Bullying: o tempo reencontrado

Agora, já posso dizer "sofri de bullying" e tudo parece ser mais fácil. Mas, a bem ver, para a maioria, não passa de uma abstracção

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Michal Parzuchowski/Unsplash

O termo "bullying" veio para ficar. O mesmo refere-se a um tipo de agressão que sempre existiu, aquele tipo de "gozo" a que alguns meninos eram sujeitos, experiência funesta e, ainda assim, "normal" em todos os tempos e lugares. Este "normal", esta forma de terror psicológico (e/ou físico), pode marcar a vida da vítima para sempre. Quem já sofreu de "bullying", quem sofreu como eu sofri, sabe que parte de nós morre naquele tempo, deixando para trás a infância, portando consigo a memória indelével de uma experiência inapagável.

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O termo "bullying" veio para ficar. O mesmo refere-se a um tipo de agressão que sempre existiu, aquele tipo de "gozo" a que alguns meninos eram sujeitos, experiência funesta e, ainda assim, "normal" em todos os tempos e lugares. Este "normal", esta forma de terror psicológico (e/ou físico), pode marcar a vida da vítima para sempre. Quem já sofreu de "bullying", quem sofreu como eu sofri, sabe que parte de nós morre naquele tempo, deixando para trás a infância, portando consigo a memória indelével de uma experiência inapagável.

A condição da "vítima"

Até há cerca de vinte anos, a palavra "bullying" ainda não era usada e, como tal, era bem mais difícil e "vergonhoso" ter de referir o gozo, as ameaças, os empurrões; no meu caso, escolhi o silêncio, e este, em conjunto com os livros, tornou-se o meu maior aliado, quiçá um falso amigo. Agora, já posso dizer "sofri de "'bullying'", e tudo parece ser mais fácil. Mas, a bem ver, para a maioria, não passa de uma abstracção; para quem o viveu é algo que modifica a percepção da realidade. Ainda hoje, "menino" de 35 anos, evito cruzar-me ou conviver com os rapazes, eles deixaram cá uma mácula difícil de extirpar e, por mais que a mente consciente queira superar certo desconforto, o corpo fala sempre mais alto, não deixando escamotear a "letra escarlate" com que aparecemos (perecemos?) constantemente.

O meu "bullying" durou anos e anos a fio, era diário e, quem vive deste modo, aprende a conviver, a sobreviver, em refúgio constante; são as "defesas" que salvam e, simultaneamente, agrilhoam. Houve um tempo inicial de incompreensão, um não saber o "porquê" da agressão, uma tentativa de corresponder, de me adaptar. Mais tarde, após anos de frustração, veio/vem a resignação, por vezes, o porte de uma fraqueza assaz dissimulada (os animais também chegam a prostrar-se, tentando, assim, salvar-se de um "macho alfa", de um dominador, de um predador), a aceitação da condição.

Por vezes, as "defesas" possibilitam compensar, aí o "bullying" terá parido a obra, o "gozado" de hoje é o obreiro — o filósofo, o cientista, o terapeuta — de amanhã, será que, neste caso, o "bullying" é coisa "boa"? Outras vezes, o "bullying" destrói por completo, o indivíduo não conseguiu reagir, ficou reduzido à "coisa" sem vida, simbólica ou literalmente. De qualquer modo, o "bullying" mata sempre, arruína o paraíso infantil do "adolescer", fazendo nascer o "tempo" a partir do qual o presente já não existe, tudo passa a ser passado. Quem sofreu passará boa parte da sua vida a tentar recuperar "aquele" momento, bastas vezes será impossível reviver, fazer o luto; o que não se consegue esquecer não se consegue revivescer. Morreu o passado, nele ficámos, nele perdura parte de nós, no passado que se torna presente em cada momento, frustrando o presente em que vive o "normal", o vulgar, o adaptado.

Quiçá não exista o "normal", o "adaptado", afinal, somos todos singulares, e todos vivemos buscando recuperar o tempo paradisíaco do "princípio", matar o tempo que a saudade reconstrói e pretende extinguir. Trata-se tão-só de fazer esgotar o sofrimento e quem viveu o "bullying" num dia a dia de nomes, ofensas, alusões, sabe, talvez melhor que qualquer outro, que o sofrimento é sempre inqualificável. E o sofrimento de quem "sofreu" não fica no que sofreu. Ele arrasta-o consigo, transforma-o em neurose, e transforma "neuroticamente" o mundo que o rodeia. O "agredido" pode até tornar-se "agressor". Do mesmo modo, o "agressor" é comummente um "agredido".

Atrás e à frente de uma relação "vitimizador — vítima" existem ciclos inacabáveis de "vitimização". Fui violentado e, precisamente porque o fui, digo que o agressor é sempre vítima. A "minha" violência tornou-se pensamento, bem como compreensão. Sou um relativista, não puno o que magoa, não desejo o seu sofrimento — já disse que este é sempre inqualificável —, antes o perdoo, tomara perdoar-me também a mim, à memória, à culpa, à inanição de outrora, aos momentos de zanga, sempre interna, sempre para com um "outro". E o "outro" é primitivamente o que nos cria, o que nos magoa, porque há sempre qualquer coisa que vem de trás, para a vítima e o vitimizador. E é isto que é urgente: compreender o que faz da vítima ser vítima, o que faz do vitimizador ser vitimizador, os processos dinâmicos mais ou menos conscientes e, com igual dinamismo, propiciar a dinâmica das relações entre os alunos e companheiros, a resolução espontânea do processo. Porque o "bullying" carece menos de controlo ou vigília do que de entendimento.

No fim, o mecanismo tem de ser solucionado pelas próprias crianças, se bem que os "adultos" poderão iniciar, moderar, o mesmo. Há contextos especiais, como os recreios ou as aulas de educação física — ah, esse maldito tempo de humilhação!... —, e, por isso mesmo, a escola deve promover a "relação" e não só o estudo no sentido restrito do termo. O "estudo" puro ajuda a refugiar, perpetuar, a condição da "vítima", é bom para as defesas, mas o problema fica por resolver. Isto se considerarmos haver problema, afinal de contas, "viver é sofrer" (e o "sofrer" faz a obra e a obra ajuda a debelar o "sofrer"). Mas, aí, o tempo, a saudade, protelará sua exaustão.