“Nenhuma rapariga rica foi raptada pelo Boko Haram”
Aos 30 anos, Chika Oduah foi das poucas jornalistas mulheres a entrarem em território do grupo islamista radical. Cresceu na América mas mudou-se para a Nigéria em finais de 2012.
Em Abril de 2014, homens do grupo terrorista nigeriano Boko Haram entraram na pequena vila de Chibok, a nordeste do país, tomaram conta da escola secundária estatal fingindo que eram guardas e puseram 272 raparigas dentro de carrinhas.
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Em Abril de 2014, homens do grupo terrorista nigeriano Boko Haram entraram na pequena vila de Chibok, a nordeste do país, tomaram conta da escola secundária estatal fingindo que eram guardas e puseram 272 raparigas dentro de carrinhas.
Pouco depois, a jornalista Chika Oduah fez-se à estrada até uma das zonas mais perigosas da Nigéria, a província de Borno, junto à fronteira com o Chade — encontrou uma vila onde o acesso à Internet e a noção do que se passa no resto do mundo é muito remota. Mas, como descrevia na reportagem publicada em Maio desse ano no Guardian, “o rapto deixou a sua marca em toda a gente nesta localidade que tem vivido sob o estado de emergência desde que o Boko Haram a começou a atacar há um ano”.
Nessa reportagem, a jornalista documentava a angústia dos habitantes. Um ano depois, em Junho, publicava outra reportagem no New York Times onde escrevia que mais de 200 raparigas ainda continuavam desaparecidas — no regresso a Chibok tinha, porém, visto mais soldados. Ainda hoje, das 272, apenas 57 raparigas conseguiram fugir: 219 continuam desaparecidas.
Chika Oduah falou com o PÚBLICO por telefone a partir da capital, Abuja, dias depois de 15 das raparigas raptadas terem aparecido num vídeo divulgado pela cadeia americana CNN. “O governo nigeriano não tem nenhuma informação e isso é muito infeliz porque estas raparigas desapareceram há dois anos”, comenta.
Em Novembro de 2014, Chika Oduah recebeu o prémio de jornalista do ano da Trust Women, da fundação Thomson Reuters, em homenagem à reportagem que fez em Chibok. Com o seu trabalho, chamou a atenção para a violência do grupo terrorista associado ao auto-proclamado Estado Islâmico que não aparecia tão frequentemente nas notícias mas aterrorizava a Nigéria.
Hoje com 30 anos, continua a fazer jornalismo num país onde há muitas histórias para contar, do petróleo às artes, mas onde o Boko Haram se tornou no terror nacional.
Milhares de raptos
Nascida na Nigéria, Chika Oduah mudou-se para os Estados Unidos quando era um bebé. Em finais de 2012, decidiu regressar ao país onde nasceu com a ideia de fazer reportagens sobre aspectos culturais como o casamento precoce, a circuncisão, a viuvez. Tem publicado, desde então, em meios como a Al-Jazira, The Guardian, The Atlantic e New York Times.
Com a Al-Jazira foi a Maiduguri, a cidade-berço de Boko Haram (que significa “contra a educação ocidental”) e alvo de vários ataques do grupo que quer impôr um estado islâmico no país. Encontrou gente disponível para ajudar, muitas pessoas tinham mesmo vontade de falar para que o resto do mundo soubesse o que estava a acontecer.
“Apesar do que se lê nos media, Maiduguri é uma cidade muito bonita, ligada a muitas outras cidades africanas e tem uma história longa de trocas comerciais com o mundo árabe, como Marrocos e Líbia. É uma pena que esteja a acontecer isto”, diz.
Não desvalorizando a história do rapto das meninas em Chibok, a cerca de 130 quilómetros de Maiduguri, a jornalista lembra que já foram raptadas milhares de raparigas em outras cidades pelo Boko Haram. "Os media estão focados nessas 200 mas e as outras milhares?”, questiona. “Muita gente em Maiduguri sente-se frustrada. A maioria das meninas de Chibok eram cristãs e é por isso que as pessoas acham que os media se centram tanto nelas. Mas houve milhares de mulheres raptadas antes e depois — a Amnistia Internacional fala entre dois e quatro mil. Por outro lado, é verdade que é bom que essas raparigas de Chibok tenham atenção porque servem de voz às outras. Podemos usar essa história para introduzir as histórias das outras.”
Segundo as Nações Unidas, desde 2009 que 20 mil pessoas na Nigéria morreram e 2,5 milhões foram forçadas a sair de suas casas.
Norte e Sul
Ao longo deste anos no terreno, Chika Oduah percebeu que o peso da presença do Boko Haram na vida quotidiana do país depende da região. Há medo real, todos os dias, no Norte, uma enorme área com muitos muçulmanos, e no Nordeste, onde está concentrado o Boko Haram, conta. “Muitos pais não querem que as filhas fiquem na rua até tarde”, descreve, “nem que vão ao mercado sozinhas porque há vários casos de raparigas raptadas” nessas circunstâncias.
Por outro lado, alguns pais tiraram as filhas das escolas, sabendo que Boko Haram tem como alvo os estabelecimentos de ensino. No Nordeste a vida dos habitantes mudou realmente, muitas famílias saíram de lá e ainda não regressaram por medo, comenta. “Todos os dias há um pequeno ataque”. Ali, as pessoas conhecem os rostos dos membros do Boko Haram, até porque alguns são das cidades que atacam.
Já no Sul a presença do grupo terrorista não é tão forte. “Vivo na capital que é no centro e nem sequer pensamos no Boko Haram no dia-a-dia. Sim, há seguranças a revistar em todo o lado: cinema, igreja, bancos. Mas sempre houve isso, agora é pior. Continuamos a sair e até tarde. Quando falo com os meus avós que vivem no Sul o Boko Haram parece-lhes uma coisa de outro país.”
Porém, há a informação de que o grupo está “a descer”, a ir para Sul — a presença de homens muçulmanos nessa área tem provocado suspeição, conta.
Vantagens em ser mulher
Como mulher, entrar nestes territórios dominados por homens foi uma vantagem, confessa. “Porque as pessoas não estão à espera que eu esteja a fazer alguma coisa, não esperam de mim nada de sério e por isso facilitam o acesso — os seus níveis de alerta estão em baixo, abrem-se, pensam: 'ah, é só uma mulher'. Se fosse um homem, teriam medo ou ameaçavam. A mim olham-se sem ser como uma ameaça — sou apenas uma mulher a fazer perguntas, desde que use o meu hijab e seja discreta.” Houve alturas em que ficou com outras mulheres numa casa, algo que seria difícil sendo um homem, avalia.
O grande foco do Boko Haram são as mulheres. Porquê? Chika Oduah interpreta: porque muitos dos membros são novos, adolescentes, homens que precisam de um sentimento de poder mas têm um ego muito frágil, razão pela qual humilham as mulheres. “É apenas uma expressão da sua falta de confiança, de auto-estima, de dignidade. Tentam encontrar dignidade escravizando as mulheres. E as mulheres são o alvo mais fácil, porque sendo cristãs ou muçulmanas não podem ser assertivas — é esperado que ajam de determinada maneira. No Sul podem juntar-se a um grupo de homens e falar, no Norte encontramos uma sociedade completamente diferente, onde é suposto as mulheres calarem-se, não têm vida própria especialmente quando são pobres. A não ser que se seja filha de um político rico, a vida de uma mulher é controlada por outras pessoas.”
Mas uma opinião comum é, de facto, que a razão pela qual o Boko Haram faz “tantas coisas horríveis” nos sítios onde faz e a quem faz é porque as pessoas são pobres: o governo não as protege por causa disso. “Não aconteceria nas escolas privadas onde os filhos dos políticos estudam. É a queixa que se ouve mais: 'somos pobres, somos a maioria silenciosa, não temos uma voz'. Sentem que isto é o sofrimento dos pobres, e eu acredito porque não está a acontecer nas zonas ricas e até agora nenhuma rapariga rica foi raptada pelo Boko Haram.”
Segundo maior conflito em África
Quanto à forma como o governo do Presidente Muhammadu Buhari está a lidar com a situação — ele anunciou que iria acabar com o Boko Haram —, a jornalista acredita que há vontade política e que o próprio Buhari, que tem um passado como militar e lidou com situações extremistas, está a fazer o que pode. “É só preciso mais coordenação entre todas as forças, os militares, a marinha…Buhari correu com muita gente que roubou muito dinheiro que devia ter sido usado em material militar. O que é preciso é usar o dinheiro correctamente e naquilo que é preciso: a Nigéria não é um país pobre.”
Muitos soldados têm material e fardas obsoletas, descreve — como se consegue assim lutar contra o Boko Haram?, questiona.
“Felizmente, muitas pessoas têm tido acesso a pequenas vilas que foram ocupadas pelo Boko Haram, algumas estradas foram reabertas”, sublinha. E isso é bom porque há dois anos o Boko Haram tinha um território do tamanho da Bélgica quando agora é muito menor. “Sabemos que perdeu muito poder masculino e por isso andam à procura de mulheres para bombistas suicidas. Ainda recentemente, surgiu nos media que membros do Boko Haram andam a emprestar dinheiro a pessoas a troco de entrarem no grupo”. Número de membros do Boko Haram? Entre três mil e 15 mil são as estimativas, mas ninguém sabe ao certo quantos são.
É difícil de averiguar se o movimento está a crescer ou a enfraquecer, conclui a jornalista. Numa conversa recente com uma funcionária da UNICEF, Chika Oduah ficou a saber que a insurreição do Boko Haram é o segundo pior conflito em África, depois do Sudão do Sul. “Este é um assunto que devia estar na agenda global. Afecta toda a gente. Porque é oficialmente o parceiro do Estado Islâmico para a África Ocidental. Significa que tem implicações muito maiores, não apenas para a Nigéria mas para o mundo.”