“Comecei por observar coisas, antes de construir coisas”

É cada vez mais raro um arquitecto promover uma prática profissional só referenciada na cultura arquitectónica. Christian Kerez, o nome que a Suíça leva à Bienal de Veneza, defendeu-o no CCB

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“A arquitectura só pode referir-se à própria arquitectura".Com uma declaração disciplinar pela profissão de arquitecto, Christian Kerez dava início, no Centro Cultural de Belém (CCB), a um breve percurso pela sua obra mais recente, a convite da Trienal de Arquitectura de Lisboa. Fazia também uma primeira declaração a favor do título da sua própria apresentação: The Form of Form, onde colocava a si próprio o desafio de inquirir sobre o impacto da “forma” arquitectónica na sociedade ou na política, entre muitos outros agentes possíveis. 

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“A arquitectura só pode referir-se à própria arquitectura".Com uma declaração disciplinar pela profissão de arquitecto, Christian Kerez dava início, no Centro Cultural de Belém (CCB), a um breve percurso pela sua obra mais recente, a convite da Trienal de Arquitectura de Lisboa. Fazia também uma primeira declaração a favor do título da sua própria apresentação: The Form of Form, onde colocava a si próprio o desafio de inquirir sobre o impacto da “forma” arquitectónica na sociedade ou na política, entre muitos outros agentes possíveis. 

O arquitecto suíço, nascido na Venezuela em 1962, e educado na ETH de Zurique, encerrou, na segunda-feira, a segunda edição do ciclo Distância Crítica, que este ano tinha já contado com Ellen van Loon do escritório OMA, liderado por Rem Koolhaas. A sala não estava completamente lotada (como tem sido frequente), o que ajudou a estabelecer um carácter algo intimista que estas apresentações públicas de arquitectura nem sempre permitem. A personalidade de Kerez também colabora com este tipo de ambientes menos formais. A opção por ir desvendando as etapas dos diferentes projectos através de imagens das experiências conduzidas no escritório – que passam pelo desenho de esquemas, construção de modelos tridimensionais, até maquetas à escala real – ajudaram à aproximação, equilibrando os componentes intelectual e laboratorial da prática arquitectónica.

Antes de arrancar com o seu trabalho, Kerez evocou dois momentos da paisagem construída de Lisboa: a luvaria Ulisses na Rua do Carmo, pela intensidade espacial conseguida numa área mínima; e o Teatro Thalia, originalmente um edifício do início do século XIX, intervencionado em 2012 por Patrícia Barbas e Diogo Seixas Lopes, com Gonçalo Byrne. Tratou-se também de homenagear o contributo de Seixas Lopes, recentemente falecido, para a cultura arquitectónica numa escala menos doméstica que a portuguesa. As imagens captadas do Thalia, registadas pelo próprio Kerez, que começou por se dedicar à fotografia antes de exercer exclusivamente arquitectura (“Comecei por observar coisas, antes de construir coisas”), serviram de introdução a algumas das suas ideias-chave e que descreveu como “a procura de distanciamento em relação à arquitectura e às imagens que dela mais se conhecem”. O registo telúrico e físico da sala do Thalia em oposição à quase transparência do átrio de entrada, onde até o mobiliário tende a desaparecer, por exemplo. Uma arquitectura que se estabelece a partir de ideias conceptuais fortes que se sobrepõem a outras exigências, como as funcionais, investigando os limites da estrutura, da forma, da matéria.

A arquitectura de Kerez tem sido genericamente observada a partir da intensidade performativa de alguns componentes da disciplina: a ancestralidade primitiva da capela de Oberrealta (Suíça, 1992-93), desenhada quando era ainda colaborador de Rudolf Fontana, como “uma criança o faria”; ou, por outro lado, o comportamento estrutural de edifícios como a escola de Leutschenbach, em Zurique (2003-08), de que aliás Kerez não falou em Lisboa.

Depois de alguns comentários a imagens de Oberrealta e à capela mortuária de Bonaduz (também com Fontana, Suíça, 1992-93), preferiu então arrancar com a Casa com Vista para o Lago (Thalwil, Suíça, 2006-13), para ilustrar a sua metodologia de trabalho, reforçando a profissão de arquitecto como uma actividade de investigação, criação e especulação. Um edifício de apartamentos implantado num terreno de forte pendente sobre um lago e o desafio de não responder com as “soluções habituais”.

Mais à frente, durante a conversa com o arquitecto João Rodeia, que se seguiu à conferência, Kerez haveria de sintetizar o seu processo criativo: primeiro um grande optimismo, seguido de um forte pessimismo e total desespero, que normalmente antecipa o momento em que “alguma coisa acontece”. O arquitecto descrito e encarnado por Kerez é uma personagem desassossegada, na velha tradição do romantismo ocidental. E profundamente inquieta, de natureza diletante, desafiando a eficiência exigida pelo mundo contemporâneo, sem que os seus edifícios, depois de realizados, a ponham realmente em causa.

Mas a necessidade em se expor a diferentes experiências tem servindo de fio condutor, como exemplificou em Lisboa. Da abordagem à informalidade da favela que marca a realidade urbana de uma grande parte da população sul americana resultou o projecto Habitação Social Porto Seguro (Brasil, 2010-13). Trabalhar na favela constituiu, como afirmou, uma forma de “evasão da sua experiência pessoal”. Kerez não conseguiu “escapar” – é certo – ao habitual deslumbramento que estes ambientes informais causam nos arquitectos e que estes associam à inata criatividade humana na transformação de habitats hostis em territórios acolhedores e poéticos: ”Podemos chamar informal a todas as cidades cuja morfologia não compreendemos”. As qualidades espaciais da favela (que descreveu como “vernaculares”), a interioridade da maioria das suas áreas públicas, foram algumas das particularidades destacadas por Kerez na sua nova proposta. O processo reflectir-se-ia na estratégia do edifício residencial Okamura (Praga, 2014) em subdividir as diferentes funções habitacionais por módulos circulares criando, novamente, uma situação limite ao trabalhar com formas habitualmente evitadas pelos arquitectos.

Kerez terminou a apresentação com o projecto para os três museus da cidade chinesa de Guangzhou, provavelmente uma das suas propostas que mais circulam entre a comunidade de arquitectos e estudantes de arquitectura: “Há muitos edifícios icónicos na China, mas sempre me perguntei sobre os espaços públicos”.

O desenho do novo complexo museológico chinês é um argumento para desenvolver uma ideia de arquitectura que se dissolve na paisagem e que responde à hipótese de construção de um novo sentido para o espaço público. Entre as referências estudadas e analisadas pelo escritório, encontrava-se – como mostrou – uma maqueta do parque Ibirapuera de Oscar Niemeyer na cidade de São Paulo. Antes ainda, Kerez haveria de testemunhar a sua admiração por outro grande mestre do século passado, Kenzo Tange, um dos maiores mandatários da arquitectura metabolista japonesa. O pretexto seria o concurso que Kerez perdeu para sede da estação flamenga de Televisão e Rádio VRT, em Bruxelas. Representante da Suíça na 15.ª edição da Bienal Internacional de Arquitectura de Veneza, que inaugura este mês, Kerez escusou-se para já a revelar a sua proposta. Perto do final, em resposta a uma pergunta de um antigo colaborador, Christian Kerez haveria de confirmar que em arquitectura, “o contexto não é exactamente físico, mas cultural”, numa pujante declaração pela autonomia de uma prática profissional ultimamente à deriva por fórmulas menos disciplinares.