Iraque, evocações presidenciais
Costuma dizer-se que a memória é selectiva e que os relatos históricos são reconstruções narrativas, que não dispensam nem uma parte de interpretação nem alguma subjectividade. Até poderá ser assim, mas as chamadas fontes em história permitem colmatar lacunas e reconstituir factos passados. Posto isto, inspirado pela leitura dos semanários de fim de semana, atrevo-me a fazer uma breve revisitação dos anos 2002-2003 deste século, determinantes que foram para o caos que hoje se vive no plano internacional. Refiro-me ao Iraque.
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Costuma dizer-se que a memória é selectiva e que os relatos históricos são reconstruções narrativas, que não dispensam nem uma parte de interpretação nem alguma subjectividade. Até poderá ser assim, mas as chamadas fontes em história permitem colmatar lacunas e reconstituir factos passados. Posto isto, inspirado pela leitura dos semanários de fim de semana, atrevo-me a fazer uma breve revisitação dos anos 2002-2003 deste século, determinantes que foram para o caos que hoje se vive no plano internacional. Refiro-me ao Iraque.
Sendo certo que já em 2001 estava na agenda internacional, e sobremaneira na americana, em Portugal, a questão do Iraque só emerge no quadro dos contactos que então mantinha com o primeiro-ministro no início de Setembro de 2002. Lembro-me, concretamente, de uma extensa conversa telefónica sobre a matéria, a 9 de Setembro, aquando do seu regresso de um encontro na Sardenha, com congéneres europeus, durante o qual se teria desenhado com maior clareza a possibilidade, apoiada por ingleses, espanhóis e italianos, de uma intervenção no Iraque, mesmo sem mandato das Nações Unidas.
Recordo bem esta conversa não só por ter marcado a introdução da questão do Iraque na agenda interna, de que passou a ser um ponto recorrente, como por ter revelado ab ovo [de início] as diferenças de posição entre mim e o chefe do executivo. Este, para além de então ter esgrimido o argumento do interesse nacional, que seria o de preservar o elo atlântico no contexto europeu, mencionou ainda que lhe custaria ver certos países do lado dos EUA e Portugal com uma posição diferente – pensando porventura em Espanha –, não sem que, a rematar, me tivesse lembrado que cabia ao governo a condução da política externa, um preceito constitucional que me não ocorreria desrespeitar, mas que me não impedia de emitir opiniões, um direito que a Constituição igualmente reconhece ao Presidente.
A convicção certa, com que então ficara, de que o Iraque se viria a tornar num factor de polarização PR versus PM, foi-se adensando e tornou-se evidente no nosso encontro semanal de 19 desse mês, depois de uma intervenção do primeiro-ministro no Parlamento. Mas, para mim, não era menos premente a necessidade de gerir esta divergência de forma adequada, sem a tornar num factor de vulnerabilização do funcionamento regular das nossas instituições.
O último trimestre de 2002 foi marcado pelo peso crescente da questão do Iraque, quer no plano internacional – fosse das Nações Unidas, em que se deve destacar a aprovação da Resolução 1441 de 8 Novembro ou da NATO, tendo-se realizado a Cimeira de Praga nessa altura –, quer no europeu, com declarações recorrentes no âmbito dos Conselhos de assuntos gerais e das relações externas, reiterando o apoio ao teor da Resolução 1441 e o apelo ao “desarmamento do Iraque no que respeita às armas de destruição maciça”.
No entanto, a verdade é que a unanimidade que parecia subjazer a estas declarações, foi-se estiolando à medida que nos bastidores se intensificaram os indícios de que haveria uma iniciativa militar em preparação. Dentro desta lógica, a procura pelos EUA de apoios levou a uma clara polarização entre os parceiros europeus, de resto ao arrepio das opiniões públicas europeias que manifestaram uma rara unanimidade contra um conflito armado.
A divisão europeia tornou-se óbvia com, por um lado, a tomada de posição conjunta de Chirac e Schröder (22 de Janeiro de 2003) sobre a oposição a qualquer acção militar sobre o regime iraquiano e a chamada “carta dos Oito”, publicada a 30 de Janeiro, que, na véspera, o primeiro-ministro me informara ir assinar, embora sem me mostrar o texto, mas que enquadrou com argumentos semelhantes aos que viria a expender no Parlamento a 31 de Janeiro – ou seja, basicamente que para Portugal a neutralidade não era opção. Entre Fevereiro e Março desse ano, convoquei o Conselho de Estado por duas vezes e todas as intervenções públicas que fiz, designadamente na Declaração ao país a 19 de Março, já depois da Cimeira das Lajes, deixei sempre clara a importância de preservar o papel do multilateralismo na construção da paz e na resolução dos conflitos, bem como o da desejável unidade e autonomia europeias em matéria de política externa.
Sobre a Cimeira em si, e o processo que levou à sua realização nas Lajes – e não em Washington, Londres, Barbados e Bermudas, como terá sido ventilado –, a verdade é que a literatura internacional lhe dá pouca ou nenhuma importância e não tendo eu tido conhecimento dos preparativos, pouco posso dizer. No entanto, quero recordar aqui o telefonema que, pelas 7 da manhã de 14 de Março, recebi do primeiro-ministro, solicitando-me uma reunião de urgência. Para minha estupefacção, tratava-se de me informar que havia sido consultado sobre a realização de uma cimeira nos Açores, essa mesma que, nesse mesmo dia, a Casa Branca viria a anunciar para 16 de Março, daí a pouco mais de 48 horas… Não é preciso ser-se perito em relações internacionais para se perceber que eventos deste tipo não se organizam num abrir e fechar de olhos; e também não é necessário ser-se constitucionalista, para se perceber que não cabe ao Presidente autorizar ou deixar de autorizar actos de política externa.
De qualquer forma, transmiti claramente que tratando-se, como o meu interlocutor afiançava, de uma derradeira e essencial tentativa para a paz e evitar a guerra no Iraque nada teria a opor. Em relação a tudo isto, muito mais poderia recordar, para além da fotografia conhecida que registou um dos momentos mais gravosos deste século, quer seja sobre o papel de Portugal na dita Cimeira, sobre as conclusões da mesma ou ainda sobre tudo o que se seguiu e o início da guerra. Por falta de espaço, não o farei aqui hoje, mas, poderá o leitor interessado por esta questão recorrer ao trabalho sério de Bernardo Pires de Lima, A Cimeira das Lajes (2013), cuja leitura vivamente recomendo.
À laia de conclusão, quero sublinhar três pontos: o presidente tem o direito constitucional a mostrar a sua discordância perante a condução da política externa e não está obrigado a acatar, sem intervenção e passivamente, decisões assumidas pelo Governo; no caso que aqui nos ocupa, entendo ter conseguido uma posição equilibrada pois, por um lado, evitei de facto abrir um conflito institucional que em nada serviria o país, mas, por outro, ao me opor ao envio de tropas para o Iraque, afirmei decisivamente o papel efectivo do presidente como comandante supremo das Forças Armadas; quanto ao mais, quero reafirmar um princípio de natureza geral, é que na política como na vida, importam tanto os resultados como os processos, pelo que a estratégia dos factos consumados contribuem pouco para reforçar a confiança mútua que é o cimento dos laços sociais e do funcionamento das instituições em democracia.
Presidente da República, 1996-2006