O “iminente colapso” da Venezuela
A Venezuela reúne todas as condições para uma catástrofe que, para lá dos efeitos internos, ameaça produzir uma onda de choque em grande parte da América do Sul. Um laço fatídico liga o “iminente colapso económico” ao monopólio do poder pelo governo “chavista” de Nicolás Maduro, que bloqueia todas as tentativas de transição e acelera a corrida para a catástrofe.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A Venezuela reúne todas as condições para uma catástrofe que, para lá dos efeitos internos, ameaça produzir uma onda de choque em grande parte da América do Sul. Um laço fatídico liga o “iminente colapso económico” ao monopólio do poder pelo governo “chavista” de Nicolás Maduro, que bloqueia todas as tentativas de transição e acelera a corrida para a catástrofe.
Comecemos pela economia, que aqui comanda a marcha das coisas. A Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo. Há 35 anos era o país mais rico da América Latina. Hoje, candidata-se a tornar-se no mais pobre. “A economia da Venezuela apaga-se”, escreve o economista Leonardo Vera, professor na Universidade Central de Caracas. Resume: o FMI assinala uma queda de 8%, no PIB [em 2015], o maior retrocesso a nível mundial, dentro de uma tendência acumulada de três anos consecutivos de contracção económica. Terá perdido no final do ano, em relação a 2013, um terço do seu PIB por habitante. As empresas param por falta de energia e peças. Faltam alimentos básicos. Morrem nos hospitais doentes por falta de medicamentos e materiais. É o limiar do insuportável.
Um estudo de três universidades venezuelanas indica que 74% das localidades caíram abaixo da linha da pobreza, contra 31% em 2013. É o único país do mundo com uma inflação de três dígitos — cerca de 600% em 2015. O país está a cair na “armadilha da pobreza”, a partir da qual dificilmente conseguirá recuperar.
Nada disto é novidade para quem leia os jornais.
Chávez e o petróleo
Temos de fazer uma alusão a Hugo Chávez. Ele introduziu uma mudança irreversível: a incorporação das massas pobres na cena política. Por outro lado, “foi o primeiro governante de esquerda com veleidades revolucionárias a dispor de uma enorme massa de recursos”, observou o antigo guerrilheiro salvadorenho Joaquin Villalobos. A renda petrolífera não jorrou apenas sobre os bairros pobres, atingiu Cuba, a Bolívia, a Nicarágua, as Caraíbas — foi a base da política internacional “bolivariana”.
Menos conhecido é o modo como o “chavismo” destruiu a “galinha dos ovos de ouro”, a Petróleos de Venezuela S.A. (PDVSA). Após a derrota da greve nacional dirigida contra Chávez pelos sindicatos do petróleo em 2002-3, a elite dos trabalhadores (75%) foi substituída por chavistas fiéis. Na era das “vacas gordas”, o petróleo financiou as políticas sociais de Chávez mas o futuro não foi preservado. Quando Chávez morreu, em 2013, a degradação da PDVSA já era notória e a produção descia por falta de reinvestimento e de manutenção. A produção caiu para metade, triplicou o número de trabalhadores. Hoje, a PDVSA está altamente endividada.
O esbanjamento de recursos, o desinvestimento, o desinteresse pela indústria e a “corruptocracia” fazem hoje sentir devastadores efeitos. O intervencionismo estatal foi um “suicídio económico”. Caracas chegou à era do petróleo barato praticamente falida, sem as imensas reservas financeiras de que outrora dispôs. A seca e o preço do petróleo são o golpe de misericórdia, não a causa.
Maduro não é Chávez. O “bolivarismo” não resistiu à morte do caudilho, o único com legitimidade para tentar mudar o curso das coisas. Pelo contrário, o pânico de “trair o legado de Chávez” paralisa os sucessores. E a nova oligarquia, a chamada “boliburguesia”, profundamente corrupta, defende os seus privilégios.
MUD e Maduro
As eleições de Dezembro para a Assembleia Nacional ilustraram as regras do jogo. Falou-se numa “nova era”, após o triunfo maciço da Mesa de Unidade Democrática (MUD, coligação oposicionista), que obteve a maioria qualificada de dois terços, o necessário para depor governantes, reformar o Supremo Tribunal, aprovar leis constitucionais ou convocar referendos: em suma, poderia mudar o regime.
Foi uma ilusão. O Supremo Tribunal, que obedece a Maduro, contestou o mandato de três deputados (anulando a maioria qualificada) e desde então declara inconstitucionais todas as deliberações da Assembleia, que está praticamente paralisada. Decorre uma campanha de recolha de assinaturas para convocar este ano um referendo que reduziria o mandado de Maduro de seis para quatro anos — ou seja, presidenciais em 2017. O regime prepara-se para sabotar a iniciativa.
Hoje, 60 ou 70% dos venezuelanos desejam a demissão de Maduro. Mas apenas o “chavismo” e Maduro unem os quatro maiores partidos da MUD. Esta está dividida entre correntes que querem desafiar o regime na rua, capitalizando o descontentamento geral, da falta de géneros à inflação, e os que procuram uma negociação com o poder. Na primeira, integra-se a Voluntad Popular, de Leopoldo López, hoje na cadeia; na segunda, a Primero Justicia, de Henrique Capriles, que desafiou Maduro nas presidenciais de 2013. Foi López que liderou a campanha de rua La Salida, em Fevereiro de 2014, com um saldo de 42 mortos. O regime respondeu brutalmente. Anotou Villalobos em 2015: “A Venezuela está numa fase em que a violência verbal ainda prevalece sobre os mortos. O país vive uma situação de pré-conflito, que de um momento para o outro pode derivar para um confronto maior.”
Há, segundo os analistas venezuelanos, brechas no campo chavista, que crescem à medida que a crise económica se agrava. No entanto — contando com o controlo do sistema judicial e da maioria das forças armadas — é mais poderoso e coeso do que a oposição. E assenta num forte reduto social — os 42% de eleitores do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV).
O politólogo Luis Vicente Léon, director do instituto de sondagens Datanálisis, faz a seguinte análise: “A crise continuará a acentuar-se, as pessoas tornar-se-ão cada vez mais sensíveis, aumentando os riscos de explosão social. Falo de uma sociedade que se exprime espontaneamente todos os dias.” Mas é pessimista quanto à eficácia de uma insurreição de rua. “Há altas probabilidades de que seja um evento anárquico, num ambiente em que a oposição convencional não tem organização nem liderança para o capitalizar e que poderia perfeitamente cair nas mãos do governo, que reprime e controla a seu favor, ou de outros actores, que têm a força, a organização e as armas para o capitalizar.”
Ameaça de insolvência
Se Caracas entrar em incumprimento (default) terá graves implicações para países como o Brasil, Colômbia, Guiana, países das Caraíbas, Nicarágua ou Cuba, prevêem os economistas. A posição estratégica da Venezuela faz do país uma rota de transporte de drogas para os EUA e a Europa. Levará ao colapso político e à perspectiva de um grande desastre humanitário. Pela sua longa e porosa fronteira com a Venezuela, a Colômbia é o país mais vulnerável a um novo êxodo de populações.
“A Venezuela, pelo caminho que leva, é uma panela de pressão”, declara J.J. Rendón, um dos grandes consultores eleitorais da América Latina. “Já o disse muitas vezes: quando explode ninguém a controla, nem a oposição nem o regime.”
Quando o governo é incapaz de governar e a oposição incapaz de o destituir, a única saída seria negociar e tentar reunificar o país. Mas este parece o mais improvável dos cenários.