Patti Smith no comboio da sua memória

Se lhe dessem a escolher uma única linguagem artística para se expressar, Patti Smith escolheria a escrita. Numa entrevista na cidade onde vive, e a que chama “casa”, fala de M Train, o segundo volume das suas memórias, livro vadio, com o ritmo de uma longa canção. Nostálgica, íntima, livre.

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FOTO: GERARD JULIEN/ AFP

No seu segundo volume de memórias, Patti Smith troca a narrativa mais clássica e obediente à cronologia e deixa-se guiar pela memória numa deriva meio vagabunda que a leva onde não esperava. Depois de Apenas Miúdos (Quetzal 2011), livro dedicado a Robert Mapplethorpe, com quem partilhou parte da sua juventude, e com o qual ganhou o National Book Award em 2010, surpreendeu-se agora a escrever sobre Fred ‘Sonic’ Smith, o marido, guitarrista e fundador dos MC5, que morreu aos 45 anos, em 1994, vítima de ataque cardíaco. M Train (Quetzal) é uma viagem pela mente da cantora, poeta, fotógrafa, artista plástica e escritora contada a partir do presente. O M é primeira letra de mente e de memória, metáfora de um percurso onde a principal regra foi deixar-se levar pelo que lhe sugeria essa ilusão de presente, cruzamento de passado e futuro. 

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No seu segundo volume de memórias, Patti Smith troca a narrativa mais clássica e obediente à cronologia e deixa-se guiar pela memória numa deriva meio vagabunda que a leva onde não esperava. Depois de Apenas Miúdos (Quetzal 2011), livro dedicado a Robert Mapplethorpe, com quem partilhou parte da sua juventude, e com o qual ganhou o National Book Award em 2010, surpreendeu-se agora a escrever sobre Fred ‘Sonic’ Smith, o marido, guitarrista e fundador dos MC5, que morreu aos 45 anos, em 1994, vítima de ataque cardíaco. M Train (Quetzal) é uma viagem pela mente da cantora, poeta, fotógrafa, artista plástica e escritora contada a partir do presente. O M é primeira letra de mente e de memória, metáfora de um percurso onde a principal regra foi deixar-se levar pelo que lhe sugeria essa ilusão de presente, cruzamento de passado e futuro. 

No princípio do livro, há uma mulher sentada na mesa de um café a pensar como se escreve sobre nada. Esse café, centro de uma rotina de dez anos, irá deixar de existir e essa ausência será apenas mais uma a povoar um percurso quase sempre solitário, nostálgico, de alguém que — diz no livro e nesta entrevista — se vê sobretudo como escritora. Da intimidade narrada com uma elegante contenção, às referências artísticas, passando pelas conversas com William S. Burroughs, o efeito de se sentar na cadeira de Roberto Bolaño, uma visita ao cemitério, Sylvia Plath, Frida Khalo ou Murakami que a levou, simbolicamente, ao seu “quarto só para si”, uma pequena casa em Rockaway Beach para onde vai escrever e pensar sempre que pode. Como logo a seguir a esta conversa

M Train é estruturalmente e no estilo bastante diferente de Apenas Miúdos. No primeiro segue uma narrativa mais tradicional, seguindo a cronologia da vida, enquanto o segundo é uma deriva comandada pela memória.
Apenas Miúdos foi um livro que Robert Mapplethorpe, antes de morrer, me pediu que escrevesse e eu prometi-lhe que o faria. Levou-me muito tempo. Normalmente não escrevo não-ficção daquela maneira, e senti uma grande responsabilidade em ser fiel à cronologia, a Nova Iorque, às pessoas que estão nele, à nossa relação. Quando o terminei quis escrever um livro que não tivesse essas orientações, em que a estrutura fosse mais livre, sobre o qual não recaíssem expectativas específicas, em que eu pudesse escrever sobre qualquer coisa que me viesse à cabeça. Decidi chamar ao livro M Train porque é um comboio pela mente. Foi a liberdade e o desafio de me sentar e escrever em tempo real, sentada num café, sobre o que o que me ocorresse, o que me rodeasse, para onde a mente me levasse. Podia ser uma meditação, uma memória, o relato de uma viagem. Foi mesmo muito diferente da escrita de Apenas Miúdos, que exigiu muita pesquisa, recuar no tempo, consultar diários, ler cartas, rever o trabalho do Robert. Em M Train tive apenas de consultar a minha consciência.

Esse processo de escrita baseado na memória dá espaço a uma maior imprevisibilidade e a uma grande deriva, uma das características deste livro. Levou-a a lugares e a reflexões que não esperava?
Olhe, memória é outra palavra que começa por M. E mistério. Uma das coisas que tentei foi ficar no presente. Esse foi sempre o meu ponto de partida, escrever no presente segundo as alusões e ilusões do presente. E o presente é sempre uma ilusão porque enquanto estamos a tentar escrever sobre ele, a nossa mente vai derivar para o passado e sonhar com o futuro. Estamos sempre num entra e sai da estrutura do tempo, num deambular pela trindade do tempo: passado, presente, futuro. Quando comecei não esperava voltar atrás nesse tempo e escrever, por exemplo, sobre o meu marido e a nossa vida no Michigan. Nunca me ocorreu. Sentava-me todas os dias às oito da manhã, a beber o meu café, e começava a escrever sem saber exactamente para onde iria. Estranhamente, dei por mim a visitar o meu marido, foi inesperado. 

Como foi essa experiência?
Foi muito bom. Senti que ele me estava a visitar e, também porque estava a escrever tanto sobre ele, tive no fim do livro um sonho muito bonito, em que ele estava a sorrir. Normalmente quando sonho com ele, ele está sempre muito triste. Foi realmente uma dádiva. De alguma forma… não sei, mas parece que tivemos uma ligação bonita e feliz.

Já se escreveu que este livro, como o anterior, é uma espécie de requiem. No primeiro temos Robert, e neste há Fred, mas também o café Ino, que era uma casa para si e que lhe foi tirada, que desapareceu da cidade…
Sim [risos].

Concorda com a ideia de que são requiems?
Não sei. Não acho que os livros possam ser tão comparáveis. Eu quero escrever mais sobre o Fred, sobre quando éramos novos e o conheci. Conheci-o quando eu estava em palco. Ele era músico e estava muito ligado a esse meio… mas é um projecto futuro e não quero falar muito nisso. Eu não planeava escrever sobre a nossa vida no Michigan e isso transformou-se numa parte íntima do livro. Pensava que iria escrever sobre a minha actual vida em Nova Iorque, ou sobre poesia, ou arte, mas acabei no passado, em Michigan, quando o meu marido estava vivo e os meus filhos eram pequenos.

Falou numa grande intimidade. Ela existe no livro, mas sempre envolta numa enorme contenção, nunca resvalando, nessa escrita do eu, para a sobre-exposição. Há pouco de revelação. Como foi essa gestão?
O meu marido era um homem extremamente privado, e quando dei por mim a escrever sobre ele, e sabendo que iria publicar essas histórias, fiquei muito consciente de que tudo teria de ser muito respeitoso e que ele ficaria feliz como modo como foi retratado. Fui honesta, mas respeitadora da sua privacidade. Isso era importante para mim.  

A outra palavra do título é train [comboio], a ideia de viagem sobre a qual o livro se estrutura. Uma mulher a andar pelo seu circuito interior, as suas rotinas, guiada pelas suas referências. Da música, da literatura, das artes e pelas causas que defende.
Exacto. É um livro muito solitário. Não há muita gente nele. Quando estou a viajar com a minha banda, a minha vida é muito pública e feita de colaboração porque trabalho em equipa, mas fora isso eu tendo a ser uma pessoa mais solitária. M Train é mais como eu. Mas eu não sou só aquilo. Quando escrevo passo muito tempo só, a viajar sozinha, ou a ler. Mesmo quando saio com a banda faço sempre uns intervalos para ficar só. Seja a olhar a arquitectura de uma cidade, visitar um cemitério… qualquer coisa que me dê um sentido do lugar. Em Lisboa fui ver a biblioteca de Pessoa, muitos livros pessoais, os que ele gostava de ler, fosse Beaudelaire ou policiais. Foi o que encontrei para ter lá algum tempo para mim. Como referiu, há muito do modo como vivo. [Pausa] Acho que é assim que sou. Quanto ao comboio, é isso mesmo, a imagem do comboio do pensamento, o modo como a mente se move, e um jogo com certas palavras. 

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FOTO: PAULO PIMENTA

Aqui está pouco da pessoa pública. Há, sobretudo, uma mulher comum.
Isso não foi um objectivo, é apenas a verdade. Não me considero uma celebridade. Não estou com isto a dizer que sou um ser humano típico, porque vivo a minha vida como artista; e não posso dizer que sou muito comum. Mas por outro lado não me considero, de forma alguma, acima das pessoas. O modo como pareço no livro é como sou. Mesmo quando viajo com a banda continuo a ser eu. Em palco, dou um concerto, mas saio de lá e deixo de ser a performer. Não sou especial ou uma grande rockstar. Faço o que faço na minha vida pública mas sem comprometer o que sou. O livro não foi uma tentativa de parecer comum, foi natural para mim. Quando me dizem que estou a tentar parecer como toda a gente eu respondo que não estou a tentar, mas que sou como toda a gente excepto naquilo que sou eu mesma, ou seja, excepto na minha individualidade. Não houve num esforço ou tentativa de dizer o que disse. Eu sou mesmo assim.

É também por isso que diz que ler e escrever são actividades mais naturais para si do que a música?
Sim, porque escrevi durante toda a vida e considero-me uma escritora. Mas não toco, realmente, um instrumento, não me considero música. Sou mais uma intérprete e tenho uma vida pública. Em 1979 e até 1986 deixei essa vida pública. Foram 17 anos sem aparecer, mas continuei a escrever poesia, a estudar. A imagem que tenho de mim mesma não é de compositora nem sequer de intérprete. É mais a de uma artista que escreve, mas é sobretudo a de mãe.

Este livro tem muitas imagens com histórias complementares aos textos. São referências, símbolos e quase todas fotografias feitas por si em ocasiões e lugares marcantes. Este é também um livro sobre o olhar.
Desde muito nova que gosto de fotografia, de pintura. Sempre tive muitos interesses. Com 12 ou 13 anos, gostava de Julia Margaret Cameron, dos fotógrafos de finais do século XIX, gostava de Picasso… Mais tarde, aprendi muito com o Robert, que estava muito comprometido com as artes visuais. São universos que me interessam mas não me fixam. Se tivesse de tomar uma decisão daquelas muito muito complicadas onde me fosse dado a escolher expressar-me apenas de uma maneira, eu escolheria a escrita. Não tenho dúvida. 

Fala de alguns livros, grandes referências ou marcantes. Entre eles Moby Dick, de Melville, 2666, de Bolaño, mas também um de Murakami, Crónica do Pássaro de Corda, romance onde o real é invadido por uma espécie universo fantástico. Esse livro transforma-se num dos muitos objectos perdidos deste M Train, que, com as pessoas e os lugares que ficaram no passado a acompanham como fantasmas. Os fantasmas de uma mulher solitária.
Há certos livros nos quais entramos e encontramos um universo que nos envolve de tal maneira que não queremos sair. Não quer dizer que todos esses livros sejam obras-primas. 2666 é um livro que me seduziu totalmente, durante quase dois anos não o larguei. Li e reli. Foi o que me aconteceu, quando era mais nova, com O Jogo das Contas de Vidro [Hermann Hesse] que tomou conta da minha consciência durante uns anos. Quando estava a escrever M Train, o livro de Murakami — outro M — era a minha obsessão do momento. Se eu o tivesse escrito uns anos antes, talvez tivesse falasse sobretudo de 2666. Não sei. No livro de Murakami fiquei tão presa à imagem da pequena casa com a relva maltratada, invadida por ervas daninhas, com a escultura daquele pássaro que a desejei para mim. Sei que isto é uma loucura, mas foi o que aconteceu. E esse desejo estranho que me veio desse livro levou-me para uma pequena casa em Rockaway Beach [em Queens]. Era também uma casa delapidada, com vegetação selvagem e um ar abandonado que acabei por comprá-la. E achei que foi o livro do Murakami a levar-me para ela. Não apenas a leitura do livro, mas a atmosfera.

Ainda tem essa casa?
Sim. Sim, recuperei-a. Fico muito danificada pela tempestade [Sandy, em 2012]. É um óptimo sítio para estar É para lá que vou depois disto, para junto do mar. Está um dia bonito. 

Disse sobre ela que era um sítio para escrever e para pensar.
É a minha pequena casa de escritora. Como quando a Virginia Woolf disse que precisava de um quarto só para si, esta é a minha pequena casa só para mim. 

Tem feito de muitos cafés esse quarto de escrita. Este livro começa a falar de um a que foi fiel dez anos, o Ino, no Village, e que fechou entretanto. Mas escreve em muitos outros, em muitas cidades do mundo. O que encontra nesses sítios de tão apelativo para a escrita?
Se for um bom café temos tanto a ilusão de solidão quanto a de estar entre a multidão. E há uma energia à volta. Alguém que traz um café, outras pessoas que se sentam, e o sentido de atmosfera de café, de se estar num sítio que permite não se ser tão responsável quanto no espaço doméstico. Temos por algumas horas a ilusão da irresponsabilidade que permite a liberdade que a escrita pede. Gosto disso. Gosto de me deslocar. De sair do meu lugar. Estive agora duas semanas em Paris e escrevi todas as manhãs num café durante três horas e trabalhei muito. Tinha um ambiente tão bom que me perdi nele completamente, sem muita noção do mundo. Só o mundo do café e o da minha escrita.

Alguém escreveu que este livro era como uma longa canção…
Acho isso muito bonito. Alguém me disse que lhe soava como uma longa balada. Não se fala muito de música no livro, mas há uma narrativa interior que tem a música da linguagem, o ritmo do movimento da viagem e do próprio comboio. Não pensei nisso quando estava a escrever. O que posso dizer é que o que as pessoas vêem no meu trabalho sempre me fascinou e sou muito grata.