Retrato de cowboy de botas e sombrero com aldeia portuguesa em fundo
Não é a figura mais típica que se espera encontrar numa aldeia transmontana, é uma personagem que traz "um filme" com ela: botas de cowboy e sombrero. Maya Kosa e Sérgio da Costa, nascidos na Suíça, de origem portuguesa ele, de origem polaca ela, oferecem.lhe esse "filme": Rio Corgo.
Entra-se em Rio Corgo com um longo travelling, acompanhando um homem por uma rua de aldeia abaixo, enquanto a voz off, que instintivamente compreendemos ser a desse homem, debita um sem-número de nomes de localidades portuguesas mais ou menos remotas. É um movimento de "mergulho", porque a rua é a descer, e é um movimento de "perseguição", porque é a câmara que vai atrás do homem, sempre de costas. Começamos, portanto, por conhecer Silva, o protagonista de Rio Corgo, como uma silhueta, e uma estranha silhueta, vestida de negro, grande saco branco às costas, botas de cowboy e um enorme sombrero.
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Entra-se em Rio Corgo com um longo travelling, acompanhando um homem por uma rua de aldeia abaixo, enquanto a voz off, que instintivamente compreendemos ser a desse homem, debita um sem-número de nomes de localidades portuguesas mais ou menos remotas. É um movimento de "mergulho", porque a rua é a descer, e é um movimento de "perseguição", porque é a câmara que vai atrás do homem, sempre de costas. Começamos, portanto, por conhecer Silva, o protagonista de Rio Corgo, como uma silhueta, e uma estranha silhueta, vestida de negro, grande saco branco às costas, botas de cowboy e um enorme sombrero.
Não é a figura mais típica que se espera encontrar numa aldeia transmontana, intui-se que é uma personagem que traz "um filme" com ela. Maya Kosa e Sérgio da Costa, dois jovens realizadores à roda dos 30 anos, nascidos na Suíça, de origem portuguesa ele, de origem polaca ela (mas com contacto frequente com Portugal desde os dez/doze anos, como nos conta), oferecem-lhe esse "filme", tornam-no visível: Rio Corgo é um filme duma personagem e para uma personagem, esse estranho Silva, ex-prestidigitador entre muitas outras coisas, homem com um passado que volta sob a forma de visões e alucinações (a mulher amada há muito perdida), e possuidor de um inusitado sentido de showman. Mais do que outro filme sobre o interior rural português (Relvas, em Trás-os-Montes), Rio Corgo é um retrato de um homem com aldeia em fundo, o recorte de uma estranheza numa paisagem, afinal, familiar.
Fazer truques
Em conversa com o Ípsilon, Maya e Sérgio explicam que tudo nasceu de um encontro fortuito. Estavam num café, na aldeia de mãe de Sérgio, a trabalhar nas répérages para outro filme, quando Silva lhes apareceu e se impõs: "Começou logo a fazer truques com um baralho de cartas". Farejando de imediato a presença de uma personagem, perguntaram-lhe "directamente se queria entrar num filme", e ele quis. Ia para o Norte, tinha encontrado uma casa em Relvas, e os dois realizadores foram com ele. Isto era o Verão de 2013 e ficaram com ele duas semanas, para o conhecer e para se embeberem daquela personalidade – "até evitámos ao máximo conhecer outras pessoas". As primeiras cenas foram filmadas em Fevereiro seguinte, quando voltaram e encontraram Silva bastante abatido – há uma longa história de depressão que o filme aflora, de forma mais alusiva do que explicita. O que filmaram então, no Inverno, foram aqueles planos nevados do final, onde o corpo de Silva, tombado sobre a neve a simular a sua própria morte, parece saido de um western-spaghetti qualquer. Só depois se seguiu o resto da rodagem, mais três meses, encontrada uma ideia de estrutura para o filme e um argumento que punha Silva em ligação com a aldeia e as suas figuras, nomeadamente uma miuda adolescente e um acordeonista.
Silva tem o dom da fala e, pelo menos ao que se vê e ouve no filme, um sentido da dicção que está algures, indefinivelmente, entre a naturalidade e o artifício da declamação. Torna-se evidente que tem um "texto" mas a questão é: a quem pertence esse texto? É dele ou dos realizadores? "O que ele diz no filme são coisas que ele já tinha dito nas répérages e nos ensaios”, coisas apanhadas e escolhidas por Maya e Sérgio, eventualmente reescritas e devolvidas a Silva. "Na rodagem estava basicamente a aprender e decorar um diálogo que já tinha dito, sobretudo no que toca às partes biográficas". Um dos aspectos interessantes de Rio Corgo, de resto, é estar sempre a deixar em aberto uma espécie de "luta de poder", tão forte é aparência auto-consciente de Silva, o seu sentido de personagem: quem manda no filme, quem manda em Silva, manda ele ou mandam os realizadores?
"É um homem que está à vontade com a representação na vida real, que tem a noção de ter construido uma personagem para a vida de todos os dias – as botas, o chapéu, os truques de magia". Portanto, nesse sentido, o artifício é natural nele, "a personagem que ele exibe perante a câmara não foi feita para ela, já existia antes". Ainda assim foi preciso domar esse agudo sentido de representação: "No início queria fazer coisas como tinha visto nos filmes, havia em particular um velho actor espanhol de outros tempos de que ele gostava muito e queria imitá-lo mas quando o fazia ficava muito extravagante”. Era preciso fazê-lo descer o tom: “diziamos-lhe 'tenta fazer isso de maneira mais simples'”. O que não impede que a aura da personagem seja especialmente tocante quando ele age como um actor abandonado, como aquelas figuras de alguns westerns que andam a passear memórias dos palcos de saloon em saloon sem ninguém para os ver ou ouvir. “E também gostávamos disso, das cenas em que ele se impunha e extrovertia; guardámos algumas coisas – na cena do tanque, quando ele faz aquele longo discurso, é obvio que ele está a tombar para o teatro, mas aí sentimos que era justo em relação ao monólogo e àquela carga nostálgica".
Afinal de contas, essa é uma tensão permanente no filme, o artificio e o naturalismo a imiscuirem-se, a realidade e a irrealidade a baralharem-se. "O que nos interessava eram as cenas e os momentos em que entrava uma espécie de décalage, em que sem abandonarmos o naturalismo irrompia um pouco de irrealidade, ou em que o artifício e o imaginário aparecessem com a força da realidade". Isso é especialmente visível nas cenas passadas no hospital, já perto do fim, que reproduzem um episódio verídico da vida de Silva (o seu internamento na sequência de uma crise de depressão), e são portanto "reconstituição", mas que também restituem, com toda a força da palpabilidade, as suas visões e alucinações, aquele grupo de mulheres "que ele dizia que vinha para o salvar e proteger". São as cenas mais teatrais do filme: “aí é outro tipo de jogo, passamos a outra dimensão, podemos ser mais teatrais, porque estamos no domínio da alucinação, das visões”. Mas este filme sempre a balançar entre realidade e representação, "mise en scène" e registo, ainda acabou por ter uma oferta inesperada: "a sequência da procissão foi feita para nós e só soubemos isso depois”. Como se entrassem no jogo das camadas de representação sobre a realidade sobre a representação, "a aldeia quis ofercer alguma coisa ao filme". Maya e Sérgio não tiveram dúvidas em aproveitar a oferta: "De qualquer modo, e desde o princípio, não queríamos o filme do costume sobre a aldeia , com um programa típico, com mais uma matança do porco, etc. A proocissão pareceu-nos que entrava bem naquela fronteira com a alucinação, foi fácil decidir que a utilizaríamos no filme".
De certa forma, a alucinação ou a irrealidade são também a maneira como dois jovens com ligações a Portugal mas com uma vida centrada e vivida maioritariamente longe daqui podem entrar no universo da ruralidade portuguesa. Apesar de uma ligação afectiva ao cinema português (Maya fala da descoberta de Manoel de Oliveira aos 17 anos, a que seguiram César Monteiro, António Reis, e o "grande choque" da descoberta de Pedro Costa, o de Ossos e de No Quarto da Vanda) sentiam algum receio: "Tínhamos dúvidas sobre a legitimidade que nos pudesse ser reconhecida", Sérgio tem razies portuguesas fortes e directas "mas punha-se a questão de não ser a nossa terra". "Stressaram" muito no DocLisboa do ano passado, sentiram-se reconfortados quando o filme foi tão bem aceite que até venceu a competição portuguesa. "Falar de uma cultura que não é a nossa, dava-nos receio".
Por falar nisso, numa relação com o cinema português, há um momento na cena do hospital em que se dá um salto na cadeira. Diz Silva, com toda a elegância do vernáculo bem dito e pronunciado: "quero que as más línguas se fodam". Dois segundos bastam para nos lembramos de onde já ouvimos aquilo, dito com as mesmas entoação e dicção: a célebre reportagem televisiva com João César Monteiro, em grande forma, na ante-estreia do famigerado Branca de Neve, há uma quinzena de anos (e um clip que hoje é um pequeno êxito no YouTube). Só pode ser citação expressa. Os realizadores riem-se: "faz parte da nossa lista de copy-pastes, é uma frase de que sempre gostámos, temo-la sempre na cabeça, queríamos usá-la uma vez na vida”. Conhecem as frases de César de cor e salteado, vêm aquele clip pelo menos duas vezes por ano. "Mas imaginámos que a citação passasse despercebida"... Aí, enganaram-se.