Obama tem-se revelado uma partida bem cruel aos membros da comunidade afro-americana que, apesar de terem providenciado os votos indispensáveis, apoio crucial e uma lealdade inquebrantável, se encontram agora em larga medida afastados da recuperação económica da nação após a Grande Recessão. Alguns críticos sugerem que os negros terão trocado exigências políticas efectivas pela vitória emocional e largamente simbólica de terem um presidente negro e uma primeira-família negra na Casa Branca durante oito anos.

Outros consideram esta avaliação como demasiado severa, notando que as mais impressionantes conquistas de Obama tiveram pouca divulgação por parte da Casa Branca ou reconhecimento por parte dos meios de comunicação social mais importantes.  

A História irá decidir sobre a verdadeira medida da importância, sucessos, falhanços e insuficiências da presidência de Obama. No que toca à raça, o significado histórico de Obama está assegurado; apenas o seu impacto e a sua herança estão abertos ao debate. Em retrospectiva, o peso de ter de alterar a torturada história racial norte-americana em apenas dois mandatos presidenciais de quatro anos cada mostrou ser uma tarefa impossível, mesmo que a sua promessa tenha ajudado a catapultar Obama para o mais importante cargo do país. 

A presidência de Obama desvalorizou aspectos importantes da luta pelos direitos civis, especialmente os ensinamentos do reverendo Martin Luther King Jr., que durante algum tempo serviram como a consciência de justiça racial para dois presidentes – John F. Kennedy e Lyndon B. Johnson. Muitos dos que esperavam que Obama pudesse ser capaz de desempenhar ambos os papéis – de Presidente e de defensor da justiça racial – ficaram desapontados. Mas existe uma lucidez reveladora nesse desapontamento, provando que Obama não é King ou Frederick Douglass, mas sim Abraham Lincoln, Kennedy e Johnson. Mesmo um presidente negro, e talvez mesmo especialmente um presidente negro, não conseguiria desfazer este nó górdio do racismo que existe na comunidade política. Mas, ao reconhecermos as limitações da presidência de Obama na cura das divisões raciais e as insuficiências das suas políticas na melhorias da América negra, poderemos alcançar uma nova maturidade política que reconheça que uma pessoa apenas – por mais poderosa que seja – não consegue sozinha rectificar estruturas de desigualdade construídas ao longo de séculos.

Peniel Joseph é professor de História e director do Centro de Estudos de Raça e Democracia e da Faculdade de Administração Pública da Universidade do Texas