O primo mais velho da Sereia diz-lhe que “se ela não se despir não brinca com ela”

Há um novo jogo de tabuleiro que ajuda as crianças a reconhecer abusos sexuais. Destina-se a rapazes e raparigas entre os 6 e os 10 anos. Para ser jogado com qualquer adulto — pais, psicólogos ou professores.

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As autoras Rute Agulhas, Nicole Figueiredo e Joana Dias Alexandre como o novo jogo Miguel Manso

É um jogo de tabuleiro, parecido com outros, muito colorido, com um dado, “pedrinhas preciosas” que se vão guardando à medida que se avançam casas, e cartões, com perguntas de vários tipos. Por exemplo: “A Sereia tem um primo mais velho que, sempre que estão sozinhos, se despe e lhe diz para ela também se despir. Ela não quer, mas ele diz que se ela não se despir não brinca com ela. O que achas do comportamento do primo da Sereia? Como achas que se sente a Sereia? Se acontecesse contigo, como irias sentir-te? O que achas que a Sereia deve fazer?”

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É um jogo de tabuleiro, parecido com outros, muito colorido, com um dado, “pedrinhas preciosas” que se vão guardando à medida que se avançam casas, e cartões, com perguntas de vários tipos. Por exemplo: “A Sereia tem um primo mais velho que, sempre que estão sozinhos, se despe e lhe diz para ela também se despir. Ela não quer, mas ele diz que se ela não se despir não brinca com ela. O que achas do comportamento do primo da Sereia? Como achas que se sente a Sereia? Se acontecesse contigo, como irias sentir-te? O que achas que a Sereia deve fazer?”

Há desafios a que se responde desenhando, outros com gestos, outros a falar. Os temas são vários: o corpo e o toque, os segredos, as emoções, a Internet, pedir ajuda... Chama-se As Aventuras do Búzio e da Coral, destina-se a crianças entre os 6 e os 10 anos e tem como objectivo a prevenção de abusos sexuais.

Recomendado pela Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens, pode ser jogado por qualquer adulto, pais, psicólogos, professores, educadores de infância, com uma criança ou com um grupo de crianças, até um máximo de quatro. Foi apresentado ao público nesta quinta-feira à tarde, em Lisboa.

Rute Agulhas, psicóloga clínica, perita do Instituto de Medicina Legal e professora do ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa, uma das três autoras, diz que este é o primeiro projecto do género em Portugal. Não se destina especificamente a psicólogos e outros técnicos, pode ser jogado por qualquer pessoa.

O jogo tem uma espécie de livro de instruções, chamado Bússola, com as informações básicas que os adultos devem ler antes de jogar. “Isto não é para assustar as crianças, pelo contrário, isto é para lhes dar uma maior sensação de controlo: ‘Eu sei o que é, eu sei identificar as situações de risco, eu sei o que é que devo fazer perante uma situação destas.’ A lógica de um jogo destes não é pôr a responsabilidade da prevenção na criança, pelo contrário, a responsabilidade é dos adultos, da comunidade, dos serviços”, sublinha a psicóloga. “O que pedimos à criança é que ela aumente os seus conhecimentos sobre abuso e desenvolva competências para lidar com estas situações.”

E os pais, preparados?

E a generalidade dos pais — dos adultos, em geral, que não são técnicos — estão preparados para jogar um jogo destes? E para o que ele pode revelar? “Este jogo não está pensado para ser um instrumento de diagnóstico, que fique claro, não é um jogo para sabermos se uma criança foi abusada ou não”, responde Rute Agulhas.

“É um jogo de prevenção primária. Mas quando pomos a criança a falar sobre esta temática de uma forma tranquila e lúdica, criamos, de facto, um contexto, e pode criar-se uma oportunidade de revelação, no caso de a criança estar a ser vítima de alguma situação de abuso. O que nós tentámos, com a Bússola, é ajudar o adulto a perceber o que pode ser uma tentativa de revelação, o que deve dizer e o que não deve dizer.”

Na Bússola, o tal livrinho, o adulto aprende, por exemplo, que se uma criança diz “eu não gosto dele”, ou “não quero ir brincar para a casa do y”, uma resposta errada é “mas tens que gostar ele, ele gosta muito de ti!”. E uma resposta certa é: “Porquê? Ele fez alguma coisa de que não gostaste? Explica o que se passou.” Também se aprende que a criança deve ser apoiada, elogiada, nas suas respostas, e que deve sentir que acreditam nela.

“Normalmente, as crianças não tentam revelar [o abuso] de uma forma explícita, começam de uma forma exploratória, do género: ‘Não gosto dos beijos que ele me dá.’ E por vezes os adultos não estão atentos. Respondem: ‘Não sejas mal educada, dá um beijinho', por exemplo. Não é respeitado o direito da criança de não gostar de determinado toque. Ou quando a criança diz: ‘Não sei quem disse-me para guardar um segredo...’ ensinamos erradamente às crianças que os segredos são para se guardar. Quando devemos antes perguntar: ‘Mas que tipo de segredo? É um bom ou um mau segredo? Se for bom, podes guardar, se for mau deves contar.’”

Falsas crenças

“Isto é um tema com o qual os pais têm dificuldade”, diz Joana Dias Alexandre, também professora do ISCTE, adiantando que o jogo (custa 40 euros e parte dos lucros são para a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima) ainda será avaliado antes de outros serem desenvolvidos para outras faixas etárias — a colecção de jogos prevista chama-se Vamos prevenir.

“Até que ponto as crianças adquirem os conhecimentos e até que ponto os adultos se sentem mais capazes para lidar com isto”, é o que se pretende saber, explica.

Na sua tese de mestrado Nicole Figueiredo, que foi orientada por Joana Alexandre e Rute Agulhas, e que é a terceira autora destas Aventuras, fez um pré-teste de alguns materiais para o jogo, analisou projectos de prevenção que existem noutros países e recordou vários estudos que mostram, diz, como este é “um assunto tabu”, rodeando de “falsas crenças”. Por exemplo, um estudo feito em Espanha, com base em entrevistas a 113 crianças, 225 pais e 26 professores, mostrou que cerca de metade dos pais e professores acreditavam que muitas crianças inventam histórias de abuso sexual; a totalidade dos pais e 46% dos professores pensava que os familiares denunciam sempre um abuso sexual; 76% dos pais e 31% dos professores consideravam que a maioria das crianças que sofre abusos conta.

Mas nem as crianças contam sempre, nem costumam inventar, garante Nicole Figueiredo. “Este não é um tema que faça parte do seu imaginário, não é uma coisa agradável, não tem graça inventar sobre isso, portanto, na maior parte das vezes, as crianças não inventam.”

Contactado pelo PÚBLICO, Armando Leandro, presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos das Crianças, faz saber que esta é “uma iniciativa de muito mérito” que a comissão “apoia com muito empenho”.

Queixas de abusos têm aumentado

No ano passado, registaram-se 1044 participações à polícia de abuso sexual de crianças, adolescentes e menores dependentes, mais 3,1% do que em 2014, ano que já tinha registado um aumento de 17,7%. Os dados constam do Relatório Anual de Segurança Interna de 2015. Que mostra que 150 pessoas foram detidas por abuso sexual de crianças/menores dependentes.

Os arguidos no âmbito dos inquéritos abertos são na sua maioria homens, prevalecendo a faixa etária dos 41 aos 50 anos. E as crianças são na maior parte dos casos (79,3%) meninas. A maioria (61,5%) têm entre os 8 e os 13 anos; 19,9% têm entre 4 e 7 anos; 7,4% até 3 anos apenas. Em pelo menos 40% dos casos o alegado autor do crime era familiar da vítima do menor.

Apesar dos dados existentes, considera-se que o número real de casos de abuso sexual esteja subestimado, nota Nicole Figueiredo. A autora recorda que, em 2013, foi realizado um estudo nos Estados Unidos da América em que se estimou que, em média, uma em cada 10 crianças sejam sexualmente abusadas até aos 18 anos. Dados do Reino Unido revelam que no ano de 2010 uma em cada 20 crianças foi sexualmente abusada.