Morreu Alexandre Astruc, o inventor da "câmara-esferográfica"

Pouco conhecido do grande público, o crítico e cineasta francês foi uma figura decisiva para o cinema moderno, tanto na teoria como na prática.

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Alexandre Astruc, que morreu na noite desta quarta-feira, aos 92 anos, podia não ser uma figura muito conhecida do grande público contemporâneo, mas a sua importância foi enorme para o lançamento daquilo a que chamamos o “cinema moderno”, quer numa perspectiva crítica quer numa perspectiva prática.

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Alexandre Astruc, que morreu na noite desta quarta-feira, aos 92 anos, podia não ser uma figura muito conhecida do grande público contemporâneo, mas a sua importância foi enorme para o lançamento daquilo a que chamamos o “cinema moderno”, quer numa perspectiva crítica quer numa perspectiva prática.

Foi dele um ensaio decisivo, e ainda hoje forçosamente referido quando se trata de indicar os textos fundamentais da teoria e da crítica cinematográficas: falamos de La Caméra-Stylo (“A Câmara-Esferográfica”, literalmente, mas assim perdendo o trocadilho com style, “estilo”), publicado em 1948 na revista L’Écran Français, uma das várias revistas francesas de cinema que “formaram” e anunciaram a geração dos Cahiers du Cinéma (fundados no princípio da década seguinte), geração que viria a dar origem à Nouvelle Vague e sobre a qual o texto de Astruc exerceu uma enorme influência.

Esteta e erudito, Astruc defendia nesse artigo, consistentemente, o famoso “primado da mise en scène” como essência do cinema, e a importância do “estilo”, não como um ornamento mas como uma espécie de “caligrafia” (donde, a “câmara-esferográfica”), prolongamento e manifestação de uma personalidade. “Pode-se imaginar um romance de Faulkner que não tenha sido escrito por Faulkner?”, perguntava Astruc, uma pergunta de retórica que continha a sua própria resposta e mais não fazia do que postular um cinema onde cada filme não pudesse – questão de “caligrafia” e personalidade – ser feito se não pelo seu autor. A mise en scène, para ele, era uma forma de superar os elementos concretos e ilustrativos e de chegar a uma “abstracção”, à formulação de um pensamento, e por isso Astruc, à época próximo dos existencialistas, sonhava com um cinema que fosse o equivalente “dos ensaios de Sartre ou Camus”.

Já nos Cahiers, que naturalmente lhe abriram as portas, Astruc publicou em 1952 um ensaio genial sobre Murnau (porventura a sua maior admiração: nos anos 60 realizou o episódio da série Cinéastes de Notre Temps dedicado ao autor de Nosferatu e Aurora), chamado O Fogo e o Gelo, que não só continua a ser um texto inevitável sobre o realizador alemão (“cada enquadramento de Murnau é a história de um assassínio”) como prolonga e precisa alguns dos temas de La Caméra-Stylo, nomeadamente a importância da entrada na “abstracção” – no pensamento, na expressão de uma personalidade individual – a partir da matéria concreta de que o cinema se faz.

Os “filhos de Astruc” foram toda uma geração de cineastas que se tornou muito mais conhecida do que ele, de François Truffaut a Eric Rohmer ou a Jean-Luc Godard. Mas Astruc foi também um cineasta notável, desde logo com Le Rideau Cramoisi, adaptação de Barbey d’Aurevilly, em 1952, que ganha em ser visto como uma adenda prática ao seu ensaio de 1948 e é um dos filmes precursores (e percursores, sem jogo de palavras), da Nouvelle Vague do fim dessa década. Como cineasta interessou-se pela literatura, filmou, nalgumas das suas obras mais notáveis, Maupassant (Une Vie, em 1958) e Flaubert (A Educação Sentimental, em 1962), filmes que, um tanto paradoxalmente, procuravam a modernidade dentro da narrativa clássica e era bem distintos dos caminhos mais conhecidos da Nouvelle Vague, então em plena pujança.


Cineastes, de notre temps: Alexandre Astruc por centrepompidou

Figura enorme e contraditória, que entrou mesmo em choque – esteticamente, chegou a definir-se como “reaccionário” – com a geração da Nouvelle Vague (um bom testemunho disso é o “duelo” com Jean Douchet no episódio dos Cinéastes de Notre Temps sobre Astruc), não deixou, em todos estes anos, de ser uma “eminência parda” da modernidade cinematográfica e do cinema do pós-guerra. Ainda no ano passado Noel Simsolo publicou um livro de entrevistas com ele, onde Astruc, mostrando que foi Astruc até ao fim da vida, comentava assim os seus próprios ziguezagues e contradições em termos de posicionamento político: “Não gosto de ver um artista ser rotulado de ‘esquerda’ ou de ‘direita’ porque tudo o que importa num autor é a sua capacidade de revelar uma verdade transcendente muito acima de características ideológicas."