Relação de Lisboa ressuscita delito de opinião
Manuel Alegre não é um traidor à Pátria.
Se até ao passado dia 12 de Maio, estivesse com um grupo de amigos em que um deles defendia que o Salazar foi um assassino e o culpado de todo o nosso atraso, e um outro o considerasse como o salvador da Pátria e o obreiro da pacificação da família portuguesa após a hecatombe que foi a 1.ª República, e quisesse saber quem tinha razão, não tinha forma de o fazer.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Se até ao passado dia 12 de Maio, estivesse com um grupo de amigos em que um deles defendia que o Salazar foi um assassino e o culpado de todo o nosso atraso, e um outro o considerasse como o salvador da Pátria e o obreiro da pacificação da família portuguesa após a hecatombe que foi a 1.ª República, e quisesse saber quem tinha razão, não tinha forma de o fazer.
Mas a partir desse dia, véspera do 13 de Maio, a solução para o seu problema está muito facilitada. Agora já se sabe a que porta se há-de bater para acabar com tais dúvidas, sempre incómodas: dirija-se ao Tribunal da Relação de Lisboa, ou melhor, aos juízes desembargadores Antero Luís e João Abrunhosa.
Nesse fatídico – ou luminoso – dia, os referidos juízes desembargadores produziram um notável – ou sinistro – acórdão em que condenaram o tenente-coronel piloto-aviador João José Brandão Ferreira numa pena de multa de €1.800 acrescida de uma indemnização de € 25 000 a pagar a Manuel Alegre por aquele ter escrito num blogue que o militante socialista era um traidor à Pátria, referindo diversos factos que fundamentavam a sua opinião. Para este militar saudosista do antigo regime – um fascista para muitos e um português de gema para outros – o que estava em causa era a actuação do cidadão Manuel Alegre como membro da Frente Patriótica da Libertação Nacional aos microfones da “Rádio Voz da Liberdade” em Argel. Aí teria dado apoio aos movimentos/partidos políticos que combatiam a presença portuguesa no nosso Ultramar ou nas terras deles, de armas na mão, acolhendo e dando a voz a membros destacados desses movimentos/partidos, incitando à deserção das tropas portuguesas e ao não cumprimento do dever militar, regozijando-se com eventuais/pretensos sucessos do inimigo, difundindo notícias mentirosas, tentando abalar o moral dos combatentes portugueses e apoiando atos de sabotagem contra o esforço de guerra português.
Tudo factos que no essencial, para um cidadão comum, pareceriam ser absolutamente razoáveis e lógicos para caracterizar o trabalho de Manuel Alegre/Rádio Voz de Argel. Ou será que Manuel Alegre era contra a guerra colonial e, ao mesmo tempo, desejava e se regozijava que as tropas portuguesas tivessem os maiores êxitos? Ou desejava e regozijava-se com as derrotas dos guerrilheiros/terroristas do MPLA ou do PAIGC? Ou será que Manuel Alegre alguma vez condenou as bombas colocadas pelas Brigadas Revolucionárias de Isabel do Carmo e Carlos Antunes na sua actividade de sabotagem de retaguarda contra objectivos militares portugueses, para favorecer a luta dos movimentos de libertação das colónias?
Isabel do Carmo, por exemplo, numa entrevista ao jornal i de 17 de Setembro de 2013, à pergunta: Sente-se injustiçada no rótulo de bombista?, respondeu naturalmente: A história de eu ser bombista veio sempre da direita ou da extrema-direita. Não me afecta nada.
Mas, Manuel Alegre, na altura em que foram publicados os textos em causa no blogue do tenente-coronel Brandão Ferreira – de direita ou extrema-direita –, era candidato à Presidência da República e, assim, sentiu-se profundamente ofendido e desconsiderado e queixou-se criminalmente contra o militar.
Realizado o julgamento, em que foram ouvidas testemunhas de esquerda e de direita, cada uma defendendo a sua dama, o tribunal de 1.ª instância, absolveu – e bem – Brandão Ferreira por considerar que se estava no domínio da liberdade de opinião e que as acusações de traição à Pátria que fizera, resultavam do seu convencimento que a intervenção de Manuel Alegre quando em Argel, enquanto membro da Frente Patriótica de Libertação Nacional e ao microfone da Rádio de Argel e na do programa “Voz da Liberdade”, alinhava numa guerra psicológica contra Portugal, os interesses portugueses, as populações portuguesas das ex-colónias e as tropas portuguesas que nas mesmas se encontravam a combater.
Recorreu Manuel Alegre e encontrou na Relação de Lisboa quem considerasse que o tenente-coronel Brandão Ferreira não poderia ter tal convencimento se se tivesse informado e, pura e simplesmente, apagaram essa convicção do processo. Parece que, afinal, Brandão Ferreira, tinha de ter uma visão de esquerda da história de Portugal e Manuel Alegre, afinal, era de direita!
E os mencionados desembargadores, lamentavelmente, dando um enorme valor à pretensa honra do socialista e desprezando a liberdade de expressão do reaccionário, condenaram o militar, já que imputar a uma figura pública, candidato a Presidente da República, o crime de traição à Pátria é ofensivo da honra e consideração do visado, atingindo a sua dignidade pessoal e o núcleo essencial das suas qualidades morais e éticas.
Mas, para além do absurdo da decisão e da fundamentação, o mais espantoso deste processo é o facto de nele constar, 15 meses antes, uma outra decisão do mesmo Tribunal da Relação mas da autoria de outros dois juízes desembargadores, confirmando a absolvição do Tenente Coronel Brandão Ferreira decretada pela 1.ª instância. Difícil de perceber? Muito.