A ascensão do poder do Supremo Tribunal Federal, aliada à fraqueza da política, conduz o Brasil à paralisia
"O meu receio é que as pessoas passem a enxergar que a interferência do Judiciário é um remédio, quando, na verdade, mais parece um sintoma de doença", diz o professor de Direito Daniel Vargas.
O processo de destituição (impeachment) da Presidente Dilma Rousseff está estreitamente ligado a outro fenómeno, o aumento da influência do Supremo Tribunal Federal (STF) na política brasileira, o que levanta um complicado problema: a judicialização da política pode conduzir à politização da justiça. Juntos levam a bloqueios institucionais e à paralisia.
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O processo de destituição (impeachment) da Presidente Dilma Rousseff está estreitamente ligado a outro fenómeno, o aumento da influência do Supremo Tribunal Federal (STF) na política brasileira, o que levanta um complicado problema: a judicialização da política pode conduzir à politização da justiça. Juntos levam a bloqueios institucionais e à paralisia.
As investigações de escândalos como o Mensalão (suborno de deputados) e, depois o Petrolão (corrupção na Petrobras) — a Operação Lava-Jato do juiz Sérgio Moro — prestigiaram os magistrados. Moro tornou-se num "herói do povo". Esta é uma das vertentes, inspirada na Operação Mãos Limpas lançada em 2002 pela magistratura de Milão contra a corrupção política.
O afastamento de Cunha
A segunda vertente é a crescente intervenção do STF junto dos poderes executivo e legislativo. Na quinta-feira, suspendeu o mandato de Eduardo Cunha, presidente do Congresso, por suspeita de uso do cargo em benefício próprio e obstrução da justiça. Ironicamente, foi Cunha quem capitaneou a campanha de destituição de Dilma. De resto, é réu por crimes de lavagem de dinheiro e corrupção. Por este facto, estaria constitucionalmente inibido de substituir o futuro Presidente, enquanto líder do Congresso. O importante é outra coisa: foi o primeiro deputado da história brasileira a ser afastado pelo STF.
A primeira vertente diz respeito à moralização do Estado e da política. A segunda significa um hábil teste aos limites da intervenção dos juízes na esfera política, já esboçada durante os mandatos de Lula e Dilma. A grande maioria dos brasileiros exigia o afastamento de Cunha — tal como os de Dilma e do seu vice e provável sucessor, Michel Temer. Foi portanto uma decisão popular. Mas a coincidência entre o voto do Congresso contra Dilma e a rápida depuração do seu "inimigo", agora acusado de constituir uma ameaça à "credibilidade da câmara", faz sorrir os cépticos.
Daniel Vargas, professor de Direito e antigo colaborador no segundo governo de Lula, lançou um alerta numa entrevista ao El País. "O meu receio é que as pessoas passem a enxergar, a partir dessa decisão, que a interferência do Judiciário é um remédio, quando, na verdade, mais parece um sintoma da doença. O facto de o STF se ter transformado no grande protagonista das decisões políticas, e muitas vezes também económicas, indicia apenas como a democracia brasileira sangra cada vez mais. (...) Não conseguimos mais apresentar um caminho sem uma intervenção judicial."
A votação no Senado
A justiça tem as suas "linhas vermelhas" seja no combate à corrupção ou no respeito dos outros poderes. Na Itália das Mãos Limpas, o excesso de zelo dos magistrados levou à sua derrota e à emergência de Berlusconi, o símbolo da corrupção política. Hoje, no Brasil, surgem interrogações sobre o futuro rumo da Operação Lava-Jato após o impeachment, que passou a concentrar todas as atenções. Os analistas admitem que a operação possa ser acelerada, mas temem que possa vir a ser obstruída pelo Congresso ou pelo Governo, a partir do momento em que deixa de estar debaixo dos holofotes (BBC Brasil, 19 de Abril).
O poder judicial pode ser tentado, nas palavras de Vargas, a passar de "árbitro pontual" a "maestro", num clima de "verdadeira caça à política" e de desvalorização da autoridade do voto. A responsabilidade maior cabe ao sistema e aos históricos hábitos políticos brasileiros.
O modelo do "presidencialismo de coalizão", em que o Presidente concentra enormes poderes que, à falta de maioria parlamentar, não pode exercer sem alianças bastardas, com pequenos ou grandes partidos ideologicamente distantes, é um clássico obstáculo à governabilidade. Impõe negociatas e é um convite ao suborno de deputados — caso do Mensalão.
Dilma falhou o mandato, cometeu erros crassos, tornou-se impopular, mas não foi acusada de corrupção. Passou a ser detestada na rua e acossada no parlamento, perdendo todas as condições para governar. Por isso a oposição pôde abrir o processo de destituição. Mas o insólito, como frisou Moisés Naim, ex-director da Foreign Policy, é que "todos os que a poderiam substituir depois deste processo estão contaminados, são tão tóxicos como ela".
Não é apenas o Congresso que tem uma maioria de deputados suspeitos ou acusados de corrupção e outros delitos. Também o Senado, que representa por excelência a elite política. Segundo a ONG transparência Brasil, 58% dos 81 senadores que vão votar o afastamento de Dilma têm também acusações de "improbidade administrativa ou de corrupção passiva". Que credibilidade têm?
O drama maior do Brasil não é sequer a corrupção. É que nenhum dos campos em que a política se polarizou tem poder para dar uma resposta política à crise em que o Brasil se afunda. É um país paralisado. E não serão os juízes que o dinamizarão.