Um roubo de 500 milhões, 13 obras de arte em parte incerta e um mafioso a quem chamam cozinheiro
É um mistério com 26 anos. Milhares de pistas, agentes infiltrados, o FBI a viajar pelo mundo inteiro e nada. Esta semana as autoridades fizeram novas buscas na casa de um homem ligado à mafia à procura de pistas que conduzam aos Vermeers, Manets e Rembrandts roubados de um museu de Boston.
1h24, 18 de Março, 1990. Dois homens vestidos de polícias, com bigodes falsos, tocaram à campainha do Museu Isabella Stewart Gardner, em Boston. Exigiam entrar porque tinham sido informados de distúrbios no edifício, uma construção ao estilo dos palácios venezianos do Renascimento inaugurada em 1903, com um pátio central ajardinado e que guarda uma das mais importantes colecções de arte privadas dos Estados Unidos. Havia apenas dois guardas de serviço, um na portaria e outro a fazer a ronda, e foi fácil subjugá-los. Algemados, com mãos pés e cabeça enrolados em fita adesiva, foram arrastados para a cave.
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1h24, 18 de Março, 1990. Dois homens vestidos de polícias, com bigodes falsos, tocaram à campainha do Museu Isabella Stewart Gardner, em Boston. Exigiam entrar porque tinham sido informados de distúrbios no edifício, uma construção ao estilo dos palácios venezianos do Renascimento inaugurada em 1903, com um pátio central ajardinado e que guarda uma das mais importantes colecções de arte privadas dos Estados Unidos. Havia apenas dois guardas de serviço, um na portaria e outro a fazer a ronda, e foi fácil subjugá-los. Algemados, com mãos pés e cabeça enrolados em fita adesiva, foram arrastados para a cave.
Durante 81 minutos os dois falsos polícias percorreram o museu e recolheram as obras de arte que mais lhes convinham, seguindo um critério - se de critério se pode falar - que ainda hoje intriga os especialistas. É certo que levaram um Vermeer de 175 milhões de euros e um raríssimo Rembrandt, mas deixaram para trás pinturas de Ticiano, Botticelli e Rafael incomparavelmente mais valiosas do que os desenhos de Degas ou o vaso chinês que fizeram questão de transportar para o carro que tinham deixado junto à entrada lateral do museu. Fugiram em seguida e para trás ficaram molduras vazias e vidros partidos. As molduras continuam penduradas nas paredes lembrando as pinturas, mas também o que aconteceu. É possível vê-las bem na visita virtual que o site do museu dedica ao roubo e que reúne muita documentação relacionada com o espólio, de fotografias antigas a recibos, passando por listas e cartas a intermediários.
Passados 26 anos, o roubo no museu criado por Isabella Stewart Gardner (1840-1924), uma excêntrica milionária que viajou pelo mundo comprando o que de melhor os marchands e os leilões dentro e fora da Europa tinham para oferecer, continua envolto em mistério. Ninguém foi dele acusado e as 13 obras desaparecidas continuam em parte incerta, apesar da recompensa de cinco milhões de dólares (4,3 milhões de euros) que o museu oferece a quem forneça informações que conduzam à recuperação das obras em bom estado de conservação. O FBI, que no seu site classifica o roubo como um dos dez maiores de sempre no que à arte diz respeito e que está encarregue da investigação desde o início, não tem largado o caso, seguindo milhares de pistas pelo mundo inteiro.
Hoje, as mais sólidas parecem ser, no entanto, domésticas. Esta semana os agentes federais voltaram a fazer buscas na casa de Robert “Bobby the Cook” Gentile em Manchester, no Connecticut. Quem é Gentile? Um homem de 79 anos com problemas de diabetes e coração, confinado a uma cadeira de rodas, ligado ao crime organizado desde os anos 1950. E que está hoje detido à espera de julgamento, embora a sua prisão não esteja directamente relacionada com o roubo.
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É a terceira vez que o FBI entra nesta casa que o diário The New York Times caracteriza como modesta, onde Gentile, que ainda tem na garagem um Buick de 1989 que costumava conduzir, vive com a mulher. Nela não há sinais de riqueza. Segundo o jornal Boston Globe, que cita o seu advogado, Ryan McGuigan, as autoridades forenses terão procurado provas da ligação de Gentile ao roubo sobretudo no exterior, junto a uma chaminé perto de um tubo de ventilação que conduz a um tanque, com recurso a cães e a detectores de metais.
McGuigan, que diz não ter conhecimento do objectivo das buscas, acrescentou ainda que, quando informado de que o FBI voltara a sua casa, Gentile dissera, lacónico: “Eles não vão encontrar nada.”
“Nada” que tenha a ver com a arte roubada. Escrevem o Hartford Courant, o maior jornal do Connecticut, e a revista The Atlantic, que os agentes voltaram a confiscar muito armamento, incluindo uma metralhadora. Chegaram em 15 carros e três camiões com maquinaria. E procuravam informações relacionadas com o roubo. Mas Kristen Setera, porta-voz do FBI, limitou-se a garantir à imprensa que as buscas tinham sido autorizadas por um tribunal, recusando-se a dizer com que propósito tinham sido levadas a cabo. “Estão relacionadas com uma investigação federal em curso”, rematou.
“Mafioso reconhecido”, assim o definem televisões e jornais norte-americanos, Gentile sempre negou qualquer envolvimento no roubo no museu. O seu cadastro inclui agressões violentas, o que não é de estranhar para quem estava alegadamente encarregue de garantir a segurança de algumas das principais figuras do crime organizado de Filadélfia, jogo ilegal, receptação de bens roubados, contrafacção e estelionato (vendeu duas vezes o mesmo património ligado ao seu pai), mas nada relacionado com o mercado da arte.
Gentile, que chegou a trabalhar como operário da construção civil e que teve um restaurante com o irmão, ganhou a alcunha de “cozinheiro” porque costumava preparar as refeições para outros membros da mafia que se reuniam numa garagem em Hartford.
“Bobby the Cook” foi detido no ano passado pelo FBI e está a aguardar julgamento na prisão acusado da venda ilegal de uma arma (o potencial comprador era um agente federal à paisana). Deverá comparecer em tribunal em Julho, segundo o Boston Globe. O seu advogado tem defendido que o cliente está a ser perseguido pelas autoridades. McGuigan argumenta que o governo está a servir-se das acusações que o levaram à prisão em 2015 para o obrigar a entregar as pinturas e desenhos roubados. E que usou informadores dentro da mafia para o forçar a falar.
Numa das buscas anteriores que fez à casa de Gentile em Manchester, em 2012, a polícia encontrara uma lista das obras roubadas com a respectiva estimativa do valor de mercado de cada uma escondida num exemplar da edição do Boston Herald de 1990 que noticiava o roubo. Isto além de um verdadeiro arsenal de armas e de vários tipos de drogas.
John Durham, procurador assistente, reconheceu o recurso a um informador para que estivesse atento a qualquer conversa de Gentile sobre o Isabella Stewart Gardner, mas nada mais. Segundo Durham, o criminoso falhara no detector de mentiras a que o FBI o submetera quando questionado. A perguntas como “Sabia que aqueles quadros iam ser roubados?”, “Teve alguns dos quadros roubados na sua posse?” e “Sabe onde se encontra hoje alguma daquelas pinturas?” Gentile respondeu “não” e a máquina “decidiu” que ele estava a faltar à verdade.
Em Janeiro do ano passado, um advogado de acusação informou ainda um juiz no Connecticut de que Gentile dissera pelo menos a três pessoas que tinha acesso às obras roubadas, chegando mesmo a acordar a venda com uma delas. Mais uma vez o potencial comprador era um agente do FBI, que então se fazia passar por um traficante de droga, que deveria adquirir as obras por 500 mil dólares cada (430 mil euros). O negócio acabou por cair.
Caça ao homem
As autoridades começaram a concentrar-se em Robert Gentile em 2009, quando a viúva de um homem ligado à investigação disse a dois agentes do FBI que o seu marido dera duas das pinturas roubadas ao criminoso cinco anos antes.
Em 2013, o FBI de Boston revelou que os ladrões pertenciam a uma organização criminosa da Nova Inglaterra e que tinham levado as obras para o Connecticut e a Pensilvânia anos depois do roubo, procurando então compradores a partir de Filadélfia. Segundo os agentes, era bem provável que alguém ligado ao museu os tivesse ajudado, talvez mesmo um funcionário. As suspeitas recaíram sobretudo num dos guardas de serviço naquela madrugada de Março de 1990, Richard Abath. Mas nada se confirmou. O mesmo se passou em relação a outros potenciais envolvidos, incluindo um guionista e vários gangsters, uns mais poderosos que outros.
A caça ao homem – e às obras - levou a investigações no Japão, Irlanda, Inglaterra, Espanha, Rússia, Canadá, França e diversas cidades americanas, como Nova-Iorque, Filadélfia e Miami, envolvendo as autoridades locais e até a Interpol. Mas nunca ninguém foi acusado formalmente do roubo, algo que agora é, aliás, impossível.
Explica o Boston Globe que os ladrões não podem ser levados a tribunal porque há já muito que o crime prescreveu – a lei dá até cinco anos para que se produza uma acusação. No entanto, quem seja apanhado na posse das obras roubadas, a mudá-las de um sítio para outro ou a tentar vendê-las, terá de responder perante a justiça.
A lista das obras roubadas é impressionante: pinturas de Rembrandt van Rijn (A Lady and Gentleman in Black e The Storm on the Sea of Galilee, a única paisagem marítima conhecida do mestre holandês), Johannes Vermeer (The Concert é uma das pouco mais de 30 obras conhecidas deste artista e uma das favoritas da coleccionadora Isabella Stewart Gardner, que se orgulhava de ter batido vários museus que a disputavam em leilão), Édouard Manet (Chez Tortoni) e Govaert Flinck (Landscape with Obelisk); e desenhos de Edgar Degas (La Sortie de Pesage, Cortège aux Environs de Florence, Program for an artistic soirée (1), Program for an artistic soirée (2), Three Mounted Jockeys), e Rembrandt (um auto-retrato pouco maior do que um selo). Entre as 13 peças roubadas há ainda um vaso antigo chinês e uma águia em bronze que fazia parte de uma bandeira napoleónica.
Os agentes federais, que já vasculharam incontáveis lugares à procura das obras, incluindo a casa de um importante empresário no Japão e muitas caves e sótãos, acreditam que é bem possível que quem as tinha na sua posse tenha morrido: “Pode acontecer que estejam escondidas num lugar qualquer, sem que ninguém saiba hoje dizer onde”, disse ao Boston Globe em Março do ano passado o homem encarregue de supervisionar a investigação em nome do FBI, Geoff Kelly.
Uma das teorias avançadas durante estes anos vai nesse sentido. Stephen Kurkjian, antigo repórter do Boston Globe, escreve no seu livro Master Thieves, lançado no ano passado, que um chefe da mafia, Vincent Ferrara, garante que um dos seus colaboradores, Robert Donati, lhe confessou em 1990 ter participado do roubo e enterrado as obras. Onde as terá escondido ninguém sabe – Donati foi encontrado morto na bagageira do seu carro em 1991. E a ser verdade o que disse a Ferrara, o segredo da localização do saque pode ter morrido com ele.
"Vivo na esperança"
A anterior directora do museu, Anne Hawley, que acabara de chegar quando seu deu o roubo e que ocupou o cargo nos 25 anos seguintes, recusa-se a acreditar que as obras se perderam para sempre. No ano passado, quando os jornais americanos se desdobravam em artigos para lembrar que passara já um quarto de século sem que se tivesse conseguido encontrar o responsável ou responsáveis pelo maior roubo de arte nos Estados Unidos, Hawley recordava aqueles tempos difíceis. Os funcionários ficaram traumatizados, havia uma “hostilidade na imprensa” em relação ao museu e os visitantes, claramente em choque com o sucedido e com saudades das “suas” pinturas, pareciam responsabilizar toda a equipa. “As pessoas estavam zangadas com o museu”, disse a directora ao Boston Globe. “Foi devastador.”
Nos anos seguintes Anne Hawley envolveu-se a fundo nas investigações, carregadas de milhares de pistas falsas. Chegou mesmo a encontrar-se secretamente com pessoas que afirmavam estar em condições de negociar a restituição de uma ou outra pintura, recebeu ameaças de morte e deixou de sair sozinha à noite, voltando para casa todos os dias por caminhos alternativos que o FBI ia determinando. Por duas vezes teve de fechar o museu devido a avisos de bombas.
“Pode ser uma loucura, mas eu simplesmente não acredito que nunca as teremos de volta”, admitiu a directora em 2015. “Vivo na esperança [de que regressem].”
Robert Gentile, diz o FBI, pode ser dos últimos – se não o último – a ter informações sobre este roubo que parece em tudo rudimentar, longe da espectacularidade a que o cinema nos habituou (não há nele nada de O Caso Thomas Crown ou de Ocean’s Twelve). Resta saber se a polícia federal tem razão. E se “Bobby the Cook” vai falar.