Um dia o Governo irá acabar
O que não é normal é que haja quem queira impor as suas ideias e a sua ideologia como pensamento único.
Um destes dias, em conversa com um membro do Governo sobre a expectativa existente em relação à sobrevivência de um executivo que assenta em acordos que são inéditos, ouço-o dizer com a maior calma: “Um dia, este Governo vai acabar, todos os governos têm um fim.” O tom de evidência era absoluto. A expressão, com um leve esgar de sorriso, quase de provocação. Era propositado o ar de quem estava a dizer uma verdade de La Palice.
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Um destes dias, em conversa com um membro do Governo sobre a expectativa existente em relação à sobrevivência de um executivo que assenta em acordos que são inéditos, ouço-o dizer com a maior calma: “Um dia, este Governo vai acabar, todos os governos têm um fim.” O tom de evidência era absoluto. A expressão, com um leve esgar de sorriso, quase de provocação. Era propositado o ar de quem estava a dizer uma verdade de La Palice.
A frase encerra uma verdade lapidar. É evidente que o executivo liderado por António Costa um dia vai acabar. E não é possível prever quando. Nem se cai este ano, se para o próximo, se daqui a dois, porque a sua base de sustentação parlamentar falha. Ou se chega ao fim da legislatura e dá lugar a um novo ciclo eleitoral.
Contudo, a expectativa da iminência da queda do Governo existe desde antes dele tomar posse, precisamente devido ao ineditismo do tipo de acordos em que assenta e também por ter uma legitimidade parlamentar e constitucional, mas não eleitoral, já que o PS não foi o primeiro partido nas urnas. Acabe este Governo quando acabar, há um patamar novo que foi inaugurado no sistema político português. E isso é uma vitória de António Costa que ninguém pode ignorar.
Fruto das transformações que se vivem na Europa, a orientação político-ideológica da União Europeia deixou de ter como regra a coesão e a solidariedade dos países do Centro e do Norte para com os países do Sul e da periferia. Essa mudança de atitude tornou-se clara com a crise das dívidas soberanas e do euro. A consequência foi a deslocação do centro de gravidade do sistema político, com o crescendo de extremismos e de populismos, mas também com uma reorientação dos partidos tradicionais, nomeadamente os sociais-democratas e socialistas.
Em Portugal, esta deslocação do eixo do sistema político iniciou-se com a subida ao poder de Passos Coelho, em 2010, e foi expresso pelo seu projecto radical de liberalização da sociedade portuguesa que acabou por absorver e sintetizar a política de austeridade imposta pela intervenção pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. A viragem à direita levada a cabo pela coligação de Governo PSD-CDS, teve agora o seu corolário lógico na possibilidade de assinatura por António Costa de acordos com o PCP e com o BE, rompendo uma estigmatização ideológica mútua na esquerda portuguesa. (ver comentário de 31/10/2015)
Seja qual for o destino do Governo de António Costa, mesmo que o resultado seja a falência do projecto de mudança de orientação de políticas e de assunção de outro tipo de preocupações sociais. O facto é que há algo de novo que Costa trouxe ao por fim ao determinismo que ditava que os partidos que ascendiam ao Governo eram apenas o PS, o PSD e o PSD, naquilo que se convencionou chamar de “arco da governação”.
Daí que não haja razão para o espanto e a aparente indignação de alguma direita em relação às medidas do Governo de Costa. É natural, num executivo que nasce da ruptura com paradigmas de consenso ao centro, que a atitude ideológica do PS seja a de cortar com os desvios neoliberais ou sociais-liberais que caracterizaram os partidos socialistas democráticos ou social-democratas nas últimas duas décadas.
É assim perfeitamente normal, dentro daquele que é o quadro político em que este Governo se move, que, por exemplo, o ministro da Educação proponha a revisão dos contratos de apoio às escolas particulares. Não por qualquer decisão de perseguir o ensino privado, mas pela simples razão de que defende o ensino público e aposta no investimento na escola pública. Ora, para quem defende o ensino público, é natural que o Estado não ande a subsidiar o ensino privado e a desviar verbas que devem servir a escola pública.
Este tipo de opções é normal em quem se assume de esquerda, como as contrárias são em partidos de direita. E assim como o Governo de Passos Coelho tomou as opções que entendeu tomar e optou por uma política fiscal que sobrecarregou os rendimentos do trabalho, agora, o Governo de Costa opta por fazer o inverso, devolver aos trabalhadores por conta de outrem os rendimentos que tinham sido desviados para a receita fiscal. E esta diferença ideológica é normal e salutar em democracia.
O que não é normal, porque não é democrático, é que haja quem queira impor as suas ideias e a sua ideologia como pensamento único, como regra científica, como verdade absoluta, como dogma incontestável até, e que trate as ideologias contrárias como mentiras. Um coisa é pensarmos de forma diversa até mesmo oposta e debatermos salutarmente as nossas diferenças, outra é querer ignorar os direitos dos outros a terem opinião política e ideologia próprias e a governarem segundo elas.