Eleições nos EUA: a política refém do espectáculo e do mercado
A 8 de Novembro de 2016 saberemos onde esta lógica absurda, do espectáculo e do mercado, que se apoderou da política, irá levar os EUA.
1. Há cerca de um ano atrás, quando começou a campanha para as eleições presidenciais nos EUA, com a disputa das primárias, o jornal Huffington Post fazia a seguinte advertência aos leitores: “Depois de assistirmos e ouvirmos Donald Trump desde que este anunciou sua candidatura a Presidente, decidimos que não vamos efectuar a cobertura da campanha de Donald Trump como parte da cobertura política do Huffington Post. Em vez disso, vamos cobrir a sua campanha como parte da nossa secção de Entretenimento. O motivo é simples: a campanha de Donald Trump é um espectáculo à parte. Não vamos morder o isco. Se está interessado no que este tem a dizer vai encontrá-lo ao lado das nossas histórias sobre as Kardashians e o The Bachelorette. (Ver “A Note About Our Coverage Of Donald Trump’s ‘Campaign’”, 17/07/2015).
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1. Há cerca de um ano atrás, quando começou a campanha para as eleições presidenciais nos EUA, com a disputa das primárias, o jornal Huffington Post fazia a seguinte advertência aos leitores: “Depois de assistirmos e ouvirmos Donald Trump desde que este anunciou sua candidatura a Presidente, decidimos que não vamos efectuar a cobertura da campanha de Donald Trump como parte da cobertura política do Huffington Post. Em vez disso, vamos cobrir a sua campanha como parte da nossa secção de Entretenimento. O motivo é simples: a campanha de Donald Trump é um espectáculo à parte. Não vamos morder o isco. Se está interessado no que este tem a dizer vai encontrá-lo ao lado das nossas histórias sobre as Kardashians e o The Bachelorette. (Ver “A Note About Our Coverage Of Donald Trump’s ‘Campaign’”, 17/07/2015).
2. Um “megalomaníaco adorável”. Foi assim que o jornalista e escritor norte-americano, Tom Wolfe, autor de livros mordazes sobre os hábitos sociais dos EUA, especialmente dos nova-iorquinos, qualificou Donald Trump. Numa entrevista à American Spectator (ver “Tom Wolfe’s View of Trump”, 30/03/2016), Tom Wolfe, que, tal como Donald Trump, vive em Nova Iorque, parecendo divertir-se bastante com a sua campanha eleitoral, comentou o seguinte: "Existe um grande sofrimento e desprezo das pessoas face ao governo e Donald Trump tira vantagem disso. Disse também uma quantidade de coisas que são politicamente incorrectas. Diz coisas como não queremos mais migrantes ilegais do México, não queremos mais migrantes de países islâmicos, e assim por diante, e uma quantidade de pessoas diz: "Ei, sim, finalmente, apareceu alguém que diz aquilo em que eu acredito."
3. Se Donald Trump fosse um personagem ficcional de uma obra de Tom Wolfe provavelmente seria uma outra versão do yuppie Sherman McCoy, o "senhor do universo" de A Fogueira das Vaidades (trad. port., Dom Quixote, 1992). Um milionário velho, com um gosto patológico pela provocação e exibição. Nessa obra de ficção literária, Tom Wolfe retratava os excessos do capitalismo financeiro de Wall Street, ocorridos durante os anos 1980. Tal como Donald Trump, Sherman McCoy, o executivo de Wall Street que fazia fortuna na especulação sobre títulos obrigacionistas — na época, Donald Trump fazia fortuna na especulação imobiliária —, tinha uma família White Anglo-Saxon Protestant (WASP). O personagem de ficção residia na elegante e caríssima Park Avenue de Nova Iorque. Donald Trump vive na também elegante e rica Quinta Avenida, onde construíu a Trump Tower nos anos 1980. Donald Trump é ainda o Sherman McCoy que não mostra a sua declaração de impostos. Se a hipótese colocada pela imprensa está certa, não o faz por evasão fiscal — para um offshore no Panamá ou noutro local acolhedor de fortunas —, mas porque o dinheiro que ganha anualmente não permitirá ter a fortuna de dez mil milhões de dólares que apregoa. Tal como para Sherman McCoy, no meio capitalista de milionários onde se move, a revelação de que tem uns milhões a menos seria uma humilhação.
4. Há mais coisas que poderiam fazer de Donald Trump um personagem da ficção sarcástica de Tom Wolfe, eventualmente apreciado também pelo próprio autor. No seu livro, "Hooking Up: Um Mundo Americano" (trad. port., Dom Quixote, 2002. Ver "Hooking Up: What Life Was Like at the Turn of the Second Millennium: An American's World" in The New York Times), uma colecção de ensaios escrita ao longo de vários anos, podemos ler várias tiradas cáusticas, que fazem o leitor sorrir. Uma é sobre o termo "classe trabalhadora", o qual teria caído em desuso nos EUA. Para Tom Wolfe o "proletariado" tinha-se tornado tão obsoleto, que só já era lembrado por velhos e amargos académicos marxistas. Outra tirada mordaz é sobre a acentuada diversidade da sociedade norte-americana. "Qualquer grupo étnico ou racial — qualquer, mesmo refugiados recentes de um país da América Latina —, poderia assumir o governo de qualquer cidade norte-americana, se tivessem os votos e um mínimo de organização." O tema é também caro a Donald Trump, pelos seus ataques à emigração hispânica / mexicana.
5. A elite capitalista de Silicon Valley na Califórnia, da costa Oeste dos EUA, foi igualmente alvo da observação perspicaz e do sarcasmo de Tom Wolfe, pelos hábitos sociais dos novos "senhores do universo”. Agora a riqueza não provém do capitalismo financeiro mas do eldorado da indústria electrónica e da Internet. Na sua descrição, em Los Angeles ou em Palo Alto, a sobreposição do espanhol ao inglêsconfundia qualquer nova-iorquino não familiarizado com a costa Oeste, ao ponto de o fazer sentir-se estrangeiro no seu próprio país. Para além dessa sensação desagradável, frequentar os locais da indústria high-tec com fato e gravata, tinha o risco de poder ser confundido com um porteiro. Tom Wolfe ironizava que aí só era expectável que pessoal de serviço de eras anteriores — porteiros, motoristas ou empregados de mesa —, pudessem vestir com elegância anacrónica. Também neste aspecto, Tom Wolfe ecoa um assunto sensível para a elite dos WASP, que é o crescente afastamento dos valores tradicionais e práticas culturais de matriz europeia e anglo-saxónica, da sociedade norte-americana.
6. Para além da crítica social, e da rivalidade entre as grandes cidades da costa Leste e Oeste, o sarcasmo de Tom Wolfe face aos hábitos da indústria high-tec tem o seu lado político mais sério. As grandes multinacionais das novas tecnologias de informação e comunicação, com o Facebook e o Google, estão actualmente entre os grandes financiadores da campanha do Partido Democrata e de Hillary Clinton. Esta, entre 1986 e 1992, foi directora da Wal-Mart — uma das maiores multinacionais do mundo, mas também considerada das mais agressivas face aos direitos dos trabalhadores —, o que lhe vale a desconfiança de parte do eleitorado. No Partido Democrata, apenas Bernie Sanders parece ter preocupações genuínas com a classe trabalhadora e estar menos dependente das multinacionais. (Ver Thomas Frank, Listen, Liberal: Or, What Ever Happened to the Party of the People?, Metropolitan Books, 2016) Quanto a Donald Trump, vende a falseada imagem de um self-made man, enraizada na ética-protestante dos EUA. Qualquer um, com trabalho árduo, se pode tornar milionário como ele.
7. The show must go on. As eleições primárias nos EUA estão a aproximar-se da fase final. Tudo parece encaminhar-se para que os candidatos escolhidos sejam Hillary Clinton, pelo Partido Democrata, e Donald Trump, pelo Partido Republicano. No país do capitalismo liberal e do show business, Donald Trump é a última fusão das duas tendências. Vende as suas ideias políticas aos eleitores, tal como vende os seus produtos aos consumidores. A isto chama-se marketing político. A palavra já denota a primazia do mercado sobre o político. Donald Trump — o “megalomaníaco adorável” ou detestável, consoante as perspectivas —, levou-a às últimas consequências. A estratégia que usa é similar à da publicidade que pretende deliberadamente chocar para vender. Mimetiza, numa versão de direita radical, as causas socialmente e politicamente fracturantes da esquerda radical. A 8 de Novembro de 2016 saberemos onde esta lógica absurda, do espectáculo e do mercado, que se apoderou da política, irá levar os EUA.
Investigador