Pode o Parlamento português exigir o depoimento de Vítor Constâncio?

O vice-presidente do Banco Central Europeu recusa prestar declarações perante os deputados portugueses. As regras dão ao BCE uma “independência” muito superior à dos seus congéneres americanos, inglês ou japonês

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RALPH ORLOWSKI/REUTERS

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O contexto

O Banco Central Europeu (BCE) tomou decisões que ditaram – decisivamente – o fim do Banif. Quatro dias antes da resolução do banco português, no dia 16 de Dezembro, dois órgãos do BCE decidiram, à vez, que não restaria qualquer hipótese às autoridades nacionais (Governo e Banco de Portugal) que não fosse a resolução seguida de venda, como acabou por acontecer, ou a liquidação. O Conselho de Governadores, em que Carlos Costa participou, decidiu limitar a liquidez do Banif junto do Euro-sistema e ameaçou suspender o estatuto de contraparte do Banif no BCE caso a resolução e a venda não se fizessem até à segunda-feira seguinte, dia 21. Nesse mesmo dia, o Mecanismo Único de Supervisão, no qual esteve em representação do Banco de Portugal o então administrador António Varela, decidiu não atribuir licença de funcionamento para um “banco de transição” que protelasse a venda e permitisse condições negociais mais vantajosas para o Estado.

Todos os partidos portugueses, sem excepção, consideram estas decisões fundamentais para o desfecho de mais esta crise bancária nacional. Por isso, todos quiseram incluir o nome do vice-presidente português do BCE, Vítor Constâncio, na lista de depoentes a ouvir pela Comissão de Inquérito. Ainda para mais porque se sabe, hoje, que foi Constâncio quem presidiu à reunião do Conselho de Governadores de 16 de Dezembro de 2015, dada a ausência do italiano Mário Draghi. Mas nem essa informação foi dada, de modo oficial, ou sequer pacífico… Num dos mais caricatos momentos da comissão, até agora, o deputado do CDS, João Almeida, tentou que Carlos Costa, o governador do BdP, confirmasse o nome do presidente em exercício do BCE naquela reunião. Costa invocou dever de sigilo para não responder. O deputado insistiu. E o governador manteve a sua recusa em responder.

Na semana passada, numa conferência de imprensa conjunta após a reunião dos ministros das Finanças da UE (Ecofin), Constâncio recusou responder a perguntas sobre o Banif, considerando-as “completamente fora do âmbito da conferência de imprensa". Nessa mesma ocasião, o antigo governador do Banco de Portugal, e ex-líder do PS, negou também o convite dos deputados. O BCE, afirmou, "responde perante o Parlamento Europeu”.

Esta terça-feira, o PSD voltou ao assunto. “Não nos conformamos com a sua recusa e faremos todos os esforços para que venha presencialmente a esta comissão ou então que o faça através de videoconferência”, afirmou Carlos Abreu Amorim.

Os factos

O próprio BCE considera-se um caso único, e especial, entre os bancos centrais da sua dimensão. “Ao contrário dos bancos centrais em estados-nação ‘convencionais’, o BCE actua sob circunstâncias políticas, económicas e institucionais especiais: é um banco central supranacional”, lê-se numa edição especial do boletim oficial do BCE, de Novembro de 2002, onde se trata, exaustivamente, do problema da “accountability” – ou seja, da prestação de contas deste órgão da União Europeia, que goza de um estatuto de independência muito próprio.

Apesar de garantir que a prestação de contas é “a pedra angular da sua legitimidade”, o BCE traduz as circunstâncias em que, de facto, presta contas. E a quem. Citando os tratados, e a sua “excepcionalidade” no contexto mundial (face à Reserva Federal dos EUA, por exemplo), é regra do BCE que as suas decisões são colegiais e nenhum dos seus membros pode ser responsabilizado individualmente: “O BCE adoptou a regra de que a prestação individual de contas dos membros do Conselho de Governadores e do Conselho Executivo seria inconsistente com a estrutura institucional e com a substância política.” Por isso, o BCE responde como um todo, e pela voz do seu presidente.

E a quem? Em teoria, “antes e acima de tudo aos cidadãos europeus”, proclama o boletim oficial. Na prática, vale o artigo 113.º do Tratado da União. O BCE é obrigado a fazer um relatório anual de actividade que entrega ao Parlamento Europeu, à Comissão e ao Conselho. Para demonstrar a sua boa-fé, o BCE orgulha-se de exceder essa prestação de contas ao publicar, mensalmente, um boletim informativo. Porém, reconhece o BCE, “ao contrário do que fazem a Reserva Federal, o Banco de Inglaterra e o Banco do Japão, o BCE não publica as minutas das reuniões dos seus principais órgãos decisórios nem torna público o sentido de voto” dos seus membros.

Mais do que isto, só a obrigação, do presidente do BCE, e a participação voluntária de vice-governadores, quando, quatro vezes por ano, são chamados a responder perante os eurodeputados do Comité de Assuntos Económicos e Monetários. E, apesar de isso não estar previsto na lei, o BCE orgulha-se de responder a perguntas por escrito dos deputados desse Comité do Parlamento Europeu.

Além destes mecanismos, só resta mesmo a acção  judicial, também ela prevista nos artigos 230.º a 233.º do Tratado. A Comissão, o Conselho ou qualquer Estado-membro podem agir judicialmente no Tribunal Europeu de Justiça contra o BCE, caso considerem ter havido “falta de competência, infracção de requisitos processuais essenciais, infracção do Tratado ou de qualquer disposição legal, ou uso abusivo de poder”.

Em resumo

Politicamente, é questionável a "blindagem" (para usar um termo em voga) desta poderosa autoridade europeia, mas as regras parecem justificar a recusa de Vítor Constâncio. O BCE tem um estatuto “supra-nacional” que lhe permite evitar o escrutínio dos parlamentos nacionais. Esse escrutínio está guardado para os bancos centrais nacionais, que são os ramos do BCE em cada Estado-membro. E é aqui que voltamos ao início. Quem responde ao Parlamento português é o BdP. Mas Carlos Costa alegou, por mais de uma vez, não poder responder aos deputados por se encontrar vinculado ao sigilo do BCE. Por isso é que a acta que decidiu o futuro do Banif, escrita em três páginas, chegou a São Bento com duas páginas e meia cobertas por tiras negras que a tornam ilegível. O governador garante que pediu ao BCE para tornar a acta pública. Em Frankfurt a resposta foi não.

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