O Brasil tem dificuldade em escrever a própria história

Tatiana Salem Levy é brasileira e vive em Portugal. Paraíso, o seu mais recente romance, é um diálogo com a História em forma de exorcismo de fantasmas, pessoais e colectivos.

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Pedro Loureiro

Tatiana Salem Levy (n. 1979) estreou-se na literatura com o romance A Chave de Casa (Cotovia, 2007), considerado pelo jornal inglês The Guardian um dos livros do ano de 2015. Nasceu em Lisboa durante o exílio dos seus pais, fugidos à ditadura militar brasileira, mas foi para o Rio de Janeiro aos nove meses de idade quando os pais decidiram regressar aproveitando uma amnistia. Voltou para viver em Portugal há cerca de dois anos, onde acabou de escrever Paraíso, o romance agora publicado (a edição brasileira é de 2014).

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Tatiana Salem Levy (n. 1979) estreou-se na literatura com o romance A Chave de Casa (Cotovia, 2007), considerado pelo jornal inglês The Guardian um dos livros do ano de 2015. Nasceu em Lisboa durante o exílio dos seus pais, fugidos à ditadura militar brasileira, mas foi para o Rio de Janeiro aos nove meses de idade quando os pais decidiram regressar aproveitando uma amnistia. Voltou para viver em Portugal há cerca de dois anos, onde acabou de escrever Paraíso, o romance agora publicado (a edição brasileira é de 2014).

O começo de Paraíso agarra de imediato o leitor com a revelação de que a protagonista, Ana – uma jovem escritora – teve uma relação sexual ocasional, sem protecção, com um homem HIV positivo (este só lhe revela o facto depois). Enquanto espera o resultado dos exames, as memórias do passado regressam e com elas a história que se contava na família: no século XIX, o barão de uma fazenda de café tinha por amante uma escrava, que na sua tribo africana era princesa e sacerdotisa. A mulher do senhor, ao descobrir que fora traída ordenou que a escrava fosse enterrada viva; ao ser posta na cova, a mulher lançou a maldição: “durante cinco gerações, as mulheres da sua família seriam infelizes no amor”. Ana pertence à última. E decide isolar-se (num sítio chamado Paraíso, pertença de uma amiga) para escrever a história dessa escrava e das cinco gerações de mulheres que antecederam a protagonista, “acreditando que se conseguisse decifrar os mistérios que envolviam o passado ficaria livre das palavras proféticas da sacerdotisa”.

Em Paraíso, os tempos sobrepõem-se, bem como muitas vezes a voz do narrador e a da personagem, que pode falar em discurso directo na mesma frase de quem conta. A narrativa vai-se construindo em fragmentos, por um lado a que tem lugar no presente, por outro a do passado longínquo contado pela escrava, que inclui a vida das mulheres amaldiçoadas. “Isso tem muito a ver com a temática principal dos meus três romances, que é a memória”, contou Tatiana Salem Levy ao Ípsilon. “Algures no livro há uma passagem que diz algo do género: não é ela que escolhe a memória. Ana não entende por que se lembra de determinadas situações, e não de outras. Escrever é, entre outras coisas, uma tentativa de dar sentido a esses momentos passados que retornam de forma insistente e casual. Mas a memória é sempre fugaz. Quando achamos que chegamos lá, ela nos escapa. Contradiz-se, e nos contradiz. Daí a forma narrativa do fragmento se repetir nos meus romances. É uma forma que está ligada à própria ideia da memória, em que tudo aparece aos bocados.”

Parte da escrita do romance, à semelhança do que acontece com a protagonista, também aconteceu algures num sítio isolado, como se a escrita precisasse da experiência de suspensão do tempo, “como se a literatura fosse capaz de interromper a sua passagem”, diz Tatiana Salem Levy. E continua: “Preciso dessa sensação de estar de alguma forma fora do mundo e do tempo. E isso me é mais possível se estou fora de casa e sozinha. Eu estava escrevendo outro romance, que não tem nada a ver com este Paraíso, quando fui para o sítio de uma amiga. Aos poucos, o lugar foi tomando conta da minha imaginação, e quando vi estava deixando de lado o outro romance – que será o próximo – e escrevendo uma história que se passava lá. Tudo aconteceu por acaso. E eu gosto dessa sensação de me deixar levar pelo acaso. De não ser eu a escolher tudo, de que as coisas de alguma forma se escolhem.”

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Nasceu em Lisboa durante o exílio dos pais, fugidos à ditadura militar brasileira, mas foi para o Rio de Janeiro aos nove meses quando os pais regressaram durante uma amnistia. Voltou para Portugal há dois anos, onde acabou de escrever Paraíso Pedro Loureiro

Paraíso, um romance polifónico, é uma espécie de vórtice a girar ao contrário, as memórias vão saindo em catadupa para deixar as personagens à beira do abismo. Não apenas Ana, a protagonista, é atormentada pelo seu passado e pelo dos que lhe são próximos, as irmãs e a mãe. Também Daniel, um jovem artista que foi viver para o sítio uma experiência de isolamento na mata (sem electricidade, Internet, telefone ou água canalizada), é assaltado pela memória do avô judeu que escondeu a identidade ao chegar ao Brasil. Há em Tatiana Salem Levy uma vontade clara de dissecar os mecanismos da memória, desmontando-os. “A memória desafia a própria ideia de verdade. A cada vez nos lembramos de uma maneira diferente, já não sabemos como as coisas aconteceram realmente. Cada pessoa se lembra de um evento à sua maneira. Por isso também há sempre mais do que uma voz nos meus romances. Não acredito numa verdade única, preciso sempre de, no mínimo, duas vozes naquilo que escrevo.”

Violência contra a mulher

Mas a memória em Paraíso não é apenas um assunto pessoal. Ana, a protagonista escritora, ao dar voz à escrava enterrada viva no século XIX, está a desenterrar memórias do Brasil. Nos romances de Salem Levy, a memória, apresentada polifonicamente para sublinhar a sua subjectividade, extravasa sempre o campo pessoal e projecta-se no histórico e político, não como um acerto de contas mas como uma espécie de exorcismo, de diálogo com fantasmas pessoais e da História. Neste romance, a voz da escrava (que por vezes parece desajustada) é a voz do passado a tornar-se presente – não apenas no seu lado formal de sobreposição de tempos narrativos – são as marcas de uma violência, de vários tipos de violência. E um dos quais, presente (nem que seja de uma maneira não enunciada) ao longo de todo o livro, é a violência contra a mulher, que surge na pessoa da protagonista, também da mãe, e de Rosa, a empregada que serve na casa do sítio.

A escolha foi propositada, confessa a autora: “Neste romance houve uma escolha de falar na questão da violência contra a mulher. Tanto da violência que acontece em casa – que eu não gosto muito de chamar de doméstica porque parece que não diz respeito a mais ninguém – quanto da violência pública. O Brasil vive uma contradição muito grande nesse aspecto: por um lado, vendemos a imagem da mulher extremamente livre. E, num certo sentido, essa mulher brasileira livre existe de facto. Mas por outro lado sofremos uma opressão enorme. Vivemos num país profundamente machista. Não somos criadas a ser donas do nosso próprio corpo. É isso que ouvimos o tempo todo quando nos dizem que não podemos fazer aborto, que a escolha não é nossa, ou quando nos dizem que se uma mulher foi violada é porque provocou. Essa contradição está presente no romance.” O debate público acerca da violência sobre a mulher, a tomada de consciência de que ela existe de maneira muito séria, é um assunto da ordem do dia no Brasil, e isso acabou por se repercutir em Paraíso, como Salem Levy confessa: “enquanto eu escrevia o livro, em 2014, por coincidência começou um movimento muito forte de as mulheres começarem a falar abertamente sobre isso. Eu estava aqui em Lisboa, mas acompanhei tudo, e esse movimento me deu mais vontade de escrever este romance, senti-me fazendo parte de uma onda colectiva maior, necessária.”

Por coincidência, Paraíso chegou às livrarias nos mesmos dias que se discutia no Brasil o impeachment à presidente Dilma. E claro que o assunto não poderia deixar de vir à conversa tida com a autora, sobretudo porque o romance dialoga com a História brasileira. “Somos um país com muita dificuldade em escrever a própria História. Só um país assim permite que um deputado faça uma homenagem pública ao golpe de 1964 e a um dos piores torturadores da ditadura militar. Acredito que a literatura seja fundamental para a escrita da memória de um país. Por isso, esse período funesto [da ditadura] está presente em todos os meus livros. Acho que é um fantasma com o qual ainda não sabemos lidar. E com o qual precisamos de lidar. É fundamental deixar os mortos falarem, escutarmos o que têm a dizer.”