Nada havia a temer: os AC/DC com Axl Rose ainda são os AC/DC
Todos os olhares se concentraram no vocalista dos Guns N'Roses para constatar uma evidência: seguro do seu papel, Axl Rose fez justiça à banda e ao seu legado. No Passeio Marítimo de Algés, prova superada com distinção.
Havia muita expectativa para o concerto de sábado no Passeio Marítimo de Algés. Porque, à partida, não se tratava apenas de mais um concerto dos AC/DC. Como poderia sê-lo, se pela primeira vez em 36 anos não estaria em palco Brian Johnson, o vocalista que em 1980 substituiu com autoridade o julgado insubstituível Bon Scott? Como poderia sê-lo se no lugar de Johnson, obrigado a retirar-se por risco de surdez, surgiria Axl Rose, o sempre controverso vocalista dos Guns N'Roses que, após ser anunciado como vocalista temporário da banda de Highway to hell, provocou nas redes sociais acessos de irritação e desespero entre os fãs?
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Havia muita expectativa para o concerto de sábado no Passeio Marítimo de Algés. Porque, à partida, não se tratava apenas de mais um concerto dos AC/DC. Como poderia sê-lo, se pela primeira vez em 36 anos não estaria em palco Brian Johnson, o vocalista que em 1980 substituiu com autoridade o julgado insubstituível Bon Scott? Como poderia sê-lo se no lugar de Johnson, obrigado a retirar-se por risco de surdez, surgiria Axl Rose, o sempre controverso vocalista dos Guns N'Roses que, após ser anunciado como vocalista temporário da banda de Highway to hell, provocou nas redes sociais acessos de irritação e desespero entre os fãs?
A expectativa era, portanto, muita. Não só entre o público reunido no Passeio Marítimo de Algés, que se terá aproximado dos 50 mil espectadores – os bilhetes devolvidos quando da revelação de quem seria o novo vocalista terão sido revendidos a novos interessados –, mas também mundo fora: tratava-se do primeiro concerto da nova formação e todos queriam testemunhar do que ela seria capaz. Os sentimentos iam da simples curiosidade à expectativa mórbida de ver um desastre a acontecer – por alguma razão estavam mais de três dezenas de órgãos de imprensa estrangeira acreditados; por alguma razão eram milhares os espanhóis, ingleses ou franceses que viajaram até Portugal para serem espectadores da estreia de Axl com os AC/DC.
Para tornar toda a envolvência mais dramática, as previsões meteorológicas assustavam-nos com a perspectiva de chuva intensa, vento forte e, possivelmente, trovoada. Tudo conjugado para a tempestade perfeita. Mas quando a banda suporte, os americanos Tyler Bryant & The Shakedown, tocou as primeiras notas, viu-se sol pela primeira vez na tarde chuvosa e cinzenta, o público protegido com impermeáveis e de cabeça decorada com chifres de mafarrico (ou cornichos de AC/DC, para sermos precisos) aplaudiu alegremente a aberta, e a água deixou de cair dos céus. E depois, sem chuva à vista, perspectiva de temporal já esquecida, começou a acção a sério.
21h04. Nos ecrãs, passa um vídeo de épicos contornos cartoonescos, como é habitual na banda australiana. Astronautas descendo sobre a lua. A voz de Neil Armstrong: “um pequeno passo para o homem, um passo gigante para a Humanidade”. A surpresa: os astronautas deparam-se com uma massa incandescente onde se lê AC/DC. A massa transformar-se-á em cometa acelerando em direcção à Terra e explodirá sobre uma cidade. Essa que era, naquele momento, o Passeio Marítimo de Algés. Explode a pirotecnia, liberta-se o rock'n'roll. Ouve-se Rock or Bust, tema título do último álbum dos AC/DC e da digressão que agora iniciam na Europa. Angus Young com o obrigatório uniforme de colégio e o fiel baixista Cliff Williams atrás de si, bem como o regressado baterista Chris Slade e o guitarrista Stevie Young, sobrinho de Angus e de Malcolm, o guitarrista ritmo tragicamente obrigado a abandonar a banda após lhe ter sido diagnosticada demência. E, ao centro, sentado numa poltrona, o homem em quem se concentram todos os olhares: Axl Rose.
À primeira canção parece evidente. À segunda, o clássico Shoot to thrill, não temos dúvidas. Axl Rose encarna na perfeição o rock'n'roll hedonista, glorificador dos seus excessos e da sua mitologia, de que são feitos os AC/DC. A voz viaja pelas canções com convicção e prazer evidente, e Rose, confinado à poltrona por culpa de uma perna partida, há-de crescer em entusiasmo. Quando muito mais à frente chegamos a Whole lotta Rosie, não nos surpreenderíamos que o homem se erguesse e percorresse o palco nas correrias a que nos habituou nos Guns N'Roses.
Todos os clássicos
Na verdade, o maior elogio seria afirmar que Axl Rose cantou com os AC/DC e que, no fim do concerto, saciados, exclamaríamos: foi “apenas” mais um concerto dos AC/DC – no sentido em que a banda australiana, máquina infalível, teria cumprido novamente com distinção o seu papel de celebração do sagrado riff e da abençoada electricidade com batida segura a condizer. Tendo em conta o contexto, não foi obviamente “apenas” mais um concerto dos AC/DC. Foi o concerto em que ficou provado que nada havia a temer.
Sem alterações substanciais em relação aos alinhamentos que vinham apresentando nos Estados Unidos antes da inesperada saída de Brian Johnson, ouviram-se no Passeio Marítimo de Algés os clássicos de sempre. Back in black para primeira explosão de alegria entre o público, Dirty deeds done dirt cheap para mostrar que Axl Rose não só trata bem a memória de Brian Johnson, mas também a de Bon Scott. Uma titubeante Thunderstruck perante a qual, por ser o hino que é, qualquer falha é perdoada, e Hell's bells para diminuir o ritmo para um andamento mais diabólico enquanto um sino gigante desce das alturas.
Angus Young, poço de energia inesgotável, correu de um extremo ao outro do palco, avançou pela passadeira que se estendia sobre a plateia, riffou e solou com o frenesim que é imagem de marca. Saltitou naquele passo que adoptou de Chuck Berry e tocou a rodopiar no chão da plataforma que se foi erguendo no auge da Let there be rock que, imediatamente antes do encore, serviu de cenário para o guitarrista brilhar prolongadamente.
Axl Rose, por sua vez, foi desde o seu trono um mestre-de-cerimónias sereno e pouco dado a espalhafato. Entre canções, comunicou de forma breve, apresentando Whole lotta Rosie com uma nota biográfica – foi a primeira canção dos AC/DC que ouviu, era ele adolescente e a rádio companhia obrigatória –, ou anunciando, com humor, que a próxima música fora escrita pela banda para descrever a sua vida – título: Shot down in flames. Enquanto vocalista, esteve seguríssimo no seu papel, tecnicamente inatacável. Tanto que, quando tudo terminou, ouvimos de passagem algo que seria impensável algumas horas antes: entrevistada para uma equipa de reportagem francesa, uma fã dos AC/DC defendia que, em alguns momentos, Axl Rose tinha mesmo superado Brian Johnson. Não iríamos tão longe. Brian Johnson “é” os AC/DC e Axl Rose, por razões óbvias, nunca será. Mas durante aquelas duas horas, e certamente nas duas horas que se seguirão nos próximos concertos da digressão, cumpriu o seu papel com distinção.
Tivemos High voltage e T.N.T. e tivemos You shook me all night long e Rock'n'roll train. O corpo de formas exageradas de uma meretriz de saloon insuflável fez a sua aparição em Whole lotta Rosie e o encore trouxe a inevitável Highway to hell, a preciosidade Riff raff e uma épica For those about to rock (we salute you), marcada por disparos de canhão e finalizada com fogo-de-artifício.
Durante duas horas, o rock'n'roll dos AC/DC foi um festim de história e das canções que a compõem. Montado com empenho e cativante naturalidade pela banda e celebrado efusivamente pelo público. Foram os AC/DC com Axl Rose. Foram os AC/DC, muito simplesmente. E é esse, de facto, o maior elogio que poderemos fazer ao que assistimos no Passeio Marítimo de Algés.