O ninho dos preconceitos
Este ano vou conhecer, se tudo correr bem, um borracho como deve ser.
Uma pomba fez um ninho na única varanda da nossa casa. Passa muito tempo em cima do ovo que lá pôs. Sabe que estamos a olhar para ela. Se calhar importa-se mas não leva a mal. Só não gostou quando abrimos as janelas. Levantou vôo e foi vigiar-nos, com ódio condicional, para o telhado da igreja.
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Uma pomba fez um ninho na única varanda da nossa casa. Passa muito tempo em cima do ovo que lá pôs. Sabe que estamos a olhar para ela. Se calhar importa-se mas não leva a mal. Só não gostou quando abrimos as janelas. Levantou vôo e foi vigiar-nos, com ódio condicional, para o telhado da igreja.
Nunca mais abrimos aquelas janelas. Mas, no minuto em que ela deixou o ovo sozinho, pudemos apreciar a arquitectura do ninho. Era muitíssimo boa. Fazia lembrar o que Álvaro Siza fez, aqui há uns verões, na Serpentine Gallery em Hyde Park.
Era um bonito e inteligente sizeiro, feito a partir dos caules das flores com que enfeitam a igreja de Almoçageme. Os pombos de Almoçageme, que voam em bando para obrigar o sol a pôr-se, são muito bem recebidos pela população. Alegram-nos e encantam-nos. É a mágica Maria que trata deles.
Nunca vi pombos mais felizes. É uma medida correcta da maneira como os tratamos que a mesma pessoa que disse que eram "bons para comer" também nos ordenou a não "tirar o ovo dali".
A razão que ela deu encheu-nos de ternura: "vai ver como vai gostar de ver os borrachinhos".
Uma das grandes vergonhas da minha geração (embora eu próprio nunca tenha nem compreendido nem aceitado a designação) foi ter achado que tinha graça chamar "borrachinhos" aos seres humanos sexualmente desejáveis.
Este ano vou conhecer, se tudo correr bem, um borracho como deve ser. Os pombos têm uma vida sexual que dura todo o ano. Só falta o bebé.