Morreu Querubim Lapa, o pintor que se escondia atrás da cerâmica
Autor de uma obra múltipla – pintura, desenho, escultura, azulejo, gravura –, distinguiu-se sobretudo pelo seu trabalho na cerâmica. Tinha 90 anos.
Embora a maioria o conheça pela obra na cerâmica em ruas, avenidas, escolas e outros edifícios públicos e privados, Querubim Lapa nunca se fixou numa só arte. Fez desenho, gravura, tapeçaria, escultura. E nunca deixou de pintar, a sua verdadeira paixão. Morreu esta segunda-feira, aos 90 anos. Tinha sido internado, há cerca de uma semana, na sequência de complicações respiratórias depois de ter tido um acidente vascular cerebral.
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Embora a maioria o conheça pela obra na cerâmica em ruas, avenidas, escolas e outros edifícios públicos e privados, Querubim Lapa nunca se fixou numa só arte. Fez desenho, gravura, tapeçaria, escultura. E nunca deixou de pintar, a sua verdadeira paixão. Morreu esta segunda-feira, aos 90 anos. Tinha sido internado, há cerca de uma semana, na sequência de complicações respiratórias depois de ter tido um acidente vascular cerebral.
Artista de obra múltipla, fez parte de uma geração que se opôs frontalmente ao Estado Novo e que participou de uma revolução modernista que se estendia também à arquitectura. Optando inicialmente pelo neo-realismo, como Júlio Pomar, Querubim Lapa foi-se progressivamente distanciando dessa linguagem, caminhando para uma abstracção que podia assumir formas depuradas ou exuberantes.
Os seus painéis de azulejos e outros revestimentos cerâmicos espalhados por Lisboa mostram, explicava muitas vezes, o seu gosto pela cor – o seu lado pintor – e pela modelação, ligado ao que nele havia de escultor (foi , aliás, pela escultura que começou, terminando o curso em 1953). “Não sonhava com a cerâmica. O que eu queria era ser pintor”, disse à revista Up, da TAP, em Outubro de 2014. “Na verdade, eu sempre quis ser pintor – costumo até dizer que sou um pintor escondido atrás da cerâmica.” Foi precisamente a paixão pela pintura, explicara ao PÚBLICO quatro anos antes, que o levou a conjugá-la com a modelagem, dando origem à cerâmica modelada.
Lisboa (desconstruída) por Querubim Lapa
Nascido em 1925, em Portimão, o mestre Querubim Lapa – “mestre” precede muitas vezes o seu nome nos textos que sobre ele se escrevem, por referência ao seu talento e à sua entrega ao ensino – começou por estudar pintura com Trindade Chagas, em 1941, antes de se matricular na Escola de Artes Decorativas António Arroio, onde viria a dar aulas a partir de 1955.
Começara a desenhar ainda criança, dizia, para “fugir” às quatro irmãs, embora estivesse longe de sonhar com uma carreira nas artes. Foi um professor que teve na escola profissional Afonso Domingues, de onde o seu pai contava que saísse serralheiro, que primeiro reconheceu a sua inclinação para o desenho e o empurrou para a António Arroio, cujo curso dava na altura acesso à Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL).
Foi nesta escola que se cruzou com alguns dos que viriam a marcar a arte portuguesa do século XX, como Pomar, Fernando Azevedo, João Abel Manta e Marcelino Vespeira. Para eles, explicava Querubim Lapa quando lhe perguntavam sobre o seu envolvimento na oposição ao regime, o neo-realismo era “uma reacção tanto política como artística”, que nascera de um grupo de pessoas que se orgulhava de ser de esquerda.
Arte e arquitectura
Da António Arroio, seguiu para a ESBAL para estudar escultura (concluiria também o curso de Pintura, mas só muito mais tarde, em 1978). Lá deu continuidade à sua formação e ao seu activismo político. Depois de uma passagem breve pelas Belas Artes do Porto, mais liberais do que as de Lisboa, sempre sob intenso escrutínio da polícia do Estado Novo, Querubim Lapa regressou à capital para aceitar um lugar de professor na “sua” escola. Dirigiu ateliers de cerâmica na António Arroio durante 45 anos, marcando gerações de alunos com a sua dedicação e o seu fascínio pela arte e pelos materiais.
Nunca deixando de desenhar nem de pintar, Querubim Lapa começou, no entanto, por dedicar a esmagadora maioria do seu tempo à cerâmica, ao azulejo, trabalhando com arquitectos modernos como Raúl Chorão Ramalho e Francisco da Conceição Silva, e participando numa série de projectos de decoração de interiores e exteriores de lojas, hotéis e dependências bancárias, dentro e fora do país.
Com Chorão Ramalho trabalhou no Centro Comercial do Restelo (1954), um dos primeiros do país, fazendo azulejos de padrão coloridos e com motivos geométricos, fugindo às temáticas folclóricas tão do agrado do Estado Novo. Com Conceição Silva faz a cobertura do interior e da fachada da Casa da Sorte (1963), numa esquina do Chiado, a obra que colocava no auge da sua produção cerâmica. O arquitecto fora chamado para remodelar aquele espaço que pertencera à tabacaria onde Eça de Queirós ia comprar charutos e não hesitou em convidar o artista que conhecera nas Belas Artes e que partilhava com o designer Daciano da Costa um atelier ali mesmo ao pé, na Rua Garrett.
Entre as obras que provam que se dedicou intensamente à cerâmica entre o final da década de 1950 e meados da de 70 contam-se as que fez para a escola que hoje leva o seu nome, em Campolide (As Meninas e Os Meninos, 1956); para a Reitoria da Universidade de Lisboa (A Cultura, 1961); para a pastelaria A Mexicana (também em 1961) ou para o Palácio de Justiça da capital (1969). Ainda neste período, destaque para o revestimento de colunas do Hotel Ritz (1959) e o relevo cerâmico do Casino do Estoril (1967).
A escola de Campolide, que foi construída no âmbito de uma nova rede de instituições do ensino primário da Câmara de Lisboa e para onde o artista voltou a trabalhar 50 anos depois, é uma das suas primeiras comissões públicas e é também reflexo de uma certa recuperação da arte do azulejo pelo regime que anos antes parecia desconsiderá-la. E com a particularidade de incluir a encomenda a um “desalinhado”, antifascista, que nas Exposições Gerais de Artes Plásticas da ESBAL dera nas vistas ao lado de outros artistas, designers, fotógrafos e arquitectos como João Abel Manta, José Dias Coelho, Maria Keil, Conceição Silva, Jorge Vieira, Victor Palla, Sena da Silva, Júlio Pomar ou Rolando Sá Nogueira.
Na década de 1950, o artista fez para esta escola um painel figurativo, em 2006 optou por duas composições abstractas. “Passaram 50 anos, eu tinha de andar, tinha de estar já a pensar de outra maneira”, disse ao PÚBLICO em 2010.
Rui Afonso, historiador de arte e de design, diz, sem qualquer reserva, que Querubim Lapa “foi o maior ceramista português do século XX”, atendendo a que Rafael Bordalo Pinheiro morreu logo em 1905. Como “obras-primas absolutas” na carreira do pintor identifica a sua participação no programa decorativo da pastelaria A Mexicana, “extraordinária”, e na Casa da Sorte, no Chiado, em que demonstra a sua capacidade para construir um discurso capaz de se bater com o da arquitectura de Conceição Silva, com quem tem “uma das colaborações artista-arquitecto mais interessantes do país”.
A sua linguagem, que renovou até ao fim – “vejam-se as cerâmicas eróticas da sua fase já muito mais tardia”, lembra este curador do Museu do Chiado –, era marcada “por um tratamento do volume absolutamente inédito”, “pelo trabalho dos esmaltes” e por “um imaginário único”.
“Temo hoje pela continuação da sua obra nestes espaços comerciais”, acrescenta Rui Afonso, que muito tem escrito sobre Querubim Lapa. “As lojas históricas da Baixa [de Lisboa], que Conceição Silva foi encarregue de renovar nos anos 1950, têm sido praticamente todas destruídas. E noutros pontos da cidade também. Temo pela Mexicana, pela Casa da Sorte. A obra de Querubim Lapa é importantíssima, e sempre que uma das suas intervenções desaparece, perdemos muito, mesmo muito.”
No estrangeiro, Querubim Lapa criou um baixo-relevo de grandes dimensões para a delegação do Banco Nacional Ultramarino na actual Maputo (1963), trabalhou para os escritórios da TAP em Luanda (1965), Joanesburgo (1965), Copenhaga (1968) e Frankfurt (1968); e fez duas obras para a embaixada de Portugal em Brasília (1976), onde voltou a colaborar com Chorão Ramalho.
Nas décadas seguintes há a salientar o painel para o Banco de Portugal (1986), o revestimento da Estação Bela Vista, do Metro de Lisboa (1998), as intervenções no Santuário de São Bento da Porta Aberta, Rio Caldo (2002), e na Estação de Caminhos de Ferro de Penalva (2004), os azulejos da Biblioteca Municipal José Saramago, em Almada (2009), uma colecção de esculturas em biscuit para a Vista Alegre (2013). Pelo meio ficaram a sua grande retrospectiva no Museu Nacional do Azulejo, em 1994, o ano em que Lisboa foi Capital Europeia da Cultura, e a mostra que a Galeria Objectismo, também na capital, dedicou aos primeiros 20 anos da sua produção cerâmica (Querubim Lapa: Primeira Obra Cerâmica 1954-1974). O artista nunca chegou a ter uma grande exposição em nome próprio no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, provavelmente pelo facto de o curador Pedro Lapa, seu filho, ter dirigido a instituição durante 11 anos.
Património degradado
A conservação das obras cerâmicas mais antigas preocupava, nos últimos anos, Querubim Lapa, tantas vezes referido como o artista mais representado no espaço público lisboeta. E era precisamente a câmara municipal o principal alvo das suas críticas.
Em 2014, o pintor e ceramista lamentava o estado de degradação que tinham atingido muitas das suas intervenções espalhadas pela cidade, acusando a autarquia de “falta de respeito pela arte”. Referia-se, por exemplo, ao painel O Terraço, que a câmara lhe encomendara 20 anos antes para um muro na Avenida da Índia, frente à estação de comboios de Alcântara-Mar, em parte-escondido por placards de publicidade autorizados pelo município, e cuja integridade fora comprometida em nome de um projecto imobiliário do arquitecto francês Jean Nouvel que afinal não chegou a arrancar.
Este painel, segundo Rita Gomes Ferrão, comissária da exposição da Galeria Objectismo, aguarda agora transferência para o exterior de um edifício camarário perto das Olaias. "Querubim Lapa estava a acompanhar este processo, preocupado com a integridade do painel, que está aplicado em cimento", diz esta historiadora de arte que se tem dedicado ao estudo da cerâmica modernista portuguesa, sobretudo a produzida até meados da década de 1970, lembrando que o mestre é o artista mais representado no espaço público lisboeta.
Os painéis que fez para a escola de Campolide e para a secundária D. Luísa de Gusmão, na Penha de França, também sofreram sérios danos. Os da primeira "foram concluídos pelo próprio Querubim, estão entregues, só falta serem colocados", diz esta historiadora de arte; os da segunda continuam "em muito mau estado".
O corpo de Querubim Lapa estará em câmara ardente na Basílica da Estrela, em Lisboa, a partir das 17h desta terça-feira. O funeral, precedido por uma cerimónia que começa às 14h, realiza-se na quarta. O cortejo fúnebre parte para o Cemitério do Alto de São João às 15h.
Notícia actualizada às 15h50