Subitamente, na Nova Iorque extravagante do passado

The Velvet Underground. New York Extravaganza, na nova Filarmonia de Paris, é uma viagem imersiva à Big Apple dos anos 1960. É a época de todas as contestações e experiências estéticas e musicais vanguardistas que haveriam de deixar marca na história do rock. E não só.

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Cortesia: Galeria Caroline Smulders Paris

Não deixa de haver alguma ironia histórico-civilizacional no facto de agora vermos os nomes de grandes (e pequenas) bandas do pop-rock e dos seus ícones transformados em atracções de museus e galerias de exposição, rivalizando com os grandes mestres da história das artes. Como os Rolling Stones e o seu Exhibitionism, actualmente na Saatchi Gallery, de Londres, ou David Bowie Is a correr o mundo, depois de em 2013 ter sido inaugurada no Victoria & Albert Museum, também na capital inglesa.

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Não deixa de haver alguma ironia histórico-civilizacional no facto de agora vermos os nomes de grandes (e pequenas) bandas do pop-rock e dos seus ícones transformados em atracções de museus e galerias de exposição, rivalizando com os grandes mestres da história das artes. Como os Rolling Stones e o seu Exhibitionism, actualmente na Saatchi Gallery, de Londres, ou David Bowie Is a correr o mundo, depois de em 2013 ter sido inaugurada no Victoria & Albert Museum, também na capital inglesa.

É claro que a mostra da banda de Mick Jagger pode ser vista apenas como mais um capítulo a emoldurar as sucessivas digressões mundiais da “maior banda do mundo”. E a morte inesperada de Bowie, em Janeiro, só veio ampliar o interesse em revisitar o seu percurso, com a sua exposição a ter sido já visitada por mais de um 1,3 milhões de pessoas (contas do Le Monde) nas oito cidades por onde passou – e que incluiu a Filarmonia de Paris, na Primavera do ano passado.

Ainda que possa ser integrada neste movimento de nostalgia e rentabilização comercial dos “ídolos do rock”, a exposição actuamente patente no novo edifício da Filarmonia da capital francesa, The Velvet Underground. New York Extravaganza (abriu a 30 de Março e vai até 21 de Agosto), é algo diferente. Em primeiro lugar, porque a história da banda de Lou Reed-John Cale não é comparável, em volume e tempo histórico, aos Beatles, Stones ou Bowie. O que não significa que não tenham deixado forte impressão digital na história do rock, mesmo se sobreviveram menos de meia dúzia de anos e editaram apenas quatro álbuns.

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The Velvet Underground & Nico foi gravado em Abril e Maio de 1966, em Nova Iorque e Los Angeles – e esta data é o pretexto para realização da exposição em Paris, no 50.º aniversário Adam Ritchie

Quando nos aproximamos do novo e extravagante edifício da Filarmonia de Paris – projecto do arquitecto “Pritzker” francês Jean Nouvel, inaugurado em Janeiro do ano passado a completar o complexo da Cité de la Musique –, que, imaginamos, Steven Spielberg não desdenharia para cenário duma sequela do seu Encontros Imediatos do 3.º Grau, versão séc. XXI, não deixa de ser curioso entrarmos por uma discreta porta do rés-do-chão. Quase como se estivéssemos a franquiar a primeira sede do estúdio The Factory da 47.ª Avenida de Manhattan, onde Andy Warhol (1928-1987) – que aí reproduziu o interior de uma nave espacial – acolheu os The Velvet Underground (VU), em Dezembro de 1965.

Espera-nos aí, de facto, uma viagem imersiva no tempo e no espaço, um regresso ao passado e ao imaginário de uma Nova Iorque extravagante – e que dá sentido ao título da exposição comissariada por Christian Fevret (co-fundador, em 1986, da revista Les Inrockuptibles e autor de uma primeira exposição sobre os VU na Fundação Cartier, também em Paris, em 1990) e Carole Mirabelo.

Somos recebidos, numa atmosfera mista de sombra e néons, pela transcrição do poema América (1956), de Allen Ginsberg – “America I've given you all and now I'm nothing [“América, dei-te tudo e agora não sou nada”] –, acompanhada por um filme, em díptico, do realizador norte-americano Jonathan Caouette, a contar-nos a história do país na década de 1960, esse tempo de todas as contestações e experiências avant-garde.

Numa parede-caleidoscópio de fotografias, cartazes, recortes de imprensa e filmes documentais, podemos fixar algumas datas que viriam a enformar a década: 1959 – Jack Kerouac fotografado com Ginsberg no tempo dos Beat movies; 1961 – Bob Dylan faz um concerto no Café Wha e Ornette Coleman grava Free Jazz: a colective improvisation no estúdio da Atlantic Records; 1962 – Woody Allen dá os primeiros passsos na stand-up comedy no Gaslight Café; 1963 – Martin Luther King diz “I have a dream”; 1964 – Jonas Mekas filma o Empire State Building, produzido por Andy Warhol; Truman Capote edita In Cold Blood (A Sangue Frio)…

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William Beaucardet/Philharmonie de Paris

É a década de todas as contradições, entre o auge do consumismo pós-guerra e a contestação dos valores do “american way of life”, mesmo que eles integrassem já o jazz, a folk e o rock ‘n’ roll.

Encontro improvável

No percurso da visita, New York Extravaganza mostra-nos Lou Reed (1942-2013) e John Cale (n. 1942) a dividirem o protagonismo na sala da entrada – são os primeiros vultos recortados numa série de “andaimes” que vão surgir ao longo da exposição, e com que a cenografista Matali Crasset encena as biografias de dezena e meia de figuras que fizeram a história não apenas dos VU, mas também daqueles que se associaram a Warhol na Factory: Jonas Mekas, Barbara Rubin, Edie Sedgwick, Gerard Malanga, Danny Williams…

Lou Reed, o jovem inadaptado que nasceu e cresceu em Brooklyn, a quem  médicos chegaram a prescrever um tratamento de choques eléctricos para melhor se integrar nos padrões da vida americana, e que na Universidade de Syracuse começou a fazer-se notar com a criação de sucessivas bandas – The Beachnuts, Jades, Roughnecks, Primitives… – onde dava livre expressão à sua ânsia de fazer música… John Cale, nascido no País de Gales, que em 1963 chegara à América para dar continuidade, no Tanglewood Music Center de Lenox, no Massachussets, à sua formação de música erudita, e que tinha inclusivamente passado pela Welsh Youth Orchestra.

Encontraram-se ambos em Dezembro de 1964, a reunião mais improvável que se poderia imaginar: Reed, “o poeta da seringa  das ruas selvagens”, mas também “o homem das dez vidas, das cem mil caras, dos mil rumores”, como se lhe refere Bruno Juffin num texto na edição especial da revista Les Inrocks dedicada à exposição; Cale, um dandy que podia ter sido personagem da literatura, e que chegou a Nova Iorque com a escola musical de Schönberg e Stravinski, Cage e Stockhausen, mas que haveria de explodir nas experimentações bem mais violentas do Dream Syndicate de La Monte Young, personagem também acolhido na Factory de Warhol.

Duas personalidades unidas por uma alquimia tão densa quanto efémera, como se verá no percurso da história, e da exposição.

A estes dois, juntaram-se depois Sterling Morrison (1942-1995), um guitarrista que Reed encontrou no metro; e Angus Maclise (1938-1979), percussionista budista que não sobreviveu à intensidade das experiências sónicas da banda e foi substituído por uma baterista andrógena, Maureen “Moe” Tucker (n. 1944).

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A cenografista Matali Crasset encena numa série de “andaimes” as biografias de dezena e meia de figuras que fizeram a história não apenas dos VU, mas também daqueles que se associaram a Warhol na Factory William Beaucardet/Philharmonie de Paris
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William Beaucardet/Philharmonie de Paris

O quarteto começou a tocar uma estranha mistura da música de Dylan e Don Chery com Coleman e Cecil Taylor, “cantando” (letras de Reed) o bas-fond e a droga, o sexo e o masoquismo, em sombrios cafés e caves de Manhattan. Até que Andy Warhol foi ouvi-los, uma noite de Dezembro de 1966, no Café Bizarre. “Adoptou-os” e levou-os para a sua Factory, fazendo-os entrar no reportório das suas electrizantes Exploding Plasting Inevitabe, espectáculo multimédia que incluía filmes protagonizados pela actriz-fétiche do papa da arte pop Edie Sedgwick, projecções de slides, música ao vivo e danças.

Um dos momentos mais apelativos da exposição na Filarmonia de Paris é uma instalação-tenda, que dá ao visitante a possibilidade de deitar-se em colchões de campismo e assistir – e pode fazê-lo durante horas – a filmes e gravações dessas festas, com a música dos VU em fundo.

Quatros álbuns

O resto, é a história conhecida – mas tardiamente reconhecida na sua relevância histórica – da produção de The Velvet Underground & Nico, o disco de estreia da banda. Nico (1938-1988), “femme” tanto ou mais “fatale” que Sedgwick, era uma modelo nascida na Alemanha, que passara pelas passerelles da moda e também pelos plateaux do cinema europeu, entre Paris, Roma (fez um cameo em La Dolce Vita, de Fellini) e Londres, e que desaguou na Factory como uma Chelsea girl. E foi imposta por este para cantar alguns temas do álbum – fê-lo apenas em Femme fatale, All tomorrow’s parties e I’ll be your mirror, mas deixou uma marca que é directamente proporcional ao carisma que lhe podemos reconhecer vendo, na exposição, o test-screen que fez para Warhol: são minutos de contemplação rendida a uma beleza loura fria, distante, insolente, mas electrizante. Uma mulher que viveu e morreu contra-a-corrente.

The Velvet Underground & Nico foi gravado em Abril e Maio de 1966, em Nova Iorque e Los Angeles – e esta data é o pretexto para realização da exposição em Paris, no 50.º aniversário –, mas ficou a marinar na editora até ser lançado apenas em Março do ano seguinte. Como se imaginava, dado o teor tanto da música como das letras, foi escondido e censurado pelas rádios e pelas publicações da época – a Les Inrockuptibles diz que o melhor que conseguiu, na altura do lançamento, foi um 103.º lugar no top da revista Cashbox.

Com a formação original – Lou Reed + John Cale + Sterling Morrison + “Moe” Tucker –, os VU só editariam um segundo álbum, White Light/White Heat (1968). E mais dois: The Velvet Underground (1969), já sem Cale; e Loaded (1970), quando Reed também já tinha abandonado o barco. Mas a história estava feita.

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David Bowie, que pôde ouvir o disco, nos bastidores da Factory, quando ele ainda não tinha sido editado, disse mais tarde: “Tudo o que eu pressentia e ignorava sobre o rock foi-me revelado com este disco inédito”. E o futuro criador de Ziggy Stardust haveria de vir a interpretar vários temas dos VU ao longo da sua carreira.

Mas, fora as subsequentes carreiras a solo de John Cale e Lou Reed, a influência dos Velvet Underground foi bastante além da música. E este é o tema da última sala da exposição, dedicada aos “ecos e heranças” da banda, que passam pela fotografia de Nan Golding e Helmut Newton, pelo cinema de Gus van Sant (Last Days, 2005). E pelas artes plásticas, aí representadas por uma serigrafia de John Giorno, que diz “You got to burn to shine” (2008), e também por uma instalação em néon de João Louro, retirada da criação com que marcou a presença portuguesa na Bienal de Veneza de 2015, I’ll be your mirror.

Numa das inúmeras frases e citações que pontuam o percurso da exposição, Jonas Mekas lamenta, a certa altura: “Suddenly it all came back” – como quem diz, nunca Nova Iorque voltou a ser a mesma desse tempo que permitiu nascer (e viu morrer) uma banda como os Velvet Underground. Mas New York Extravaganza termina com uma foto de grande formato de uma jovem Patti Smith, que por esses anos estava também a chegar à Big Apple – e que algum tempo depois nos daria Horses (1975), e muito mais.