Quem matar animais de companhia não deve poder tê-los durante dez anos
Parlamento discute nesta quinta-feira projectos do PS, PAN, PSD e BE. Animais vão deixar de ser coisas, mas uma legislação bem-intencionada arrisca-se a aumentar a confusão jurídica.
O Parlamento discute nesta quinta-feira vários projectos de lei relacionados com os direitos dos animais do PS, do PAN, do PSD e do BE. Sendo certo que os animais deixarão, por fim, de ser vistos como coisas pela justiça portuguesa, para alcançarem um estatuto jurídico intermédio entre os objectos e as pessoas, a verdade é que parte desta legislação bem-intencionada não só não resolve todos os problemas que se põem com a actual lei, que enferma de várias fragilidades, como vem aumentar a confusão legislativa, entendem alguns juristas.
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O Parlamento discute nesta quinta-feira vários projectos de lei relacionados com os direitos dos animais do PS, do PAN, do PSD e do BE. Sendo certo que os animais deixarão, por fim, de ser vistos como coisas pela justiça portuguesa, para alcançarem um estatuto jurídico intermédio entre os objectos e as pessoas, a verdade é que parte desta legislação bem-intencionada não só não resolve todos os problemas que se põem com a actual lei, que enferma de várias fragilidades, como vem aumentar a confusão legislativa, entendem alguns juristas.
Uma das alterações que mais salta à vista num dos projectos dos socialistas relaciona-se com a possibilidade de os tribunais proibirem quem matar ou maltratar animais de companhia de os ter durante um período até dez anos, como pena acessória. Pela lei em vigor, esse impedimento tinha como limite máximo os cinco anos.
A proibição passa a ser extensível a outro tipo de animais: uma vez que o PS entende que uma condenação nesta matéria “é factor revelador da inexistência de idoneidade para outras actividades que envolvam animais”, um dos seus projectos de lei hoje em discussão prevê que quem maltrate ou mate um cão ou um gato, por exemplo, possa vir a ser inibido de criar galinhas ou cavalos — bem como de participar em feiras, mercados, exposições ou concursos de animais. Os socialistas estendem este regime aos domésticos sem dono, mas deixam de fora uma vez mais os animais amestrados usados nos circos e noutros espectáculos, apesar de o seu desempenho ser com frequência conseguido à custa de maus tratos. O deputado socialista Pedro Delgado Alves alega não existirem neste momento no Parlamento condições para aprovar tal alargamento, embora tanto ele como outros colegas de bancada gostassem que isso acontecesse.
Formigas e vegetarianismo
Também o PAN (Pessoas, Animais, Natureza) explica, no preâmbulo do seu projecto, que não quis abrir nesta altura o debate em torno dos espectáculos com animais. Porém, tanto este partido como o BE entendem ser necessário conferir protecção legal a outros bichos que não os domésticos. “Os crimes relativos a maus tratos devem abranger não apenas os animais de companhia mas todos os animais sencientes cuja vivência está associada aos seres humanos, independentemente da função que desempenham”, defendem os bloquistas, para quem a reincidência no crime de maus tratos deve implicar uma pena radical, perpétua: a privação permanente da detenção de animais de companhia.
A ideia agrada ao Conselho Superior da Magistratura (CSM), órgão ao qual foi pedido parecer sobre o assunto: “Parece-nos positiva a generalização, muito embora em certos casos (formigas, moscas, etc.) o princípio possa porventura considerar-se excessivo.” Do crime de animalicídio, como lhe chama o PAN, apenas seria excluída a morte de animais relacionada com actividades pecuárias e cinegéticas — sob pena de conversão forçada dos humanos ao vegetarianismo.
O órgão de gestão e disciplina dos juízes aponta, contudo, algumas falhas aos projectos deste partido. Desde logo, o facto de não conterem qualquer alusão, como de resto o projecto do PS, a outros maus tratos que não os físicos: “Por vezes, um mau trato psicológico inflige maior dor a um animal do que um singelo mau trato físico.”
Neste, como noutros aspectos, poder-se-ia ter ido mais longe. Segundo a nova redacção de uma das normas do Código Civil proposta pelo PS, “o direito de propriedade de um animal não contempla a possibilidade de, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos que resultem em sofrimento injustificado, abandono ou morte”.
“O passo dado neste âmbito poderá porventura ficar aquém do desejável, mas não deixa de representar um avanço civilizacional de monta”, pode ler-se no parecer do CSM, que remete para o Tratado de Funcionamento da União Europeia — segundo o qual a legislação que protege os animais deve respeitar as tradições, por muito que elas também se adaptem à evolução da sociedade.
Penas mais duras
Neste momento, quem maltratar um animal arrisca-se a até um ano de cadeia ou a, pelo menos, uma multa, enquanto que se o matar pode ficar encarcerado dois anos. E é assim que o PS continua a querer que continue, excepto se o autor do crime for reincidente, circunstância que faz aumentar ligeiramente a pena. BE e PAN querem fazer subir para os três anos a punição pela morte, propondo este último partido um agravamento quando o animalicídio ou os maus tratos forem perpetrados de forma especialmente perversa ou na presença de menores. Antes de os maus tratos serem crime, a pena por provocar danos em animal alheio ia até aos três anos.
E se, por um lado, estas propostas legislativas vêm clarificar certas incongruências da lei vigente, como aquela que permitia escapar incólume o autor da morte de um animal que lhe tivesse dado um tiro, desde que não lhe tivesse causado sofrimento com esse acto, por outro complicam alguns aspectos. “Algumas das alterações preconizadas podem, na prática, acarretar maiores problemas do que aqueles a que procuram dar resposta”, avisa o Conselho Superior da Magistratura. Nalguns casos, implicam mexer noutros diplomas legais, coisa que não está prevista: “Importaria equacionar, na sede destas iniciativas legislativas, outras questões que podem justificar a formulação de outras normas legais”, diz o mesmo órgão.
O problema dos donos suspeitos de maus tratos que não foram ainda condenados apenas surge abordado no projecto dos bloquistas: “A detenção legal de um animal comprovadamente maltratado pode, durante o processo judicial, ser temporariamente atribuída a um familiar que não coabite com o arguido ou a uma associação com condições para acolher adequadamente o animal.” Para Pedro Delgado Alves esta disposição faz sentido, estando os socialistas dispostos a acolhê-la. Mas, neste ponto, surge outro obstáculo: onde irão parar os bichos retirados aos donos na sequência de maus tratos? O PS fala de “perda a favor do Estado ou de outra entidade pública”, o que afasta a possibilidade de acolhimento por parte das associações de protecção dos animais, que são instituições privadas. Pedro Delgado Alves diz que o regime da perda de bens não permite dar um salto directo entre dois privados, o proprietário inicial e uma associação.
Problemas à parte, o Conselho Superior da Magistratura não tem dúvidas: o nível civilizacional de uma sociedade pode medir-se também pela protecção que ela dispensa aos seus animais. Com os passos que tem vindo a dar, Portugal começa a subir na escala.