Uma causa socialmente fracturante: abolir o tratamento por “dr.”
Deixo aqui, mais uma vez, a proposta de inovação social, sociologicamente fracturante, de abolição do tratamento das pessoas com base na sua qualificação académica.
1. Em Portugal, ao invés do que sucede na maioria dos países europeus, as pessoas com formação e grau universitários são objecto de um tratamento diferenciado, verdadeiramente discriminatório. Tanto nas fórmulas de cortesia quotidiana como em todos os actos públicos ou documentos oficiais, os licenciados não são designados pelo nome ou pelo antecedente comum e igualitário, para as mulheres, de “senhora” ou “de senhora dona” ou simplesmente de “dona” e, para os homens, de “senhor”. São obrigatoriamente apelidados de “senhora doutora”, “de “senhor engenheiro” ou de “senhor arquitecto”. Esta norma social e até administrativa tem uma conotação claramente aristocrática e oligárquica, a fazer lembrar uma sociedade organizada em torno de uma novel “nobreza de toga”. É uma norma social e pública paralela ao antigo tratamento por “Dom”, entre nós, reservado à nobreza ou, pelo menos, aos seus mais altos dignitários. E também paralela, dentro da Igreja católica, ao tratamento por “Dom” – incompreensível à luz de qualquer critério cristão – dos bispos e de alguns abades dos grandes conventos.
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1. Em Portugal, ao invés do que sucede na maioria dos países europeus, as pessoas com formação e grau universitários são objecto de um tratamento diferenciado, verdadeiramente discriminatório. Tanto nas fórmulas de cortesia quotidiana como em todos os actos públicos ou documentos oficiais, os licenciados não são designados pelo nome ou pelo antecedente comum e igualitário, para as mulheres, de “senhora” ou “de senhora dona” ou simplesmente de “dona” e, para os homens, de “senhor”. São obrigatoriamente apelidados de “senhora doutora”, “de “senhor engenheiro” ou de “senhor arquitecto”. Esta norma social e até administrativa tem uma conotação claramente aristocrática e oligárquica, a fazer lembrar uma sociedade organizada em torno de uma novel “nobreza de toga”. É uma norma social e pública paralela ao antigo tratamento por “Dom”, entre nós, reservado à nobreza ou, pelo menos, aos seus mais altos dignitários. E também paralela, dentro da Igreja católica, ao tratamento por “Dom” – incompreensível à luz de qualquer critério cristão – dos bispos e de alguns abades dos grandes conventos.
Como pode um país que se diz democrático, que leva já mais de 40 anos de democracia, continuar a viver com esta discriminação dos seus cidadãos em razão da formação universitária? Porque têm os frequentadores do ensino superior direito a fazer anteceder o uso do seu nome de um título que indica essa formação? Porque têm eles, no normativo social, mas também e mais escandalosamente no normativo público e oficial, direito a um tratamento discriminatório de todos os restantes?
2. Mais espantosa do que a subsistência desta discriminação incompreensível é a circunstância de os maiores paladinos da igualdade, geralmente polícias da correcção política, conviveram pacificamente com ela e se prevalecerem ostensivamente dela. As nossas forças da esquerda radical – que o mesmo é dizer do Bloco de Esquerda e de ala quase “bloquista” do PS – passam a vida com as causas fracturantes na mão, mas só e apenas no plano moral e dos costumes. A sua vida urbana e supostamente cosmopolita, feita por entre o que julgam ser as elites intelectuais, artísticas e mediáticas, não lhes permite abrir os olhos para esta discriminação social. Interessam-lhes as causas moralmente fracturantes, mas não lhes importa a fractura social. De resto, são bastantes os sociólogos – entre os quais pontificam alguns que se evidenciaram pela defesa de causas moralmente inovadoras – que reconhecem que há hoje mais abertura mediática e pública para a remoção dessas barreiras morais do que disposição do sistema mediático e político para a abolição destas impregnadas fracturas sociais. Verifico, aliás, que, na sequência do meu discurso no último congresso do PSD, onde fiz a sugestão de abolição do tratamento por “doutor, engenheiro ou arquitecto” nos actos, documentos e instituições oficiais, o silêncio foi sepulcral. A esquerda radical, sem perceber as lógicas da gramática, incomoda-se com a denominação de “cartão do cidadão”; mas não lhe faz qualquer espécie esta divisão em duas categorias de cidadãos: os que são tratados por “título” e todos os restantes tratados por “senhores”. Os gurus do igualitarismo fracturante querem ser iguais, mas parece que querem que alguns sejam mais iguais do que outros…
3. Esta norma social é sintoma de um mal mais profundo: Portugal é ainda uma sociedade aristocrática, com grande resistência à mobilidade social e com altos níveis de reprodução social das elites. Níveis esses que passam naturalmente pelo fechamento das castas sociais, por uma grande endogamia e pela cultura da “cunha, da cumplicidade e do compadrio”. Tendo em vista a apreciação social que o “direito ao uso e porte de título” dá, as famílias tendem a educar e orientar os seus filhos para o sistema de valores correspondente. Mas, fora da classe alta, as famílias da classe média e média baixa educam os seus filhos para o objectivo fundamental de “entrar na universidade”. O ingresso na academia significa a realização de um “desígnio vital de felicidade” e constitui um sinal exterior de “triunfo social”. Este condicionamento familiar, acompanhado do sobredito e fortíssimo condicionamento social, distorce, aliás, o sistema de ensino e prejudica o surgimento e o aproveitamento de vocações profissionais e técnicas, que dispensariam a frequência do ensino superior.
4. Deixo aqui, pois, e mais uma vez, a proposta de inovação social, sociologicamente fracturante, de abolição do tratamento das pessoas com base na sua qualificação académica. Abolição que, não tenho ilusões de engenharia social ou de utopia normativa, só pode fazer-se na esfera pública e oficial, ao nível do tratamento nos actos e nos documentos oficiais, bem como no dia-a-dia das instituições públicas. Arrisco e arrojo esta proposta com plena consciência de que as mentalidades e as culturas não se mudam por decreto e que anda aqui – à volta dos títulos de doutor e de engenheiro – muita ilusão de mobilidade social. Faço-o também ciente de que não há aqui nenhuma urgência nem premência, ante os problemas que nos deglutem o quotidiano. Mas há seguramente traumas bem fundos da nossa sociedade e da nossa convivência social, muitos do foro do inconsciente colectivo. Mas creio que, ao fim de 40 anos de democracia, estamos maduros para dar este passo. E depois resta esperar que a sociedade civil, com base na pedagogia feita pela esfera pública e oficial, possa progressivamente ir assimilando este reconhecimento pleno da igual dignidade social de todos os cidadãos.