O outro lado da caridade

A caridade, enquanto acção única, é insuficiente e não produz desenvolvimento social. É a velha história do “dar o peixe” quando se deve “ensinar a pescar”

Foto
Army Amber/Pixabay

Há uns dias passou na televisão uma reportagem da RTP1 sobre o lucro que uma organização sem fins lucrativos obtinha com campanhas de recolha de roupa. Já não é primeira vez que tal assunto vem a debate e outras organizações têm sido acusadas de usar a caridade para fins económicos.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Há uns dias passou na televisão uma reportagem da RTP1 sobre o lucro que uma organização sem fins lucrativos obtinha com campanhas de recolha de roupa. Já não é primeira vez que tal assunto vem a debate e outras organizações têm sido acusadas de usar a caridade para fins económicos.

Para além deste “abuso” incorrecto de acções de caridade e da usurpação da mensagem que transmitem, este problema traz ainda outra questão adjacente, que se prende com o outro lado da caridade e o perpetuamento da pobreza.

Acredito que a caridade, enquanto acção única, é insuficiente e não produz desenvolvimento social. É certo que responde a necessidades básicas primárias, que devem ser respondidas, basta olharmos para a pirâmide de Maslow e perceber que, na base, existem necessidades como a fome, a sede ou o vestuário que devem estar saciadas para que se possa avançar. No entanto, basta olharmos para a questão dos sem-abrigo, realidade cada vez mais presente em Portugal, e com a qual também já contactei sendo voluntário numa organização. A verdade é que se tem multiplicado no nosso país o número de associações e até de pessoas a nível individual que se desdobram em acções de distribuição de refeições que, como disse, é fundamental, mas depois não há qualquer trabalho complementar a esse, o que muitas vezes até acaba por deixar muitas pessoas em situação de sem-abrigo em situações de dependência e, consequentemente, com maior vulnerabilidade social. É a velha história do “dar o peixe” quando se deve “ensinar a pescar”.

Não quero, contundo, dizer que se devem abandonar este tipo de intervenções de cariz mais assistencialista, não se pode ensinar a pescar “de barriga vazia”. Defendo é que se deve trabalhar com as pessoas, promovendo a cooperação entre os vários organismos presentes e com o poder político, na concretização de verdadeiras políticas sociais. É um trabalho contínuo, a longo prazo, mas que trará melhores frutos.

A situação “lá”

Grande parte destas campanhas que referi inicialmente têm como último destino países africanos. E aqui importa reflectir sobre a intervenção humanitária e as muitas más práticas de intervenção que são levadas a cabo nestes países. Eu próprio já fui voluntário num projecto de voluntariado em São Tomé e Príncipe e apercebi-me de situações de ajuda internacional que não estavam a corresponder às reais necessidades da população, bem como da falta de articulação e cooperação que existe entre as muitas organizações presentes naquele que é o país com maior número de ONG por metro quadrado.

Aquando da minha ida, várias foram as pessoas que me perguntaram o que levava para dar ou se estava a fazer alguma campanha para recolher alimentos ou roupa… a resposta foi não. Ia estar com as pessoas, perceber os recursos que existiam, as necessidades que havia, mas não ia torná-los, mais uma vez, dependentes.

Falo do caso concreto de São Tomé e da realidade que vivi, um país com excelentes recursos naturais e com pessoas com vontade, generosas e com uma amabilidade fantástica, recursos que devem ser potenciados, trabalhando com as pessoas, numa troca de conhecimentos e contactos mútua e, muito importante, colaborando com associações e organizações locais, que irão permanecer no terreno após a nossa vinda e irão garantir a sustentabilidade social que se pretende, algo a que a caridade não ajuda.